Réplica para críticas

Contra “solipsismo dos exemplos”, é preciso ponderação

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10 de dezembro de 2013, 8h32

“A regra mais importante para toda coleta de dados é deixar claro como eles foram criados e como tivemos acesso a eles.”[1]

Há poucos dias, Streck[2] e Campos[3] publicaram duas críticas ao livro Judicialização ou representação?, de Pogrebinschi[4]. Como são complementares, a seguir trato ambas mais ou menos indistintamente.

Reputo equivocadas as críticas Streck-Campos. E, ao expressar os motivos, percebi que a melhor réplica a elas havia sido feita cinco anos atrás, quando Kapiszewski e Taylor avaliaram a produção latino-americana sobre comportamento judicial:

A maioria dos trabalhos aqui pesquisados não informou a técnica empregada para selecionar as decisões judiciais em que a análise foi baseada. Isso é perigoso de numerosas maneiras. Em primeiro lugar, isso significa que os autores poderiam, em teoria, enviesar suas amostras para os casos que sustentam seus argumentos.[5]

Talvez nada mais precisasse ser dito sobre as críticas Streck-Campos. O perigo mencionado por Kapiszewski e Tayor as atinge em seu erro fundamental. Pela dúvida, porém, adiciono quatro considerações que mostram por que essas críticas se enquadram no perigo referido.

Este trecho resume a tese de Pogrebinschi: “ao decidir as ações impetradas contra normas do Legislativo federal, o Supremo parece agir com bastante parcimônia, chegando mesmo a indicar algum tipo de deferência, quando não uma disposição, de preservar e aperfeiçoar o trabalho do Congresso.”[6] Nessa tese, destaco dois elementos.

O primeiro é empírico. A autora produziu informações sistemáticas sobre o comportamento da jurisdição constitucional abstrata brasileira em face de normas oriundas do Congresso Nacional, para o período de 1988 a 2009. Dos dados produzidos, é suficientemente sintético e contundente o de que, na jurisdição constitucional abstrata, a média de sentenças invalidando definitivamente normas do Congresso é de cerca de três por ano.[7]

O segundo é metodológico. Pogrebinschi disse que “o STF é mais parcimonioso em relação à atividade legiferante do Congresso Nacional do que a ausência de uma investigação empírica sobre o tema pode fazer supor.”[8] Ou seja, tendo descrito como os dados foram produzidos[9] – circunstância trivial em qualquer trabalho científico –, Pogrebinschi imputou à ausência de cautelas similares a existência de concepções opostas às suas.

Ao opor suas objeções, as críticas Streck-Campos cometeram vários equívocos, dos quais destaco quatro.


Minimizando os dados de Pogrebinschi, Streck indagou: “será que 14% de ações consideradas procedentes de uma produção legislativa de 21 anos é efetivamente pouco? Qual é o critério para o ‘pouco’ ou ‘muito’?”

Uma correção: a autora afirmou que 13,32% das ações (ADINs e ADPFs) propostas ao Supremo Tribunal Federal (STF) entre 1988 e 2009 foram julgadas procedentes (ou procedentes em parte).[10] E não que 14% “de uma produção legislativa de 21 anos” foi considerada procedente. O relevante aqui não é o arredondamento para cima que conveio a Streck, mas o universo: trata-se do total de ações propostas e não do total da “produção legislativa”, o que, de resto, não faria o menor sentido.

Feito o esclarecimento, retomo a pergunta: “qual é o critério para o ‘pouco’ ou ‘muito’?”

Tratam-se de 67 ações julgadas ao menos parcialmente procedentes pela jurisdição constitucional abstrata ao longo de 21 anos, totalizando uma média de três ações por ano. Ora, uma jurisdição constitucional abstrata que julgasse procedente um número de ações muito menor que três por ano seria simplesmente inoperante. E, supondo que a mera existência dessa jurisdição não é suficiente para justificar um diagnóstico de “ativismo”, então é necessário reconhecer que, por um critério conceitual, três ações procedentes por ano é efetivamente pouco.

Ou isso, ou “ativismo” não passa de um sinônimo pejorativo para “jurisdição constitucional abstrata”. Aliás, não é isso que dizem as críticas Streck-Campos? Como lembram, “mesmo uma Corte ‘não-ativista’ anularia (e deveria anular) uma lei se o ato normativo do Congresso não teve o respeito apropriado às limitações constitucionais.”[11]


O segundo modo pelo qual as críticas Streck-Campos minimizaram a importância dos dados de Pogrebinschi não passa de uma confusão lógica.

Para Campos, o problema é crer “que o uso de critério único, qualquer que seja, possa ser suficiente para cumprir o propósito de identificar e avaliar o ativismo judicial.” Abstratamente, esse postulado é correto. Em seu contexto, contudo, é falso. Porque, se, de um lado, é verdade que a existência de ações procedentes não é suficiente para que haja “ativismo”, por outro, é evidente que, para haver “ativismo”, é necessário que exista determinado número de ações procedentes. O crucial, portanto, é a distinção entre condições necessárias e suficientes. A existência de ações procedentes, de fato, não é suficiente para a haver “ativismo”, mas é necessária.

Feita a distinção, o comentário de Campos passa a sofrer de insuficiência epistêmica. Ele disse: “Pogrebinschi reduziu o ativismo judicial a critério único de identificação, qual seja a frequência com que o Supremo declarou a inconstitucionalidade de leis e atos normativos federais”. E sugeriu outros critérios, como o uso de procedimentos de interpretação expansiva. Ora, se há tão poucas ações procedentes, como há, ficam prejudicados os critérios sugeridos. Pogrebinschi poderia perguntar: é frequente o uso de procedimentos de interpretação expansiva pelo STF nas ADINs contestando normas do Congresso? E, ato contínuo, seria forçada a responder: posto que, para haver interpretação expansiva, é necessário que haja sentenças procedentes e posto que estas são pouco frequentes, então não são frequentes os procedimentos de interpretação expansiva. E poderia concluir esse silogismo banal aduzindo, com enfado: não são nem poderiam ser!

Mas esse truísmo lapidar foi contestado por Streck: “não é o fato – tese primeira de Thamy – de o número de decisões em controle de constitucionalidade que declaram a inconstitucionalidade ser baixo em relação às denegatórias que invalida a tese de o STF judicializar a política ou praticar ativismos.”

É espantoso! Como será possível que um tribunal seja “ativista” sem prolatar sentenças procedentes? A resposta para esse enigma parece advir de outra ordem de considerações. Abaixo, trato do equívoco conceitual das críticas Streck-Campos.


Este trecho dá algumas pistas para desvendar o enigma: “o ativismo é um problema de comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de sua subjetividade (chamo a isso de decisões solipsistas)”.

Então, o resultado das sentenças pouco importaria para a caracterização do “ativismo”. O decisivo não seria o resultado das decisões, mas o modo de tomá-las. “Ativistas” seriam os juízes “solipsistas”, que substituíssem “os juízos políticos e morais” (objetivos?) “pelos de sua subjetividade”.

Se a jurisdição “ativista” que, todavia, não prolata sentenças procedentes é o enigma de Streck, o “solipsismo” é seu desafio: como identificar sentenças em que juízos objetivos são substituídos por subjetivos?

Essa definição de “solipsismo”, proposta como um equivalente pretensamente óbvio para “ativismo”, não pode ser observada empiricamente. Por isso, é heuristicamente inútil. E, como formulação crítica, é, ao menos, imodesta. Pogrebinschi emprega “ativismo” como no livro de Tate e Valinder[12]. Ali, “ativismo” é uma expressão indefinidamente ligada ao conceito de “judicialização da política”, que, sinteticamente, refere-se à expansão do poder dos juízes sobre temas tradicionalmente decididos por legisladores e administradores.[13] Nesse contexto, em que se insere grande parte da literatura nacional e internacional e ao qual Pogrebinschi faz menção, não há referência à substituição de juízos objetivos por subjetivos, nem ao termo “solipsismo”.

Conquanto Streck tenha uma concepção original sobre o tema, “solipsismo” é “a doutrina de que toda existência é experiência e de que não há mais que um só sujeito dessa experiência. O solipsista pensa ser esse sujeito”.[14] É notável que, conhecendo o conceito, o autor desconsidere o debate sobre “ativismo” para empreender uma crítica fundada em uma noção tão… como direi?… solipsista. E é notável não apenas pela ironia, mas, sobretudo, porque as críticas Streck-Campos fazem desse conceito seu método. Essa é a natureza do quarto, último e fundamental equívoco.


No nível metodológico, Pogrebinschi argumenta: “o STF é mais parcimonioso em relação à atividade legiferante do Congresso Nacional do que a ausência de uma investigação empírica sobre o tema pode fazer supor.”[15]

E como as críticas Streck-Campos respondem à alegada ausência de investigações empíricas? Com investigações empíricas? Não, pelo contrário. Na metodologia do “solipsismo”, a empiria é substituída por “exemplos”, obtidos a partir de uma vista d’olhos no noticiário. Não é exagero meu. É precisamente isto o que dizem:

São milhares de ações constitucionais (que não ADIs) que acirram a judicialização cotidiana. Um olhar nas manchetes do site do STF de 25 de outubro 2013 dá mostra disso: questionada lei de Pernambuco que obriga planos de saúde a informar descredenciamento; liminar suspende cobrança de dívida previdenciária de município capixaba; professores da UFC não terão que devolver verbas recebidas de boa-fé […]. Manchetes de um só dia da vida do STF… [16]

O que esses “exemplos” talvez traduzam é um conceito, uma experiência cognitiva particular. Contudo, eles são tratados como empiria, como registros controlados da realidade. Experiência e realidade se confundem. Os exemplos de “solipsismo” se transformam em “solipsismo dos exemplos”. A existência é reduzida à experiência particular. E as críticas Streck-Campos pensam ser o sujeito dessa experiência, ou melhor, dessa realidade.

Se Pogrebinschi diz que o STF é mais parcimonioso que a ausência de uma investigação empírica pode fazer supor, as críticas Streck-Campos respondem, abarrotados de meia-dúzia de “exemplos”, que suas experiências cognitivas particulares encerram toda a realidade. E, não sem alguma razão, dão a isso o nome de “solipsismo”.

Decisões isoladas
Resumindo, para Pogrebinschi, não existe “ativismo” na jurisdição constitucional abstrata, porque:

decisões eventuais e isoladas, e que não sigam qualquer sistematicidade ou padrão, não são passíveis de configurar um processo, como sói ser aquele que se denomina ativismo político do Judiciário”[17]

Como contestaram as críticas Streck-Campos? Com decisões eventuais e isoladas! Em seguida, chamaram-nas de “exemplos”; disseram que traduziam a substituição de juízos objetivos por subjetivos; nomearam essa atitude de “solipsismo”; identificaram “solipsismo” com “ativismo”; e deixaram de lado os significados usuais dessas expressões. As críticas Streck-Campos inauguraram assim um novo método na investigação do comportamento judicial: o “solipsismo dos exemplos”. E o “solipsismo dos exemplos” escreveu nas linhas seguintes seu manifesto:

os números coletados [por Pogrebinschi] colocam uma cortina de fumaça sobre o imenso contingente de julgamentos ativistas dos Tribunais da República, que vão desde o simples descumprimento de direitos fundamentais (ativismo às avessas, pois não?) até decisões descontroladas fornecendo xampu para crescer cabelo e decisões proibindo a caça com base no princípio da dignidade da pessoa humana. […] Ou seja, o que é isto – o ativismo? O que é isto – a judicialização? O que é isto – a crise da representação?[18]

Esse trecho é primoroso! Para o “solipsismo dos exemplos”, é a pesquisa empírica que coloca “uma cortina de fumaça” sobre conceitos – “ativismo”, “judicialização”, “crise da representação”, “presidencialismo de coalizão judicial”(!) – explicitamente construídos sobre “imensos contingentes” de algumas caricaturas, que nem o pudor impediu de serem mencionadas: “xampu para crescer cabelo”, “caça com base no princípio da dignidade”, etc.

O erro fundamental das críticas Streck-Campos é ocultar o método de seleção dos “exemplos” que mencionam. Isso é perigoso, pois significa que os autores podem, em tese, estar enviesando suas amostras para incluir somente os casos que lhes favorecem. E seria igualmente irônico e lamentável que Streck e Campos tivessem eleito o conceito – “ativismo” –; a conveniência, selecionado os “exemplos”; e a fortuna, feito com que sua argumentação se baseasse na idéia de “solipsismo”.

Para Streck, “esses números escondem os demais julgamentos do STF”. Ora, são as amostras enviesadas que escondem os demais julgamentos. São elas, enfim, que colocam uma cortina de fumaça sobre o comportamento judicial. O viés recria a realidade a nossa imagem e semelhança. Ele faz ver “ativismo” no xampu e impede que vejamos o “solipsismo” em nós. O viés, a um só tempo, faz negar, contra os dados, que o STF tenha julgado procedentes poucas ADINs contra normas do Congresso, e faz afirmar, sem nenhum dado, estas coisas:

Sem dúvida, há muito mais ativismo judicial do Supremo além do que pode supostamente indicar a frequência de decisões de inconstitucionalidade; há muito mais ativismo judicial e judicialização da política além do controle concentrado de constitucionalidade no Supremo; há muito mais ativismo judicial nos desenvolvimentos decisórios do Supremo do que podem supor concepções ortodoxas de técnicas de decisão.[19]

Milhares de autos de ações constitucionais, recursos extraordinários, agravos, agravinhos, embargos de declaração e infringentes estão aguardando… Esses processos podem receber tanto o tratamento empírico, que coloca em dúvida conceitos naturalizados, quanto o tratamento do “solipsismo dos exemplos”, que, deixando os processos intactos, cita os “exemplos” das manchetes do dia, cria os conceitos que a imaginação puder, afirma o que quiser e o faz “sem dúvida”!


[1] KING; KEOHANE; VERBA. (1994), Designing social inquiry. New Jersey: Princeton University Press, p. 51.

[2] STRECK. (2013), “O que é isto, o ativismo judicial, em números?” Consultor Jurídico, 26/10/13.

[3] CAMPOS. (2013), “Ativismo judicial” Consultor Jurídico, 4/11/13.

[4] POGREBINSCHI. (2011), Judicialização ou Representação? Rio de Janeiro: Elsevier, pp. 63-64.

[5] KAPISZEWSKI; TAYLOR. (2008), “Doing courts justice?” Perspectives on politics, vol. 6, nº 4, p. 752.

[6] POGREBINSCHI, 2011: 9.

[7] Consideradas todas as ADINs e ADPFs julgadas entre 1988 e 2009. POGREBINSCHI, 2011: 63-64.

[8] POGREBINSCHI, 2011, p. 63.

[9] POGREBINSCHI, 2011: 13-15.

[10] POGREBINSCHI, 2011: 36-37.

[11] MARSHAL apud. CAMPOS, 2013.

[12] POGREBINSCHI, 2011: 4-5.

[13] TATE; VALINDER. (1995), The global expansion of judicial power. New York: New York University Press, p. 13

[14] SCHILLER apud. LALANDE. (1966), “Solipsismo”. Vocabulario técnico y crítico de la filosofía. Buenos Aires: El Ateneo, p. 974.

[15] POGREBINSCHI, 2011, p. 63.

[16] STRECK, 2013.

[17] POGREBINSCHI, 2011: 74.

[18] STRECK, 2013.

[19] CAMPOS, 2013.

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