Ideias do Milênio

"Os jornalistas se transformar em alvos nas guerras"

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13 de dezembro de 2013, 7h00

Entrevista concedida pelo jornalistas norte-americano Jon Lee Anderson ao jornalista Marcelo Lins , para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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A distância que uma testemunha tem dos fatos, maior ou menor, pode influenciar a sua percepção da verdade? Para escrever o perfil de um personagem histórico vivo, é fundamental entrevistá-lo? Faz algum sentido um biógrafo pedir autorização para trabalhar à família de um possível biografado? Essas são algumas das muitas perguntas que inquietam, mobilizam e preocupam os jornalistas, principalmente quando precisam construir uma carreira baseada na contextualização e na análise de um acontecimento, uma pessoa, um movimento social ou uma época. Entre esses profissionais da notícia, da palavra e da imagem, há os que não hesitam em arriscar a vida cobrindo conflitos armados, tentando estar o mais próximo possível dos fatos para trazer um olhar próprio sobre o sofrimento e as implicações do poder. É gente que vê o ofício quase como uma profissão de fé. Jon Lee Anderson se enquadra nessa categoria. O americano correspondente de guerra com larga experiência escreveu um alentado perfil de Saddam Hussein nos dias que precederam a queda de Bagdá na guerra do Iraque. O detalhe é que o repórter nunca esteve cara a cara com Saddam. Também radiografou figuras emblemáticas como Fidel Castro, Pinochet, Hugo Chaves e ganhou fama mundial com uma biografia de Ernesto Che Guevara. Em entrevista ao Milênio em recente passagem pelo Rio de Janeiro, Jon Lee Anderson falou sobre a busca da verdade, as ideologias, o trabalho de biógrafo e a revolução tecnológica no jornalismo.

Marcelo Lins — Uma coisa simples que eu gostaria de saber de você: o advento das tecnologias novas para você que não trabalha diretamente com hard news, mas com elaboração, com análise, mudou alguma coisa na sua forma de trabalhar?
Jon Lee Anderson — Hoje eu tenho a possibilidade de, além de minhas crônicas e meus perfis longos, fazer blogs e comentários, que são mais imediatos. Não são exatamente hard news, mas, durante a revolução na Líbia, eu escrevia uns posts, umas publicações, quase como pequenas crônicas. Diariamente ou a cada dois dias, seguindo o rumo da guerra. Depois, escrevi uma crônica longa. A tecnologia, nesse sentido, afetou a minha vida. Ela a complicou, por um lado, me obrigando a trabalhar mais, mas também me abriu novas possibilidades.

Marcelo Lins — Você tocou no assunto guerra, que é uma das suas especialidades, as guerras contemporâneas, você esteve em várias. E eu vi você falando em uma palestra aqui no Rio que nos últimos três anos morreu mais amigos seus do que nos tantos anos anteriores onde você também esteve em guerra. A que você atribui isso?
Jon Lee Anderson — O mundo está mais violento. Antes, um jornalista podia morrer numa guerra por acidente, como uma bala perdida ou em um acidente terrível próprio da guerra, uma bomba, uma mina. Perdi amigos assim e muitos jornalistas morreram pelo mundo. Mas, nos últimos anos, nós nos transformamos em alvos. Em alvos dos bandos nas guerras. Os meios de comunicação, a televisão e a internet, se transformaram numa arma a mais na guerra. É óbvio. Procure no YouTube e achará vídeos de decapitações, coisas horríveis que os bandos em conflito, os extremistas, fazem para amedrontar e mandar mensagens aos outros. Os traficantes do Brasil fazem isso, os “narcos” do México, os da Al-Qaeda na Síria. É um mundo muito feio e muitas batalhas são travadas, já que são muito ideológicas, através dos meios de comunicação. E nós estamos no meio desta guerra. Os violentos agora nos vêem como bucha de canhão. Então, alguns dos amigos que morreram nos últimos anos morreram porque, como eu dizia, o mundo está mais violento, mais tiros são disparados. Alguns foram atingidos por tiros ou por estilhaços de um morteiro. Mas alguns foram assassinados pelo simples fato de serem jornalistas, e não porque eram traficantes ou bandidos, não por terem matado alguém, mas por fazer seu trabalho. E isso é nefasto, essa é a grande mudança no mundo hoje em relação a 30 anos atrás. E isso põe em risco a nossa profissão e até a democracia. Não digo que eu seja um grande paladino da democracia, mas em conjunto, nós, os jornalistas, somos os únicos que informam o grande público. Entre os extremistas, os violentos e os traficantes, somos só o que existe. E somos poucos. Se nos matam, quem vai informar? O relações-públicas do traficante da vez, ou do chefe de milícia da vez.

Marcelo Lins — Você falou em democracia e da importância da presença e do olhar do jornalista na democracia. Num dos tantos perfis seus na internet, buscando um pouquinho de informação a mais para essa conversa aqui, a primeira frase que aparece é: “Jon Lee Anderson, jornalista de esquerda com grande trabalho, não sei o que…” Você se definiria como um jornalista de esquerda? O que isso significa para você?
Jon Lee Anderson — Não sei quem me pôs esse rótulo. Não diria que sou de direita, mas nunca disse que sou de esquerda. Não sou de dogmas. Eu sou humanista. Nunca fui membro de nenhum partido. Já incomodei tanto os dogmáticos do marxismo quanto os dogmáticos e ideólogos da direita. Em geral, tendo a achar que as pessoas um pouco mais à esquerda têm a mente mais aberta e são menos preconceituosas que as de direita. Os conservadores, por definição, são pessoas que querem conservar o status quo, que não estão dispostas a abrir os olhos ou talvez até os benefícios de uma sociedade a mais gente. Querem aferrar-se, são conservadores. Os liberais, ou de esquerda, tendem a abrir. Alguns vão longe demais, e o que sabemos é que, no final, os extremos se encontram. E os dogmáticos sempre se encontram no final. Então eu não sou membro de nenhum partido, mas, em geral, eu prefiro que não me chamem de nada. Sou jornalista.

Marcelo Lins — O seu trabalho, talvez, de mais peso ou pelo menos de maior publicidade, a biografia do Che, um livro lançado em 1997 que continua repercutindo até hoje. E há críticas dos dois lados: há gente de esquerda que diz que você humanizou demais o Che e tirou um pouco dá áurea mítica dele; há gente de direita que diz que você, ao contrário, endeusou ele mais um pouco porque teve acesso a documentos e informações diretamente em Cuba. Como fazer esse balanço e como não se afogar em tantos detalhes na vida de um personagem tão complexo?
Jon Lee Anderson — Me dei conta de que os únicos livros existentes sobre ele tinham sido escritos logo depois de sua morte. Ou eram demonizações, em que Che era um diabo com chifres; ou ao som de violinos e Che era um anjo da guarda. Não havia nada crível. Além disso, nenhum desses livros permaneceu. Era preciso procurá-los em sebos, bibliotecas, nos arquivos. Não havia uma boa biografia porque não havia um Che crível. Eu quis reencarnar o homem e descobrir quem ele era. Se era uma figura mitológica… Como foi que um homem de carne e osso como você e eu adquiriu essa auréola, essa reputação? Curiosamente, 15 anos depois de ter escrito meu livro, como você bem disse, tenho detratores dos dois lados. É a mesma coisa de antes: os de esquerda querem que ele seja sempre um anjinho. O Che humanista, que amava a juventude e não sei o quê, que não executou ninguém. Ele executou, sim. E também tinha suas virtudes. E os de direita, que querem pintá-lo como um sádico porque ele executou pessoas. Não era um sádico, mas executou. Ou seja, é um homem real, que viveu num determinado momento histórico e tinha seus defeitos e suas virtudes. Então, me alegra muito que os extremistas fiquem contrariados, porque as coisas são assim. O mundo não é branco e preto, a realidade é difícil.

Marcelo Lins — A gente sabe que você teve acesso a muita coisa pessoal dele, inclusive o gabinete, o escritório onde ele trabalhou, o quarto e tudo. Houve uma autorização formal que influenciou o jeito como você teve que escrever? E eu pergunto isso obviamente por conta de uma longa discussão que tivemos aqui no Brasil e estamos tendo ainda sobre autorização de biografias. Você aceitaria, e nesse caso aceitou, algum tipo de direcionamento que tinha a ver com autorização de você chegar a esses documentos? Faz sentido isso?
Jon Lee Anderson — Não sei se entendi toda a pergunta, mas explico. O fato de eu ter obtido a chancela da viúva de Che não quer dizer que me estendessem o tapete vermelho em Cuba nem que eu tivesse o beneplácito ou o respaldo pleno da Revolução Cubana. E havia, dentro da ilha, os que simpatizavam com o meu projeto e os que não gostavam dele. E eu não tive três anos fáceis em Cuba. O que aconteceu? A viúva de Che e algumas pessoas próximas acreditavam em mim, mas não controlaram o produto final. Terminei o livro morando na Espanha. E passei dois anos escrevendo sem que ninguém o visse. Pessoas próximas a Che, inclusive a viúva, não ficaram satisfeitas com algumas coisas do livro. No final de tudo, os mais chegados a Che e os que o conheciam melhor me disseram e mandaram recados dizendo que meu livro era muito honesto e, por isso, era bom. Mas ele não circula em alguns lugares.

Marcelo Lins — Circula em Cuba?
Jon Lee Anderson — Para os de direita que me acusam de ser agente dos cubanos, saibam que não circula em Cuba. Muitos cubanos o têm, mas não está nas livrarias oficiais. Foi uma biografia autorizada? Não é uma biografia oficial. Até certo ponto, autorizada por quem? Pela viúva. Eu não diria que foi autorizada pela Revolução Cubana. É a minha biografia de alguém morto. Agora, aqui no Brasil estão debatendo uma lei que reprime a possibilidade de se escrever sobre alguém vivo. Uma coisa é não poder escrever sobre Caetano Veloso, mas isso implica não poder escrever sobre Dilma Rousseff, ou Sérgio Cabral, ou o governador do Pará. Cuidado com essas leis, porque começam com celebridades e terminam com os políticos, os pecuaristas. Qualquer pessoa de vida pública pode alegar que também está coberta por essa lei. Então o que vai acontecer com essa lei? Isso acaba por cegar e ensurdecer uma população inteira. Se é verdade que vivemos numa época em que há informações demais, paparazzi demais e uma televisão fofoqueira demais, será que a resposta é abolir as biografias de pessoas vivas? Não. É educação e exigir mais dos meios de comunicação, que já têm bastante controle, sobretudo a televisão, para que suba o nível do discurso nacional e não haja morbidez nem coisas feias e excesso de intimidade quando não se deve. Mas as figuras públicas têm o dever social de compartilhar sua vida. Se elas têm problema em estar na arena pública, querem o quê, se rodear de guarda-costas para não serem vistas por trás?

Marcelo Lins — Das figuras públicas hoje em evidência — como grandes líderes mundiais, Obama, Angela Merkel, Dilma eventualmente —, alguma te chama a atenção para fazer uma biografia ou no mínimo um perfil muito alentado novo?
Jon Lee Anderson — Merkel, não. Da América Latina, me interessa muito a figura de José Mujica, o presidente do Uruguai, porque ele é muito diferente dos outros políticos.

Marcelo Lins — Trouxe algo novo.
Jon Lee Anderson — Sim, parece um homem de outro tempo, e até certo ponto a sua presença é um desafio. Apesar de eu não concordar com tudo que ele diz em matéria de política. Essa coisa de legalização da maconha, sua solidariedade com Maduro… Há coisas controversas, mas o fato de ser um homem simples, que dirige um Fusca dos anos 60, mora numa casinha normal e só aceita US$ 1 mil de salário, me parece admirável. E isso faz com que eu me interesse por ele. Raúl Castro certamente, e Fidel se ainda for possível. São essas figuras que ainda tenho vontade de conhecer e fazer um perfil de envergadura. Por ser mau, maluco e malandro, eu me interessaria por fazer um perfil de Putin. Por ser, para mim, um dos homens mais cruéis da Terra.

Marcelo Lins — Putin, que não custa lembrar, está nesse momento abrigando ao Snowden, que foi o homem que revelou ao mundo tantas informações. Quer dizer, que contradição…
Jon Lee Anderson — Que contradição… Pois é. Então, vivemos num mundo cheio de contradições. Ele é um tipo fascinante para mim por isso. Ou seja, por ser detestável, ele me intriga tanto quanto, no seu tempo, Saddam Hussein me intrigava. E eu viajei ao Iraque de Saddam Hussein para, naquele momento, conhecer quem, para mim, representava a pior tirania sobre a face da Terra. Para mim, o modelo Putin é uma das coisas mais nefastas da atualidade. Porque seu modelo de reprimir a imprensa de matar os jornalistas, de se apropriar dos recursos nacionais e colocá-los em seu bolso é o modelo que está sendo seguido em outros países que dizem ser democráticos, mas que buscam aumentar seu controle graças a arranjos políticos e comerciais feitos pelas costas da população.

Marcelo Lins — Essa não é a sua primeira visita ao Brasil, você já esteve aqui outras vezes. Em uma dessas viagens, foi fazer uma matéria com um traficante de drogas, chegou até ele. No Brasil de hoje, pelo que você viu em volta, o que você teria vontade de ir atrás para investigar um pouco e tentar ver com um pouquinho mais de detalhe e minúcia?
Jon Lee Anderson — Eu gostaria de dar uma volta. Nesta viagem não posso, mas depois do Ano Novo voltarei com mais tempo se puder. É o meu plano. O Brasil me fascina, sou apaixonado por sua sociedade e também por seus problemas, porque acho que pode servir de modelo para outras sociedades, além da integridade própria que tem. Eu sempre penso: o Rio de Janeiro, por exemplo, é uma das cidades mais belas do mundo. Ao mesmo tempo, tem aspectos muito inquietantes e que ainda estão por aí. Eu sempre disse que o Brasil é um país tão forte, com uma população tão criativa e vibrante, uma economia pujante, e o Rio, sendo uma cidade de todo mundo… Se for possível resolver os problemas daqui, seria um modelo para muitas outras sociedades. E creio que seja uma questão de liderança, visão e apoio dos cidadãos para se conseguir isso. Eu soube que, desde que estive aqui entre os traficantes, houve a implantação das UPPs. E sei que agora há muitos questionamentos a esse modelo. E acho válido agora voltar a olhar o que está havendo para ver aonde irá parar. Talvez por aí fosse o meu olhar, espero, mais amplo. Estou disposto a ir além disso também. Mas, sim, eu adoraria. É um tema válido.

Marcelo Lins — Voltando a falar um pouquinho do mundo da informação, do volume que está a um clique de distância, tivemos ao longo desse ano todo no Brasil muito debate que parecia querer opor o trabalho do jornalismo feito à antiga com um jornalismo presente nas manifestações — por exemplo, com câmeras na mão. Faz sentido isso ou tudo faz parte de uma construção?
Jon Lee Anderson — Sim, entendo. Acho que o jornalismo se ampliou e isso não tem volta, mas o fenômeno novo não implica necessariamente a extinção do outro. Ou seja, a televisão e os jornalistas visuais têm desafios particulares, mas nós, jornalistas em geral, temos, acredito, o dever de informar da maneira mais imparcial possível. Ou seja, se a uma manifestação vão 100 jovens com iPhones, que postam no YouTube e em outros canais, e dão sua opinião, isso é um jornalismo de cidadão e um pouco ativista. Mas falta uma visão panorâmica, uma reflexão contextualizando para se entender o fenômeno. Acho que a experiência conta muito. E isso ainda vem do jornalismo escrito e de jornalistas experientes da TV e do rádio, por que não? No momento, vivemos uma fase incômoda. Alguns dos velhos aprendem as técnicas novas para não ficar de fora, para aprender e ficar em dia, assim como muitos jovens recorrem a experiências nossas. É isso que estou fazendo aqui no Rio. E sabem que têm de ir além daquele parágrafo que podem postar no Twitter. Eles sabem que lhes falta mundo, escola e rigor. Uma coisa é ser ativista e outra é ser jornalista. No momento, não tenho a resposta clara, porque estamos em plena transição, mas eu acho que vamos continuar precisando da imprensa tradicional. Ao mesmo tempo, não podemos dizer que o novo jornalismo vai se extinguir. Vai haver uma retroalimentação e coabitação. Alguns morrerão e formarão gêneros novos, mas estamos num momento de transição, que é bastante incômodo e ao mesmo tempo vibrante.

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