Segunda Leitura

O sistema judicial dos Emirados Árabes, com foco em Dubai

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

15 de dezembro de 2013, 10h05

Emirados Árabes Unidos é um estado federal, localizado na Península Arábica, com 86.300 km, criado no ano de 1971, através da união dos emirados de Abu Dhabi, Dubai, Ajman, Fujairah, Ras al-Khaimah, Sharjah e Umm al-Qaiwain, sob a inspiração e liderança do Sheikh Zayed bin Sultan Al Nahyan, que foi seu presidente desde a sua fundação até o ano de 2004, quando faleceu.

Os EAU caracterizam-se pela abertura a todas as culturas, forte poderio econômico, decorrente da abundância de petróleo e gás, tolerância a outras religiões (96% da população é de muçulmanos) e atenção aos direitos humanos. Naturalmente, tudo isto deve ser visto e analisado comparando-se com o sistema adotado em outros países árabes de religião islâmica e dentro de um contexto cultural absolutamente diferente do brasileiro.

Nos EAU mulheres podem dirigir automóvel, estudar e participar da vida acadêmica, trabalhar em órgãos públicos e o adultério não é mais considerado crime. Todavia, seus depoimentos em processos criminais valem a metade do depoimento de um homem. Bebida alcoólica só pode ser servida em bares fechados, hotéis ou clubes, a pena de morte é aplicada em determinados casos, o homossexualismo é crime punido com até 10 anos de prisão em Dubai (artigo 177 do Código Penal), viver juntos sem casamento é proibido, trabalhadores estrangeiros que contraiam hepatite, tuberculose ou AIDS têm o visto cassado e são deportados para os seus países.

A economia baseia-se na exploração do petróleo e do gás e o país, especialmente Dubai, possui elevadíssimo poderio econômico. As pessoas nascidas nos EAU não pagam impostos e têm direito à educação completa, moradia, saúde, água e eletricidade, tudo absolutamente grátis. Os trabalhadores estrangeiros também se valem de boa parte desses direitos e, por isso, milhares de pessoas lá fixam residência. A segurança é absoluta.

O sistema de Justiça dos EAU compõe-se, basicamente, de uma Corte Suprema de Justiça da União, tribunais federais e locais de apelação e de primeira instância. A Corte Suprema possui apenas cinco juízes, vitalícios, que são indicados pelo presidente e devem ser aprovados pelo Conselho Supremo, órgão este composto pelos sete governadores dos emirados. Eles julgam a constitucionalidade de leis federais, sendo tais decisões vinculantes para todos, as controvérsias entre os sete emirados e entre estes e o Governo Federal, conflitos de competência, atos de ministros de Estado e de altos funcionários no exercício de suas ações e os crimes que afetam os interesses da União.

Os tribunais não têm a independência e autonomia dos tribunais brasileiros. Os presidentes das cortes, mesmo que nomeados pelo sheik, na maioria das vezes discutem suas reivindicações administrativas (v.g., reforma de um Fórum) com o ministro da Justiça.

Na primeira instância os tribunais têm competência para ações civis e criminais (seculares) ou tribunais Sharia (religiosos) para questões de família e sucessões. A sharia é o conjunto da lei religiosa islâmica, regula a vida pública e privada dos que adotam a religião islamita, inclusive a economia, negócios e sexualidade. Nos EAU, de forma geral, a criação de tribunais civis e criminais retirou dos tribunais Sharia a competência para decidir sobre estas matérias, restando-lhe apenas as questões de família e sobre menores. Isto, porém, não é uma regra absoluta, podendo a Justiça local de um emirado ampliar a competência desses tribunais religiosos.

Em Dubai, centro econômico dos EAU, cidade que abriga os mais arrojados projetos arquitetônicos, o edifício mais alto do mundo (Burj Al Khalifa) e onde se implantou uma ilha no mar para, nela, se construir um hotel 7 estrelas, a Justiça se aplica de forma diferente.

Os juízes são, no elevado percentual de 80%, estrangeiros. Eles são escolhidos com base nas notas obtidas no curso de graduação em Direito e, normalmente, ingressam como assessores em um tribunal, sendo depois convidados a tornarem-se juízes. Tal qual na Itália, promotores e juízes pertencem à mesma carreira e ingressam recebendo em torno de U$ 10.000. A parte administrativa do tribunal fica a cargo de um diretor-geral (court administrator), nomeado pelo governador, que tem poderes absolutos sobre recursos humanos, tecnologia da informação e finanças, cabendo ao Presidente apenas a supervisão.

Além do tribunal Sharia, Dubai possui um Tribunal Civil e Criminal onde se decidem questões de interesse local e nele se adota o sistema da Civil Law, ou seja, o Direito codificado. Absolutamente adaptado às evoluções tecnológicas, com transparência, possibilita-se aos que o procuram informações eletrônicas sobre todos os aspectos administrativos (v.g.,orçamento) e evidentemente, sobre os processos judiciais.

Nestes tribunais o idioma utilizado é o árabe. As salas de audiência possuem cerca de 20 cadeiras para os que assistem ou aguardam o julgamento. Advogados aguardam os seus casos nas cadeiras, vestidos com becas. Um tablado alto, de onde um ou três juízes julgam, dependendo do valor da causa. Vestem-se formalmente e usam uma faixa, assemelhada à presidencial no Brasil. Se o valor dado superar algo em torno de R$ 180.000,00, serão três julgadores. Se abaixo, apenas um.

Os advogados participam da sessão de julgamento na parte de baixo. Não há mesa, nem uma tribuna para falarem. Eles permanecem em pé, fazem anotações e fazem seus requerimentos sobre uma mesa em forma de meia lua. Réus de processos criminais ficam na mesma sala, porém separados por uma divisão de madeira ao lado direito do recinto. Não há Defensoria Pública, para eventuais necessidades (são raríssimos os excluídos sociais) e nem Ordem dos Advogados.

Mas a grande inovação do emirado de Dubai foi a criação de um Tribunal Comercial. Movimentando valores gigantescos nas transações comerciais, não apenas do petróleo e gás, mas também das importações que faz e de ter se preparado para receber milhares de turistas, Dubai teve que adaptar-se às regras do comércio internacional. Grandes investidores reclamam uma Justiça rápida e previsível e, quando isto não lhes é fornecido, desistem dos negócios ou exigem Tribunais Arbitrais. Dubai adaptou-se.

Em 2004 foi criado o DIFC – Dubai International Financial Centre Court, que é uma Justiça especializada em disputas de natureza comercial, locais, regionais e internacionais. O DIFC está localizado no meio de imponente centro financeiro da cidade de Dubai e não em um setor de tribunais. Há uma primeira instância e um Tribunal de Apelação, com um total de oito magistrados, a maior parte estrangeiros, sendo o presidente oriundo de Singapura. Sob forte influência das cortes britânicas, o DIFC utiliza-se do idioma inglês e o sistema é o da Common Law. Os julgamentos são céleres e o tribunal tem os mais avançados recursos tecnológicos do mundo. Suas decisões não admmitem recursos e são executadas na corte de Dubai, para tanto, devendo ser traduzidas para o árabe.

Como se vê, trata-se de país com um sistema judicial absolutamente diverso do nosso, fruto de uma cultura muito própria. Com a globalização diminuindo as distâncias entre povos e nações e o aumento da participação do Brasil na exploração do petróleo, torna-se cada vez mais importante conhecer a Justiça de países como os Emirados Árabes Unidos. O estreitamente das relações econômicas do EAU e outros países emergentes (v.g., Índia e Rússia) recomenda a atenção daqueles que se dedicam ao Direito Econômico, outrora chamado de Comercial.

Finalmente, registra-se um aspecto em que os EAU e o Brasil se aproximam. Nos EAU os discursos, palestras, apresentações, são precedidos da saudação “as salaamu alaikum”, que significa “a paz esteja convosco”, ao que o outro responde “wa-alaikum as-salaam“, ou seja, “também você esteja em paz”. Nós brasileiros também gostamos de saudações e a isto chamamos “fazer salamaleques”, palavra derivada e adaptada da saudação árabe “salaamu alaikum”.

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