Sociedade prejudicada

Cadáver em reservatório de água deveria render dano moral

Autor

  • Vitor Guglinski

    é advogado professor de Direito Civil e Direito do Consumidor membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG e coordenador da Escola Superior da Advocacia da 6ª Subseção da OAB-MG de Cataguases.

15 de dezembro de 2013, 6h41

No dia 14 de novembro de 2013, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais teve a oportunidade de apreciar questão de consumo, no mínimo, sui generis. Tratava-se de caso em que uma consumidora ajuizou ação de reparação de danos morais contra a Companhia de Saneamento de Minas Gerais, ora prestadora dos serviços de fornecimento água e saneamento de esgoto, em razão de os moradores da cidade de São Francisco — município situado às margens do rio que leva o mesmo nome — terem consumido, durante aproximadamente seis meses, água proveniente de um reservatório que continha um cadáver humano em decomposição.

Ao julgar o caso, o juiz da 2ª Vara Cível daquela comarca — Nalbernard de Oliveira Bichara — entendeu ser improcedente o pedido, já que, segundo verificou, ficou provado que, apesar de haver uma pessoa morta na água, esta não se mostrou imprópria para o consumo. Em grau de recurso, a sentença foi confirmada por seus próprios fundamentos, tendo o egrégio colegiado julgador destacado que:

“Embora seja desconfortável a constatação de que havia um cadáver no reservatório de água que abastecia a cidade, não houve qualquer prova de que o evento abalou psicologicamente a autora ou causou-lhe qualquer tipo de dano, mormente diante do laudo pericial em que se constatou que o líquido estava próprio para o consumo” (faça o download do acórdão em: http://www8.tjmg.jus.br/themis/verificaAssinatura.do?numVerificador=1061111002271600120131140883).

Com todo o respeito que a decisão merece, do ponto de vista jurídico, especialmente à luz da moderna leitura do Direito Privado (Direito Civil Constitucional), bem como das normas consumeristas, o julgado afigura-se estarrecedor, e não escapa de críticas.

Regra geral, não há o dever de indenizar sem que haja um dano, que é um dos pressupostos inafastáveis do dever jurídico secundário (responsabilidade) imposto a quem viola um dever jurídico primário (obrigação). No entanto, o caso em estudo revela claramente que houve um fato do produto, cujo tratamento jurídico encontra-se disciplinado no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor.

Apenas relembrando, fato do produto (ou do serviço, conforme o caso) é o mesmo que acidente de consumo. Haverá fato do produto ou do serviço sempre que o defeito, além de atingir a incolumidade econômica do consumidor, atinge sua incolumidade física ou psíquica. Nesse caso, haverá danos à saúde física ou psicológica do consumidor. Em outras palavras, o defeito exorbita a esfera do bem de consumo, passando a atingir o consumidor, que poderá ser o próprio adquirente do bem (consumidor padrão ou stander – art. 2º do CDC) ou terceiros atingidos pelo acidente de consumo, que, para os fins de proteção do CDC, são equiparados àquele (consumidores por equiparação bystander – art. 17 do CDC).

Pois bem, como visto no conceito acima, o dano psicológico experimentado pela vítima também gera o dever de compensá-lo. De fato, no âmbito das relações de consumo, não é necessário que um produto cause um dano efetivo à saúde ao consumidor. Se em momento posterior ao consumo descobre-se que o produto continha um corpo estranho (no caso era um corpo humano em decomposição), cujas características revelam o potencial de causar um dano à sua saúde, é inegável a mácula psicológica perpetrada à vítima. Os sentimentos de asco, nojo, de possível desenvolvimento de uma patologia, em razão da contaminação, são capazes de causar na vítima um abalo psíquico desarrazoado, que extravaza o mero aborrecimento ou, como colocado pela relatora do acórdão, o desconforto.

Conforme relatou a autora da ação, mesmo não tendo sido detectadas doenças ou bactérias, a simples presença do cadáver contamina a água, por se tratar de um corpo estranho que não deveria ter sido encontrado no reservatório da requerida, tal como “um inseto ou um fio de cabelo estranho encontrado num prato de feijoada servido por um luxuoso restaurante”. Prossegue a autora asseverando que “somente quem ingeriu ‘água de defunto’ e os nojentos derivados deste, poderá medir o seu sofrimento psicológico, cujo laudo técnico, por não ter sensibilidade de um ser humano, não tem via de consequência, a capacidade de medir”.

Integral razão assiste à consumidora no presente caso, o que, todavia, não foi reconhecido pela Justiça mineira.

Visando demonstrar as incongruências da Justiça, reportagem do jornalista Fábio Óliva revela que o mesmo TJ-MG condenou uma empresa de ônibus a pagar indenização de R$ 8 mil, a título de danos morais a um consumidor (autos nº. 0395879-57.2012.8.13.0145), porque o ar condicionado do ônibus em que viajava de Belo Horizonte (MG) a Juiz de Fora (MG) começou a gotejar água em sua poltrona (leia a notícia em: http://www.geraisnews.com.br/not%C3%ADcias/slideshow/item/6432-%C3%A1gua-com-cad%C3%A1ver-indeniza%C3%A7%C3%A3o-negada.html).

De fato, a crítica prospera, sendo profundamente lamentável que decisões como esta ainda façam parte do dia a dia forense, ainda que sejam a minoria. Como bem registrado por Kazuo Watanabe, em seus comentários ao CDC, de forma categórica, e com o brilhantismo que lhe é peculiar, ao discorrer acerca das principais medidas protetivas do consumidor nele previstas, “de nada adiantará tudo isso sem que se forme nos operadores do direito uma nova mentalidade capaz de fazê-los compreender, aceitar e efetivamente por em prática os princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor” (WATANABE, Kasuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: forense Universitária, 2004).

Ainda cabe recurso no presente caso, mas, o fato é que “beberam o morto”, literalmente.

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