Inquirição de testemunhas

Investigação judicial não entra nos poderes pertinentes ao juiz

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11 de dezembro de 2013, 7h06

Acreditamos que ainda há terreno fértil para argumentações, no que se refere ao conteúdo da matéria veiculada pela revista Consultor Jurídico, no dia 19 de novembro, sob o título Inverter perguntas na inquirição não anula o processo.

O sistema acusatório e público foi alçado pela Carta Constitucional, afastando-se das desinteligências do modelo inquisitorial. Mas na lida diária forense é isso mesmo que acontece? Algumas posturas antidemocráticas atormentam a infante Constituinte Brasileira, ainda que se reconheça que a sua estrutura principiológica estaria apta a garantir a continuidade da democracia.

Nos dias atuais, quando se trabalha com a perspectiva democrática, se reivindica a observância e a aplicação do sistema acusatório, centrado na ideia de ser este um princípio de garantia. Além de ser necessário garantir um juízo imparcial e afastado da condução dos trabalhos probatórios, exige-se do órgão julgador não só a tarefa de motivar, de forma pujante suas decisões, mas também o de estabelecer uma via interpretativa afinada com as bases constitucionais de proteção aos direitos humanos. Buscar um viés de compreensão da norma processual de dimensão constitucional.

O princípio acusatório também pressupõe um ônus probandi endereçado a quem levanta a pretensão de acusar. Um sistema dessa natureza deve ser capaz de contemplar a igualdade de fala, de participação comunicativa entre os demais envolvidos. Deve assegurar que todos terão as mesmas oportunidades para refutar os argumentos produzidos pelo outro participante. Por outra vertente, os procedimentos formais do processo devem ser reconhecidos como legítimos por todos os atores processuais, com vistas a garantir a participação ativa dialogal nos espaços deliberativos.

A despeito dessas diretrizes fundantes do sistema acusatório, em águas brasileiras, porém, ainda não foi possível alcançar uma via segura para responder a todas as inquietações e reclames vivenciados no interior do processo criminal do século XXI. É certo que a partir da Constituinte de 1988, o processo penal precisou ser revisto, precisou se adequar às novas concepções democráticas. Essa constitucionalização do processo penal já não estava mais ancorada apenas na perspectiva de adequação das normas processuais aos novos dispositivos constitucionais de garantia. Era necessária uma reinterpretação integral dos instrumentos e mecanismos garantistas e da própria estruturação do sistema processual vigente. A constitucionalização do processo penal foi altamente benéfica para o campo de estudo, não só porque alargou as abordagens teóricas especificamente no contexto dos direitos fundamentais, mas primordialmente porque foram colocados em evidência os discursos práticos, isto é, a forma pela qual o sistema punitivo efetivamente opera e os métodos utilizados pelos profissionais envolvidos na aplicação do direito[i]. Então, se o princípio acusatório é um princípio de garantia, não há dúvida de que algumas premissas devem ser obrigatoriamente observadas.

É de se perguntar: juízos solipsistas se coadunam com a proposta do princípio acusatório? O conjunto de direitos e deveres e, inclusive, poderes dos atores processuais, postos de maneira estática, não dialogal e abstrata, não perfaz o que se espera do sistema acusatório. O princípio acusatório representa, como dito alhures, a garantia primordial que se revela a partir da efetividade do processo como instrumento de jurisdição.[ii] Dentro dessa perspectiva, entre os poderes do juiz, realmente não é possível encontrar aquele pertinente à investigação judicial. Quando muito, os princípios constitucionais da justiça material e presunção de inocência durante a instrução devem ser coordenados pelo julgador, e de forma moderada, conforme salienta Prado.[iii] Assim, zelar pelo respeito aos procedimentos democráticos para formação do corpo probandi, é medida sobre a qual não se pode tergiversar. Destarte, um processo penal evoluído democraticamente, sem que seja necessário fazer uso de reformas legislativas é aquele que considera incompatíveis os dispositivos do CPP que frustram o contraditório pleno. A não recepção das regras que exigem a arguição das testemunhas por intermédio do juiz limitando a participação das partes ou aquelas relacionadas com a inversão da ordem da arguição são algumas posturas que não se encaixam no sistema acusatório. (Nascimento, 2007).

A propósito, a título de ilustração prática, em recente julgado, a 2ª Turma do STJ (RHC/DF 110623. 2ª T. STF 2012) neste caso, na contramão do sistema acusatório, negou provimento ao recurso ordinário interposto pelo Ministério Público Federal em face de inversão na ordem das perguntas formuladas às testemunhas, em contrariedade ao que alude o art. 212 do CPP. O órgão do Parquet Federal sustentava que a magistrada de primeira instância, ao elaborar suas perguntas, em primeiro lugar, teria afrontado os princípios do devido processo legal, do contraditório e da iniciativa daquele órgão para a ação penal pública.

Outra hipótese recente que desnatura a percepção de um processo penal democrático, em sede de oitiva de testemunhas: a 2ª Câmara do TJ-RS (nº 70049677628) ao analisar uma preliminar de nulidade suscitada pela defesa entendeu que a inversão na ordem das perguntas constitui “mera irregularidade”, porquanto, não é vedada a formulação de perguntas pelo magistrado.

Estes dois exemplos, dentre muitos, demarcam a crise de legitimação da democracia e servem para atestar que os atores públicos processuais ainda trabalham com um universo autoritário. Trata-se de casos paradigmáticos que revelam como boa parte do judicialismo brasileiro permanece operando com visões solipsistas, ainda amarrado com as cordas da filosofia da consciência. Exige-se, sobretudo dos agentes públicos do Estado, uma especial capacidade de discernir o que é um processo democrático e o que é inverso a ele. O julgador deve estar preparado para resolver impasses metodológicos do caso concreto em bases eminentemente garantistas, estabelecidas pela Constituinte de 1988. E não é possível discernir o que é um processo democrático fazendo tabula rasa dos princípios constitucionais ali estatuídos.

Não é possível o magistrado participar dos trabalhos de coleta de prova, cuja tarefa — no sistema acusatório — recai às partes, e decidir conforme sua conveniência. Não é crível que certos princípios valham “de vez em quando” ou quando melhor convier ao julgador ou aos demais atores públicos. Ou seja: se a prova é firme, condena-se; se a prova é reticente, também se condena. Se o princípio é parco, não se utiliza; se a letra da lei não veda a formulação de perguntas pelo magistrado, não há motivo para interpretá-la segundo a Constituição. E por aí vai. Em nome do princípio “do livre convencimento do juiz”, aviltam-se direitos e a democracia perde espaço.

A decisão ora versada: “a verdade”, qualificada como ‘real’ (Que existe de fato; verdadeiro, segundo o mestre Aurélio), por verdade axiomática, não poderia ser assim adjetivada se ao ser revelada somente pudesse beneficiar uma das partes” (TJRS70049677628) perturba o sistema de garantias processuais.

É consabido que, de todas as formas, em múltiplos territórios e nas mais longínquas épocas, já se pretendeu descrever, conceituar ou definir a verdade. Dos diálogos socráticos, da forma tópica de argumentação de se conduzir a verdade através dos pontos de vista que se agrupam nos chamados catálogos de tópicos, passando pela verdade extraída dos modelos medievos inquisitoriais (onde o que menos importava era a verdade, mas a prova da razão pela força), ou mesmo quando, em Malatesta, para quem “a verdade, em si mesma, é a própria verdade” a verdade tomou formas e contornos diferentes. Nos dias atuais, o que se persegue é a verdade no campo processual, já que a extraída diretamente não se esgota. A decisão judicial, sob o olhar do constitucionalismo atual, consiste numa enunciação racional de argumentos. E esses argumentos devem ser sólidos o suficiente para que o círculo comunicacional se estabeleça. Os jogos que devem ser jogados aqui (Estado Democrático), diferentemente dos de lá (Idade Média), são os da linguagem livre e completa. A verdade que se persegue, ou pelo menos que se almeja, se origina do discurso, do diálogo e, para tanto, o critério deve estar escorado na coerência.

Por isso mesmo, não será simplesmente adotando uma postura solipsista que se alcançará o verdadeiro, (ou a “verdade real”) para só aí, buscar o amparo constitucional. A verdade processual, por sua vez, só terá condições de ser vislumbrada quando os princípios constitucionais democráticos forem realmente concretizados. Quando o processo estiver organizado de forma democrática. E a função precípua do magistrado dentro do princípio acusatório é o de assegurar que essa organização constitucional esteja sempre presente. Assim, insistindo no campo das provas, o processo será acusatório, realmente, se a condução dos trabalhos probatórios não for entregue ao juiz. Não há razão para o juiz continuar a inquirir testemunhas no modelo inquisitivo, de forma paradoxal ao que dispõe a nova redação do art. 212 CPP e diante das diretrizes marcadas pelo sistema acusatório[iv]. De outra maneira o processo criminal estará fadado a petrificar-se num ambiente de dominação. E ainda que não bastasse a gama de argumentos de ordem técnica, cabe ainda um reparo de natureza ética, eis que ao inverter a ordem de perguntas às testemunhas, também incorre o julgador em afronta ao princípio ético da imparcialidade[v].

É preciso remarcar que os homens já foram arrastados por esse processo de “escolhas subjetivas”. Mas o que há de diferente entre o sistema de outrora e o atual? Ora, a fase da (ir)racionalidade já passou, a falta de técnica e o desconhecimento sobre as coisas e as pessoas também. Do poder da divindade ao poder de um homem só, do l´Etat c’est moi ao “governo de todos e para todos”, galgamos a um nível de compreensão sobre a pessoa humana que nos permitiu introjetar um documento constitucional repleto de direitos e garantias.

Porém, embora tenhamos alcançado esse “sentimento” de respeito aos direitos das pessoas, e aí nos referimos ao ambiente processual, continuamos a conferir poderes a “um homem só”. E o que é pior, sem exigir dele que adeque seu discurso a uma fundamentação antecedida de um compreender transcendental, e não através de um elemento naturalista causal. Essas posturas antidemocráticas na condução dos depoimentos de testemunhas denotam a entrega do julgador ao modelo inquisitivo, cujo elo ao paradigma da subjetividade esquematiza a relação sujeito/objeto. Assim, é de se consignar as reflexões de Streck quando faz realísticas críticas ao dizer que, em plena vigência da Constituição de 1988, o próprio resultado do processo dependerá do que a consciência do juiz indicar, pois a gestão da prova não se dá por critérios intersubjetivos, devidamente filtrados, e pelo devido processo legal, e sim pelo critério inquisitivo do julgador. Para um processo democrático é vital que todos os personagens processuais assumam suas tarefas constitucionais.

Oportuno exemplo pode ser oferecido em torno da Justiça Militar da União. Alguns atores públicos vêm conduzindo os feitos processuais sob sua custódia de modo a adequá-los à Constituição vigente e ao Código de Processo Penal comum. Explica-se: a legislação processual castrense ainda mantém seu rito procedimental no modelo tradicional com nuances inquisitoriais. A lei dispõe que o magistrado — privativamente — deve conduzir os trabalhos de coleta de prova. É possível destacar duas situações bastante elucidativas para o momento: o interrogatório do réu (artigos 303 e 404 CPPM), e a inquirição de testemunhas (artigo 418 CPPM). Nesta última hipótese, os juízes militares, a acusação e a defesa devem formular suas perguntas, por intermédio do juiz auditor.

Por outro lado, o artigo 303 disciplina que o interrogatório será feito obrigatoriamente pelo juiz, não sendo nele permitida a intervenção de qualquer pessoa. Ambos os comandos, portanto, enfatizam a atuação do magistrado na condução dos trabalhos probatórios. Todavia, conforme assinalado alhures, observa-se na prática jurídica castrense que alguns atores públicos estão, não só, ajustando o rito de modo a possibilitar que as partes elaborem as perguntas diretamente para as testemunhas, mas também transferindo o interrogatório para o último ato instrutório, com vistas a adequar o processo ao sistema constitucional.

Quanto à mudança do interrogatório para o final da instrução, o STF teve a oportunidade de se manifestar no sentido de afirmar que o artigo 400 do CPP, com a redação dada pela Lei 11.719/2008, é prática benéfica à defesa, devendo prevalecer nas ações penais em trâmite perante a Justiça Militar, em detrimento do previsto no artigo 302 do DL 1.002/69, como corolário da máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares do devido processo legal (CRFB, art. 5º LIV)[vi]. O que releva traduzir neste espaço é o espírito de vontade e disposição de alguns personagens públicos para por em prática as diretrizes do sistema acusatório democrático.

O cerrar de cortinas do palco jurídico não ajuda a construção de um Estado de Direito. O exame crítico desses fenômenos é salutar e necessário. Além disso, os discursos teóricos sustentados por juristas precisam ser convertidos em discursos práticos, de modo a assegurar os bens inscritos na Carta de 88. Portanto, há que se exigir da comunidade jurídica linguagens coerentes a partir do que se “prega” e daquilo que se realmente aplica. Aquilo que se pretende como justeza, equilíbrio, liberdade e igualdade, conservando-se os ditames constitucionais, deve ser posto a serviço da práxis jurídica. Então, concebe-se que o sistema acusatório passa a ser o limite para as “cerimônias perigosas” se suas principais e essenciais funções forem realmente observadas e reclamadas pelos atores processuais.


[i]NASCIMENTO, R. A constitucionalização do processo penal: reinterpretando o processo penal a partir do princípio democrático. Lumen Juris, 2007, pp.858-878

[ii]HASSEMER, W. Fundamentos del derecho penal. Buenos Aires: Bosch, 1984.

[iii]PRADO, G. Sistema Acusatório. Lumen Juris,1999, p. 13

[iv]STRECK. L. Produção de prova cabe ao MP e à defesa. www.conjur.com.br. O novo Código de processo penal e as ameaças do velho inquistorialismo nas so(m)bras da filosofia da consciência. Processo penal. Constituição e crítica. Lumen Juris.

[v]Art. 16 Código Ibero-Americano de Ética Judicial

[vi]HC nº 115530/PR O Conselho Permanente de Justiça para o Exército (5ª CJM) rejeitou o requerimento da defesa quanto à realização do interrogatório do paciente ao final da sessão de julgamento, negando aplicação do art. 400 do CPP. A ordem de HC foi concedida para anular os atos processuais praticados após o indeferimento do pleito defensivo e permitir o interrogatório do paciente antes da sessão de julgamento, com aplicação subsidiária das regras previstas na Lei nº 11.719/08 ao rito ordinário castrense. No mesmo sentido: STF/HC nº 115698/AM 2013

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