Ideias do Milênio

'Papa Francisco transforma relação da Igreja com fieis'

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6 de dezembro de 2013, 7h46

Entrevista concedida pelo escritor norte-americano Thomas Cahill ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. 

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A era moderna começa na Renascença, na Itália dos séculos XV e XVI. Leonardo da Vinci, Michelangelo, Maquiavel, os filósofos humanistas redescobriam a cultura greco-romana e a Igreja Católica era questionada pela reforma de Martinho Lutero. O que o Ocidente é hoje, o que se pensa e se acredita dentro da cultura ocidental vem diretamente daquela época, de hereges e heróis. E esse é o título do último livro do escritor Thomas Cahill na série ‘A história não contada’. Católico de origem irlandesa, um dos biógrafos do papa João XXIII, Thomas Cahill encontrou o Milênio no Central Park, em Nova Iorque, para falar de hereges e heróis e também do Renascimento da igreja, deflagrado pelo novo papa Francisco, um humanista no Vaticano.

Jorge Pontual — Eu já li todos os livros da série “The Hinges of History”. Qual é a ideia? Por que “The Hinges of History”?
Thomas Cahill — São necessários sete livros para responder a esta pergunta. Como chegamos a ser as pessoas que somos? Eu me refiro ao mundo ocidental, que é…

Jorge Pontual — É o seu foco.
Thomas Cahill — São as Américas. Como nós não nos tornamos chineses? Como nós não nos tornamos árabes? Existe uma ligação, um vínculo distinto. Não é apenas uma coisa, a resposta não é simples. É uma série de passos que têm relação com duas fontes. Primeiro, os judeus e os antigos cristãos. Depois, os gregos e, até certo ponto, os romanos. Os romanos como uma espécie de veículo para o pensamento grego no Ocidente. Essas duas vertentes, que de muitas formas são totalmente diferentes, começam a se unir na Idade Média. Então, elas interagem de novas maneiras no período da Renascença e da Reforma.

Jorge Pontual — O que você acha, dentro daquilo em que se concentrou, que é especialmente novo e explica como nós somos?
Thomas Cahill — A Renascença e a Reforma, embora pareçam muito diferentes, partem de uma fonte simples, que foi a redescoberta da literatura e da arte clássicas. Então, alguém como Michelangelo, pela primeira vez em mil anos, é um artista jovem, capaz de olhar para uma antiga escultura grega, que estava desaparecida. Foi enterrada ou estava em algum lugar no leito do mar. Teve de ser levada para lá. No início, apenas algumas peças. Mas foi a redescoberta da arte do passado. Depois, de forma parecida, as pessoas começaram a dizer: “Nós não sabíamos disso, mas uma das nossas fontes é a literatura grega. Quem diria? Nós tínhamos esquecido.” Isso informou a literatura latina e, por conseguinte, a literatura italiana inicial. Remonta àquela época.

Jorge Pontual — Mas, para a Igreja, era pagã.
Thomas Cahill — Sim, mas o Novo Testamento foi escrito em grego. Por mais de mil anos, ninguém da Europa Ocidental leu o Novo Testamento em grego, que estava esquecido. Tirando algumas comunidades espalhadas de judeus, o hebraico tinha sido esquecido. Ninguém podia ler a Bíblia nas línguas originais. Traduziram e publicaram pela primeira vez o Novo Testamento em grego. E as pessoas voltaram a estudá-lo. De pessoas como Michelangelo nós obtivemos a arte. De pessoas como Erasmo e Lutero, nós obtivemos a reintrodução da erudição séria com relação à Bíblia. Foi um período muito teológico. Se você estudasse na Universidade de Paris, aprendia Teologia mais que qualquer outra matéria. Pela primeira vez, as pessoas reliam os antigos clássicos. Primeiro, os latinos. Liam, por exemplo, Virgílio, Cícero. Depois, leram mais a fundo os mais antigos, como Platão e os dramaturgos gregos.

Jorge Pontual — Claro que, com o advento da prensa, havia muito mais livros do que antes.
Thomas Cahill — Se você fosse à Universidade de Paris, que foi a principal instituição intelectual da Europa, nos séculos XII ou XIII, você encontraria um local que tinha cerca de 200 livros em sua biblioteca. Só isso. Era muito difícil. Uma grande biblioteca individual teria 20, 30, 40 livros. Títulos individuais. De repente, com a prensa, havia títulos por toda parte. Por causa disso, vimos um aumento da alfabetização. As pessoas ficavam em pé em praça pública ouvindo alguém ler o livro que tivesse sido impresso, e muitas pensavam: “Aposto que eu consigo fazer isso. Não parece tão difícil.” E a alfabetização no Ocidente significava aprender uns 20 símbolos, o alfabeto. Qualquer pessoa era capaz. Subitamente, vemos um novo aumento da alfabetização e um novo interesse pela leitura. Antes, era quase impossível. Apenas os ricos podiam se preocupar em aprender a ler, porque eram os únicos que podiam ter bibliotecas.

Jorge Pontual — Você mencionou que Lutero não só tornou a Bíblia acessível, pois a traduziu para o alemão, como também iniciou uma relação subjetiva com Deus. O que você escreve sobre o ego? O que nós chamamos de “ego”, de “personalidade”, de “personalidade individual” era algo que não existia antes. Houve uma atenção a isso?
Thomas Cahill — Não exatamente. Se voltar à alta Idade Média, ao auge da cultura medieval, havia pessoas como Francisco de Assis e Tomás de Aquino que não eram egoístas. Deus os livre! Francisco de Assis não era egoísta! Era a última coisa na cabeça dele. Era o mesmo com todos eles. Eles queriam ser obedientes a Deus. Subitamente, vimos pessoas dizendo “eu” pela primeira vez. “Eu conto, eu sou importante.” Vimos nas artes, com pessoas como Michelangelo, que certamente não era… Dá para sentir o ego em tudo o que ele fez. A estátua de Davi não é a estátua de um homem humilde. É um garoto que sabe quem ele é e diz “eu”. Ele está lá, nu, e é muito claro o que ele está fazendo. Com Lutero, temos um eu um pouco diferente. Alguém que diz: “Acho que vou para o Inferno! O que é que eu vou fazer? Não sei se Deus vai me perdoar. Pelo amor de Deus, o que eu devo fazer?” Mas é sempre “eu”. É um eu de outro tipo, um pouco mais próximo da norma germânica freudiana do que o que se vê entre os italianos, mas dos dois lados dos Alpes vemos essa elevação do ego. Pela primeira vez, desde a Antiguidade, os retratos voltam. As pessoas começaram a dizer: “Eu quero saber como é o sagrado imperador romano, o atual, o que temos agora. Como ele é?” “Nossa! Que nariz enorme ele tem!”

Jorge Pontual — Antes disso, eram apenas tipos.
Thomas Cahill — Francisco de Assis é mostrado centenas de vezes como o típico santo heroico. Ninguém sabe como ele era. Os diversos reis e rainhas… Não são retratos. De repente, surgem os retratos, com o interesse pelo indivíduo, que haviam desaparecido por um longo período. Nós temos um pouco disso na Antiguidade. Todo mundo sabe como era Alexandre, o Grande. Todos sabem como era Júlio César. Temos retratos precisos deles. Todo mundo sabe como era Sócrates. Mas pessoas comuns nunca tiveram esse tratamento. Então, começaram a fazer retratos de todo tipo de pessoa.

Jorge Pontual — Então, nós temos esse foco no humano, dessa perspectiva humana, a partir desse período. Nos século XVI, ou antes, no século XV.
Thomas Cahill — Remonta à segunda metade do século XIV. É quando começa mesmo a aparecer, com artistas como Petrarca. Nós vemos o início. Pessoas colecionando manuscritos e trabalhando. Trabalhando em manuscritos antigos.

Jorge Pontual — Mas esse humanismo, que foi característico dos últimos cinco séculos da cultura ocidental, está sendo ameaçado agora pela nova sociedade tecnológica atualmente?
Thomas Cahill — Bem, nós estamos mudando novamente. É difícil saber o que vai acontecer. Como eu falo no livro, quando Gutenberg produziu a Bíblia, as pessoas devem ter pensado: “Que legal!” Mas não imaginavam o que viria depois, a revolução que seria. Para eles, foi apenas outra maneira de se fazer a Bíblia. “É parecido com o que os escribas fazem, só que mais rápido.” Ninguém imaginava o que viria. Nós temos ideia do que vai acontecer?

Jorge Pontual — Há denominações muito liberais no cristianismo.
Thomas Cahill — Sim, sim.

Jorge Pontual — Parece que agora, a Igreja Católica vai passar de novo por um Aggiornamento. Foi o conceito por trás do Concílio Vaticano II. Francisco está indo por esse caminho?
Thomas Cahill — Eu acho fascinante o que está acontecendo. Espero que ele dê continuidade. Isso pode parecer uma terrível simplificação, mas, pela minha leitura da história papal, eu só encontrei três, aliás, só encontrei dois grandes papas. Gregório I (ou Gregório, o Grande), no final do século VI, início do VII, e João XXIII. O que é incrível a respeito de João XXIII é que, dentro do contexto em que ele se encontrava, ele criou uma revolução, e era um contexto em que isso parecia impossível. Tudo estava decidido de certa forma, não havia nada a ser feito. “O papa é infalível.” “Tudo o que ele disser, sejam quais forem as circunstâncias, deve ser aceito pelos fiéis.” João XXIII, depois de abrir o Concílio Vaticano II e insistir para o resto do mundo cristão ser representado lá, os cristãos não católicos, foi até eles e disse que achava maravilhoso e estava feliz que eles estivessem lá. E queria que eles soubessem que ele não acreditava que tivesse qualquer relação especial com Deus. Nada diferente de qualquer outra pessoa. Foi o final da infalibilidade papal! Ninguém quer voltar e analisar isso. Agora, temos um terceiro papa que diz coisas nessa linha. Ele está pegando os antigos contextos e virando-os de ponta-cabeça. No passado, as pessoas deviam ouvir o que o papa e o bispo diziam e aceitar. Ele disse: “A Igreja é o povo.”

Jorge Pontual — Todo mundo.
Thomas Cahill — É isso que nós devemos ouvir! Mas isso não… Ele chega até a citar o fundador de sua Ordem, Inácio de Loyola, que foi um dos maiores protofascistas de todos os tempos, que tinha regras para pensar com a Igreja. Dizia que devíamos concordar com a Igreja hierárquica. Esse homem diz: “Não, nós devemos pensar com todo mundo. A Igreja é o povo de Deus, e o povo de Deus é todo mundo.” É uma ideia totalmente nova. Não é, de forma alguma, a tradição compreendida. Certamente não teria sido compreendida pelos dois papas que o antecederam.

Jorge Pontual — É o dogma, nós sabemos o que Deus quer porque temos os dogmas. A meu ver, parece que ele diz que isso não é tão importante quanto estar aberto…
Thomas Cahill — Acho que ele está dizendo mais que isso. Ele é favorável a baixar a temperatura da discussão. Nós tivemos tantas pessoas que pensavam saber exatamente o que nós deveríamos fazer! E ele diz: “Não, não, não. Esta não é uma organização de cima para baixo, é uma organização que vai de baixo para cima. Não somos eu e os bispos que lhes dizemos o que fazer, são todos vocês que nos informam qual deve ser a nossa interpretação.” Eu acho que, se ele mantiver essa visão, será revolucionário.

Jorge Pontual — Você faz uma correlação entre esse novo aggiornamento e o que adveio da Renascença e daquela época?
Thomas Cahill Uma coisa muito interessante a respeito dessa entrevista que o papa concedeu é a considerável série de referências dele às artes. Não apenas à arte antiga. O artista favorito dele é Caravaggio, muito mais radical do que Michelangelo ou Leonardo da Vinci — Caravaggio morreu aos 39 anos e não era um santo, nem de longe; ele era cheio de cicatrizes de facadas, de brigas que teve em diversos bares e pelo que sei, não seguiu o caminho de ninguém. O filme favorito do papa Francisco é “A Estrada da Vida”, de Federico Fellini. É um ótimo filme! Não consigo imaginar os dois papas anteriores dizendo que esse era seu filme favorito. Não devem nem ter visto! É um filme perturbador e revolucionário a respeito da realidade do amor em contraste com suas diversas tolas interpretações e clichês na cultura. É um filme muito duro. Pode-se dizer que é profundamente cristão, mas não é cristão de nenhuma maneira formal e óbvia. Não é o tipo de filme que imaginaria que fosse passar em uma cerimônia papal.

Jorge Pontual — Você termina o livro falando sobre alguns católicos de enorme coração. Aliás, cristão.
Thomas Cahill — Sim. Um é papa, outro é um luterano moderno, e a terceira é uma mulher que eu conheci em NY.

Jorge Pontual — Mas o que é um cristão de coração? O que é necessário para ser considerado um?
Thomas Cahill — Pouco antes de ser eleito, o Wall Street Journal me pediu para escrever um artigo sobre como eu queria que o novo papa fosse. Eu escrevi o artigo, e eles se recusaram a publicar. Eu disse: “Seria muito bom se o novo papa fosse um cristão de verdade. Pouco deles foram.” Eu disse: “Quer dizer que ele deveria seguir Jesus, estaria do lado dos pobres.” Eu sei que o Wall Street Journal não publicou por isso, pois não tem interesse nos pobres. “Ele estaria do lado dos pobres, dos miseráveis, dos que precisam de ajuda. Ele seria totalmente contrário à guerra e a favor da paz. E, provavelmente, se ele defendesse essas causas, nós acabaríamos crucificando-o.” Alguém o crucificaria! Bem, não foi publicado, mas eu acho que é o caso. Esse é um cristão de coração. Um cristão de coração se importa com os necessitados, é a favor da paz, não da guerra, e defende essas causas. Não apenas balbucia a respeito.

Jorge Pontual — Está disposto a morrer por isso.
Thomas Cahill — Sim.

Jorge Pontual — De certa forma, sim.
Thomas Cahill — Então, muitos de nós certamente não somos cristãos. E me incluo entre esses. Você tem que ter muita coragem.

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