Interesse do menor

Devolução de criança a país de origem pode ser nefasta

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  • Maristela Basso

    é professora de Direito Internacional da USP doutora em Direito Internacional e Livre-Docente em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo integra a lista de árbitros Brasileiros do Sistema de Solução de Controvérsias do Mercosul e a lista de painelistas especialistas em propriedade intelectual do Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio OMC.

11 de dezembro de 2013, 12h47

A Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças foi concebida pela ONU em 1980, com o escopo de proteger as crianças dos efeitos danosos do sequestro internacional ou da retenção ilícita, praticados pelo pai, ou mãe, que não tem a guarda da criança, e sem a autorização do outro.

A principal característica da Convenção é o mecanismo de “retorno imediato” do menor ao país de origem, previsto em seu artigo 12, com base na “presunção”, muitas vezes equivocada, de que, nesses casos, o melhor para a criança é o seu retorno imediato ao país de residência habitual da (ex)família, afastando-se as discussões sobre o melhor interesse do menor, o real conceito de “família” e o bem-estar de todas as pessoas envolvidas: pai, mãe e filho(s).

Na prática dos casos concretos, essa presunção pode ser afastada por causar danos à criança, e por estar a “família” já comprometida em sua saúde moral e afetiva. Por essas razões, a própria Convenção prevê exceções ao retorno imediato da criança nos artigos 12(2), 13 e 20, os quais abrem a possibilidade de discricionariedade da autoridade judicial ou administrativa (do país que recebe a ordem de devolução) em determiná-lo ou não, cabendo ao genitor que se opõe ao retorno do menor o ônus de provar que, de fato, existe grave risco para a criança se ela voltar ao país de origem.

Passados mais de trinta anos da elaboração dessa Convenção, o que se tem observado na prática (tanto nacional, quanto internacional) é um aumento no número de genitores com a guarda dos filhos (unilateralmente), em sua maior parte mães, acusados de praticar os atos previstos na Convenção: sequestro e retenção desautorizada. Diante das inúmeras injustiças e equívocos praticados, surgiu a necessidade de revisão dos seus preceitos, discussão em curso na grande maioria dos Estados-membros da ONU hoje.

Daí por que a aplicação da Convenção não é pacífica em vários países do mundo e já existe uma Comissão Especial para sua revisão, responsável pela discussão de propostas e encaminhamento de mudanças urgentes. Razão pela qual, como está atualmente redigida, tal Convenção não é um instrumento jurídico que possa ser aplicado internamente pelos Estados-membros sem restrições e limitações. E o mesmo acontece no Brasil.

Do que se conclui que o emprego de uma interpretação restritiva na aplicação da Convenção de Haia, isto é, da possibilidade de averiguar o dano emocional a que se sujeita a criança, em caso de retorno imediato, bem como os efeitos do retorno da criança ao país de origem da família que se desfez sobre os demais membros, em momento algum fere as obrigações contidas na Convenção ou viola a reciprocidade em atos internacionais. Aqui se destaca a capacidade/poder da autoridade local (judiciária ou administrativa) de ponderar em que dispositivo legal melhor se enquadra o caso concreto, e até mesmo de negar a aplicação da Convenção e se recusar à devolução da criança ao país que a requer com fulcro na Convenção mesma.

Ainda, no que se refere à aplicabilidade da Convenção, sabe-se que esta, quando internalizada à legislação nacional, passa a integrar um sistema harmônico de direitos e obrigações. Dito de outra forma, não se aplica a Convenção de Haia em detrimento da Constituição Federal brasileira, do Código de Processo Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como de qualquer outro diploma legal brasileiro. Aplica-se a Convenção em harmonia com o direito pátrio e, como tal, ela deve ser interpretada conforme os princípios que regem nosso sistema jurídico, pois, se assim não fosse, seria ilegal e não teria validade.

Senão bastasse, a Convenção dos Direitos das Crianças prevalece sobre a Convenção de Haia.

A lógica legislativa foi construída de maneira a conferir previsibilidade às relações jurídicas e a minimizar os danos às pessoas, até que se atinja uma decisão definitiva. Respeitá-la significa, também, ter presente que a ordem internacional deve funcionar em harmonia com o sistema jurídico nacional: material e processual.

Ao analisar os efeitos da Convenção de Haia no Brasil, constata-se que diferenças substanciais emergem caso a caso, mas, o mais preocupante, são as decisões judiciais de primeiro grau brasileiras, que determinam o retorno imediato da criança ao país de origem da (ex)família que se desfez. Ademais, determinam o retorno “em poucos dias”, com ou sem o genitor com quem a criança (às vezes em tenra idade) convive.

Certamente, quando acontece uma separação familiar, a criança é privada do convívio diário com um dos genitores. Não se afirma, com isso, ser o pai ou a mãe a pessoa mais importante para a criança; o que se destaca é que, ao primar pelo bem estar da criança, a Convenção de Haia confere ao juiz a autoridade para analisar qual dos genitores detém meios mais adequados para desempenhar os cuidados diários com o filho e qual o meio social e familiar mais adequado ao seu crescimento e desenvolvimento psíquico e emocional.

Outra importante questão que se enfrenta com a Convenção de Haia é a fixação do conceito de “residência habitual” da criança, segundo o qual se determinará se a retenção, em outro país, é ou não ilícita.

O risco grave à criança, previsto nas exceções da Convenção, configura-se exatamente pela perda dos vínculos afetivos e do cotidiano, já estabelecidos entre a criança e os demais membros da família, ou seja, pelos sofrimentos emocional, afetivo e moral pelos quais podem passar, também, o pai, a mãe e os irmãos da criança.

A aplicação da Convenção no Brasil, portanto, somente deve acontecer se todos os membros da família que se desfez forem levados em conta. A devolução da criança ao país de origem, muitas vezes, traz efeitos nefastos não apenas ao menor, mas a todos os membros da família desfeita e daquela que existe e acolheu genitor e filho que vieram se abrigar no Brasil.

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