Direito e literatura

Quem estuda somente Direito não estuda direito

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17 de dezembro de 2013, 6h43

“À fala, não ao falante, dá-se o aval”
W. H. Auden
[1]

I — O que é direito?
Nos bancos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), nos idos benfazejos de 1988, pude aprender com o professor Arnaldo Vasconcelos: “Direito é compartição de liberdade”.

Continuando com suas lições, o professor cearense, em artigo publicado na Revista Pensar[2], ensina: “Viver em sociedade é conviver, e este fato primário da convivência social só se realiza com perda de parte da liberdade de cada um dos conviventes. Eis o preço da convivência”. (…) “A limitação comum das liberdades, exigida para a possibilitação da sociedade humana, é o que precisamente se chama Direito. Foi desse modo, como compartição da liberdade, que surgiu o Direito na vida do homem. Veio para limitar as condutas recíprocas, a fim de que, cada um por si e todos em conjunto, pudessem coexistir segundo o maior grau possível de liberdade. Essa forma especial de convivência, a vida jurídica, ao pretender fazer-se valer de modo universal, criou para a sociedade a obrigação imperiosa de proteger-se e garantir-se”.

A partir da lição do professor da UFC, pode-se, pois, concluir: direito é regulação de vida, ou, mais precisamente, regulação de vida convivida.

Não à toa, o molde de Defoe[3] dá pela chegada do direito à ilha, com o encontro entre Sexta-Feira e Robinson Crusoé.

II — O que é literatura?
Harold Bloom, crítico literário norte-americano, em Como e Por Que Ler[4], refere-se a Tchékhov como “o artista imprescindível da ‘vida não vivida’”, afirmando, ainda, que o contista russo, sobre possuir “a sabedoria dos grandes escritores”, implicitamente, ensinava “que a literatura é uma forma de fazer o bem”.

Os passos de Bloom conduzem à conclusão (definitiva) de que literatura é relato de vida não vivida e, ainda, forma de fazer o bem?

Os que consideram a biografia como gênero literário dirão: não, literatura não é somente relato de vida não vivida — como parece querer Bloom — mas, ainda, relato de vida vivida, apresentando-se, assim, a dicotomia “ficção” e “fato”, e, pois, “verdade artística” e “verdade histórica”, não se desconsiderando a visão de Tchékhov da literatura “como forma de fazer o bem”.

Terry Eagleton, em Teoria da Literatura — Uma Introdução, faz, a certa altura, duas afirmações peremptórias. A primeira: “Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é”[5]; e, a segunda: “A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe”[6], para, então, arrematar: “A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido”[7].

Na sequência, Eagleton esclarece: “John M. Ellis argumentou que a palavra ‘literatura’ funciona como a palavra ‘mato’: o mato não é um tipo específico de planta, mas qualquer planta que, por uma razão ou outra, o jardineiro não quer no seu jardim. ‘Literatura’ talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada”[8].

Para Eagleton, a consideração da literatura como “um tipo de escrita altamente valorizada é esclarecedora, mas tem uma consequência bastante devastadora. Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria ‘literatura’ é ‘objetiva’, no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente — Shakespeare, por exemplo — pode deixar de sê-lo”[9].

Eagleton continua: “A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor”[10]. (…) “Assim, é possível que, ocorrendo uma transformação bastante profunda em nossa história, possamos no futuro produzir uma sociedade incapaz de atribuir qualquer valor a Shakespeare”[11].

Por fim, à pergunta “O que é literatura?”, posta na introdução do seu “Teoria da Literatura”, Eagleton responde: “Se não é possível ver a literatura como uma categoria ‘objetiva’, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. Isso porque não há nada de caprichoso nesses tipos de juízos de valor: eles têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício Empire State. Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais”[12].

III — O que têm em comum direito e literatura?
Considero apropriada a resposta da professora Judith Martins-Costa, ao afirmar que ambos, direito e literatura, “são linguagem, isto é, não existem, ‘pela linguagem’, mas na própria linguagem, ambos se ocupam de muitos temas comuns: casamento, testamento, pena, culpa, castigo, dinheiro, os laços sociais e as suas rupturas”[13].

Quem, que tenha lido Dostoiévski, José de Alencar, Shakespeare, Rachel de Queiroz ou Machado de Assis, não se lembrará do crime e castigo de Raskólnikov; do casamento turbulento de Aurélia e Seixas; da ânsia de poder de Cláudio e da (lúcida?) loucura de Hamlet; do processo, que, em verdade foi sua pena (de inocente) de João Miguel; ou, ainda, do (in)ocorrente adultério de Capitu?

Em meu Direito Penal na Literatura [14], pude constatar o erro sobre a pessoa (artigo 20, parágrafo 3º, do Código Penal — CP), no crime de Hamlet contra Polônio; a desistência voluntária de Bentinho (artigo 15 do CP), na tentativa de homicídio contra Ezequiel; o dilema hamletiano do crime: existo?; a superioridade da forma (na aplicação da lei), em detrimento do conteúdo, na morte de Lazzari; e o assassinato (assim nominado por Tchékov) de Matviei.

IV — O sol e o direito, no poema de W. H. Auden
“O sol, dizem os jardineiros, é a lei”[15] é o verso que inicia o poema Law like love (“A lei como o amor”, na tradução de Benedicto Ferri de Barros), do poeta inglês, W. H. Auden.

Para Auden, pois, “a lei” — o direito — “não é aquela que o catedrático repassa aos seus alunos; não é aquela que o sacerdote proclama do púlpito e sim a que os jardineiros obedecem, a lei do Sol, vale dizer, da natureza”[16].

Estaria o poeta fazendo implícita referência ao direito natural?

E, no verso “um gélido hospital nos reitera/a igualdade dos homens”[17], pretenderia sublinhar o princípio da igualdade material entre os seres humanos?

V — O prego e a perda de um reino, no conto de James Baldwin
O conto Meu reino por um cavalo, de James Baldwin, “no qual o autor retrata com ironia o desenvolvimento de uma série causal”[18], é assim resumido por Gisela Sampaio da Cruz: “O Rei Ricardo III estava a se preparar para a maior batalha de sua vida. As tropas lideradas por Henrique — o Conde de Richmond — avançavam contra o seu exército. A disputa era para determinar o novo monarca da Inglaterra. Logo pela manhã, o rei ordenou que um cavalariço verificasse se seu cavalo preferido estava pronto. Como o cavalo se encontrava sem ferraduras, o rapaz levou-o até o ferreiro que, de pronto, lhe disse que há dias estava a compor os cavalos do exército real, razão pela qual não tinha mais ferraduras. Diante da impaciência do cavalariço, o ferreiro voltou todos os seus esforços para, a partir de uma barra de ferro, providenciar quatro ferraduras. Malhou-as o quanto pode até dar-lhes tamanho e forma adequados. Quando, contudo, foi pregá-las nas patas do cavalo, descobriu que não havia pregos suficientes para a quarta. O outro, irritado, avisou-lhe que não podia mais esperar, e perguntou, apenas, se o ferreiro não poderia pregar a quarta ferradura com os pregos que tinha. O ferreiro retrucou, afirmando, em vão, que a última ferradura não ficaria firme quanto as três primeiras: ‘— Ela cairá? — perguntou o cavalariço’. ‘ — Provavelmente não — refutou o ferreiro —, mas não posso garantir”. E assim, o Rei Ricardo III foi para a batalha, com um prego a menos. Enquanto os exércitos se confrontavam, o rei participava ativamente da batalha. Ao verificar que alguns de seus homens batiam em retirada, o Rei Ricardo III cravou, com firmeza, as esporas na montaria e partiu a galope na direção da linha desfeita. Na metade do caminho, o cavalo perdeu a tal ferradura mal pregada e o rei foi jogado ao chão. Os soldados de Henrique, pouco a pouco, fecharam o cerco e Ricardo viu seu exército dar meia volta e fugir. ‘— Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!’ — gritava Ricardo com a espada erguida. Mas não havia cavalos por perto. Seu exército ocupava-se em salvar a própria pele. Desde então, o povo passou a cantarolar: ‘Por causa de um prego, perdeu-se uma ferradura. Por causa de uma ferradura, perdeu-se um cavalo. Por causa de um cavalo, perdeu-se uma batalha. Por causa de uma batalha, perdeu-se uma guerra. Por causa de uma guerra, perdeu-se um reino. Por causa de um prego, perdeu-se um reino”[19].

O conto de Baldwin vai ao encontro do que, em direito penal, se chama de “teoria da equivalência dos antecedentes causais” ou “teoria da ‘conditio sine qua non‘”, a qual, relativamente ao nexo causal, como elemento do fato típico, afirma que tudo aquilo que contribui, ainda que remotamente, para o resultado, é causa deste resultado.

No conto de Baldwin, o prego — contribuição remota — é causa do resultado “perda do reino”. Isto porque a falta do prego causou a perda da ferradura, que causou a perda do cavalo, e, assim, sucessivamente, até se chegar ao resultado causado: a perda do reino.

Os alunos, em sala de aula, costumam estranhar minha afirmação no sentido de que a concepção do homicida por seus pais é causa do homicídio, no molde da teoria da equivalência dos antecedentes causais.

Não se quer, com isso, dizer — tranquilizo os perplexos discentes — que os pais do homicida responderão por homicídio, apesar de haverem, efetivamente, dado causa à morte da vítima. Na verdade, não se lhes imputará responsabilidade penal, na hipótese, à míngua da chamada causalidade subjetiva, ou seja, por não haverem agido, na concepção, com dolo ou culpa de homicídio.

Os partidários da teoria prevista no artigo 13, caput, do Código Penal, têm, pois, afirmado: “A causa da causa é causa do causado”.

VI — A notícia de jornal: “Livros para ler os outros”
Nos jornais Correio Braziliense[20] e The New YorK Times International Weekly[21], foram publicadas notícias com os seguintes títulos e subtítulos, respectivamente: “Livros para ler os outros — Pesquisa norte-americana encontra indícios de que a literatura ajuda a desenvolver a capacidade de interpretar os pensamentos e as emoções alheias” e “Literatura melhora traquejo social”.

Referidos periódicos noticiam, em suma, que matéria originária da revista americana Science, edição de 3 de outubro de 2013, intitulada “Want Read Minds? Read Good Books”, teria apontado as seguintes vantagens de um bom livro de literatura: a) “a literatura pode ajudar no relacionamento com outras pessoas, ajudando o leitor a interpretar melhor as emoções alheias”; b) “Não é qualquer tipo de obra que provoca esse efeito”. (…) “Os livros de leitura mais ‘fácil’, que costumam integrar as listas de mais vendidos, não ajudam no aprimoramento da habilidade social”; c) “Pelo conteúdo mais denso, a ficção literária consegue estimular mais a reflexão sobre os outros nos leitores”. (…) “Ficção literária obriga o leitor a se tornar coautor da história. Ele é forçado a entrar na mente do personagem. Isso aciona os processos mentais. Durante a leitura de ficção literária, treinamos essa capacidade de teorização em nosso cérebro”.

Para Cristiano Mauro Gomes, psicólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): “Quando lemos ficção literária, nós desenvolvemos a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, em uma posição ativa, que pode ter atrito com as crenças que temos”[22].

Já Silviane Barbato, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), entende que “a leitura, de forma geral, estimula o cérebro, provocando essa melhoria na habilidade de compreensão do outro”[23].

Um dos autores do estudo, objeto da matéria publicada na revista Science, Emanuele Castanho, professor associado do Departamento de psicologia da New School for Social Research, em Nova York, conclui: “Os resultados que apresentamos em nosso trabalho são preliminares, mas dão suporte a aplicativos já existentes, como programas de leitura para presos. Afinal, ao contrário de medicamentos, ficção literária não tem qualquer efeito colateral negativo”[24].

A literatura considerada, seja como instrumento para aperfeiçoamento do convívio social; seja como mecanismo de prevenção de crimes; seja, ainda, como condição para ressocialização de presos; será uma utopia ou mera quimera?

A resposta ao tempo, que passa.

VII — Conclusão
Concluo, parafraseando o título do livro de Joel Rufino dos Santos, “Quem ama literatura, não estuda literatura: ensaios indisciplinados”[25].

E o faço da seguinte forma: quem ama Direito, não estuda somente Direito. Ou, ainda, quem estuda somente Direito, não estuda direito.


[1] Auden, W. H. Poemas. Seleção João Mora Jr., Tradução e introdução José Paulo Paes, João Moura Jr. Ensaio Joseph Brodsky – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 197, trecho do poema “Palavras”.

[2] Fortaleza, v. 15, n. 2, p.385-400, jul./dez. 2010.

[3] Defoe, Daniel. As aventuras de Robinson Crusoé. Coleção aventuras grandiosas/adaptado por Rodrigo Espinosa Cabral. São Paulo: Rideel, 202.

[4] Bloom, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 33/34.

[5] Eagleton, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução: Waltensir Dutra; [revisão da tradução: João Azenha Jr.]. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 16.

[6] Ob. cit., p. 16.

[7] Ob. cit., p. 12.

[8] Ob. cit., p. 14.

[9] Ob. cit., p. 16.

[10] Ob. cit., p. 16/17.

[11] Ob. cit., p. 17.

[12] Ob. cit., p. 24.

[13] Martins-Costa, Judith, Direito e literatura, linguagem. In Adeodato, João Maurício; Bittar, Eduardo C.B. Filosofia e teoria geral do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 704/705.

[14] Araújo, José Osterno Campos de. Direito penal na literatura de Shakespeare, Machado e outros virtuoses. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2012.

[15] http://www.academia.org.br/abl/media/RB50%20-%20POESIA%20ESTRANGEIRA.pdf

[16] Rocha, Hélio. Não desobedecer a lei dos jardineiros. In Jornal “O Popular”, Goiânia -GO, edição de 27.09.2013, seção “Opinião”, p. 7.

[17] http://www.academia.org.br/abl/media/RB50%20-%20POESIA%20ESTRANGEIRA.pdf

[18] Cruz, Gisela Sampaio. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 3.

[19] Ob. cit., p. 1/3.

[20] Brasília-DF, edição de 04.10.2013, seção “Ciência”, p. 18.

[21] Suplemento encartado no Jornal Folha de S. Paulo, edição de 15.10.2013, p. 1.

[22] Jornal “Correio Braziliense”, Brasília-DF, edição de 04.10.2013, seção “Ciência”, p. 18.

[23] Jornal “Correio Braziliense”, Brasília-DF, edição de 04.10.2013, seção “Ciência”, p. 18.

[24] Jornal “Correio Braziliense”, Brasília-DF, edição de 04.10.2013, seção “Ciência”, p. 18.

[25] Santos, Joel Rufino dos. Quem ama literatura, não estuda literatura: ensaios indisciplinados. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

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