Rito específico

Ação civil pública não deve ser usada no direito individual

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3 de dezembro de 2013, 7h37

A ação civil pública foi prevista no Brasil em 1981 através da  Lei 6.938/81, a qual tratava de questão ambiental. Já a Lei Complementar 40/81 que regia o Ministério Público naquela época estabeleceu a atribuição do Ministério Público para ajuizamento de ação civil pública, sendo que o objeto era restrito à questão ambiental até o advento da Lei 7.347/85, a qual iniciou uma normatização sistêmica para defesa de interesses coletivos e difusos.

No artigo 1º, V, da Lei 7.347/85 há a expressão “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, o qual foi acrescentado pela Lei 8.078/90, conhecido como Código do Consumidor. Além disso, permaneceu os demais incisos  com outros interesses mais específicos, como os do próprio consumidor (inciso II). É claro que a lei não prevê o uso de ACP para direitos  individuais do consumidor, ou seja, precisamos de uma interpretação sistêmica e teleológica, uma vez que o objetivo da ACP não é atender interesse individual, exceto os individuais homogêneos.

Foi também apenas em 1990 com o advento do Código do Consumidor, em seu artigo 81, III,  que os direitos individuais homogêneos foram positivados e previstos como objeto de proteção mediante ação civil pública. Os direitos individuais homogêneos não se confundem com os direitos meramente individuais, pois os primeiros devem ter uma origem comum.

Importante destacar que o artigo 117 do Código do Consumidor estabeleceu que se aplica à Lei 7.347/85 as disposições do Título III ao acrescentar o artigo 21. O Título III citado refere-se às questões processuais. Contudo, importante ressaltar que há uma impropriedade técnica, pois se refere ao termo “individuais” e não “individuais homogêneos”, mas é claro que se refere aos “individuais homogêneos”. Nesse sentido transcreve-se o texto da Lei 8.078/90:

Art. 117. Acrescente-se à Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes:

"Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor".

A Constituição Federal estabeleceu no artigo 129, III, que cabe ao Ministério Público promover o inquérito civil e ação civil pública para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, e outros interesses difusos e coletivos, sendo que no tocante à legitimação para ações civis, não impede a de terceiros, como previsto no parágrafo 1º do mesmo artigo.

O artigo 127, caput, da Constituição Federal estabelece também que cabe ao Ministério Público a defesa dos interesses individuais indisponíveis. Contudo, isto  não significa que somente possa defender direitos através de ação civil pública. O Ministério Público pode usar outros instrumentos processuais cíveis que não sejam a ação civil. Importante transcrever o trecho da Constituição:

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

Logo, podemos reafirmar que o direito individual não é o mesmo que individual homogêneo. Para continuidade da compreensão cita-se o artigo 81 da Lei 8.078/90 que define o conceito de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos:

"Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."

Logo, verifica-se que o objetivo do sistema de direitos coletivos foca justamente na visão social do direito, e rompe com a visão clássica do processo judicial baseado  apenas no direito individual, ou seja, no egocentrismo. As ações de natureza coletiva, com as suas três espécies de objeto, focam no altruísmo, na formação de políticas públicas, ou seja, na coletividade, ainda que isto signifique algum sacrifício do direito individual isolado.

Quando falamos que há um sistema de ação coletiva, isto não significa que haja o caos como tudo referente a direitos coletivos ser ação civil pública, ou todos terem legitimidade ampla. Ou seja, a ação popular tem rito próprio e legitimidade própria. O Mandado de Segurança Coletivo também tem rito próprio e legitimidade específica, logo há outras formas processuais de proteção de direitos difusos e coletivos.

Os direitos coletivos estão na segunda dimensão dos direitos humanos (direitos sociais) e até na terceira (de fraternidade). Enquanto os direitos individuais estão na primeira dimensão dos direitos humanos, ainda que fundamentais, os mesmos não têm preocupação social como principal objetivo.

O artigo 91 da Lei 8.078/90 estabeleceu que os legitimados para a ação civil pública por direitos coletivos e difusos também têm legitimidade para a defesa dos direitos individuais homogêneos.  Porém, a jurisprudência tem restringido a atribuição legal do Ministério Público nos direitos individuais homogêneos quando há relevante interesse social. Por exemplo, tem negado legitimidade ao Ministério Público para defesa de interesses homogêneos de moradores de um condomínio, por não haver interesse social, mas específico de um grupo determinado e divisível.

Logo, precisamos separar o que é atuação do Ministério Público e o que matéria de Ação Civil Pública.  O Ministério Público atua como autor nas seguintes áreas:

1) direitos difusos

2) direitos coletivos

3) direitos individuais homogêneos, se tiver relevância social

4) direitos individuais indisponíveis.

Nos três primeiros casos cabe ação civil pública, mas no segundo não. Isto não significa que o MP não possa atuar, mas apenas deve usar a ação civil comum com o rito ordinário, sumário ou sumaríssimo. O problema tem ocorrido, pois tem havido uma incompreensão de que toda ação civil proposta pelo Ministério Público é ação civil pública, pois é uma instituição pública. Ora, isto seria o mesmo que considerar toda Execução Fiscal como Ação Civil Pública, pois a Fazenda Pública também é uma instituição pública.

Outro ponto importante e que gera confusão é o fato de que o artigo 201, V, da lei 8.069/90 prevê que cabe ação civil pública proposta pelo Ministério Público para proteção dos interesses individuais, coletivos e difusos na área da infância e juventude. A rigor, quando fala em interesses individuais, está falando nos interesses “individuais homogêneos”.

De fato, o sistema coletivo de ação judicial é recente no Brasil se comparado com o de direito individual. Além disso, temos uma cultura ocidental que valoriza o direito individual e patrimonial, o que acaba refletindo esta forma hedonista de concepção resolução de  conflitos que é confundida com “justiça”.

O próprio Judiciário resiste a julgar ações civis públicas e alega alguma barreira processual, tornando o processo, mais importante que o direito.

Além disso, a maioria das faculdades não leciona esta matéria, pois ainda também focadas nos direitos individuais e patrimoniais. Os Núcleos de Prática Jurídica nas Faculdades também padecem deste vício e vive-se um círculo vicioso no meio jurídico.

Muito embora o discurso reinante no meio jurídico seja de “justiça” judicializada como forma de “justiça social”,  e que não se pode mercantilizar, na prática o que se discute nos processos judiciais é quase sempre apenas questão patrimonial que não mudam o status quo das relações sociais, o que somente pode dar-se através de ações civis públicas.

Para que o direito coletivo seja mais comum é preciso que se torne mais frequente no dia a dia , e não apenas através de medidas pelo Ministério Público.

É importante discutirmos medidas que ampliem o rol de legitimados para ajuizar ação civil pública para permitir ao cidadão a legitimidade ativa, bem como ou excluir a regra de prazo de carência para a entidade social ajuizar ação civil pública. Além disso, as ações civis públicas deveriam ter prioridade para processamento e  julgamento, e também retirar a vedação do uso de ação civil pública para a área tributária. Com estas medidas, estaríamos evitando ações repetitivas e estimulando a função social do processo e de seus atores, o que seria outro foco.

Outrossim, é que a ação civil pública tem um aspecto diferenciado no tocante à coisa julgada para caso de improcedência, conforme artigo 103 da Lei 8.078/90, ou seja, não ficam vedadas as ações individuais, para quem não foi litisconsorte. Logo, isto fica claro que o foco da ação civil pública é direito metaindividual, ou seja, difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Interessante destacar que a vedação prevista na lei 7.347/85 no sentido de impedir uso de ação civil pública para matérias tributárias é restrita a esta via processual, e não inclui MS Coletivo, nem ação popular.

Também temos o outro lado, o qual consiste na banalização das ações civis públicas ao equivocadamente ajuizar as mesmas para direitos individuais isolados, pois há um desvio de finalidade, uma vez que o objetivo da ação civil pública não é o direito individual.

O exemplo mais comum é na área de saúde. Nesta área podemos ter aspectos de direito coletivo através de ação civil pública, ou direito individual, ainda que indisponível e relevante.  No segundo caso, pode-se até salvar uma vida, mas muitas continuaram a serem perdidas pela falha no sistema. Já no direito coletivo, o foco seria no sistema que atenderia a todos, ainda que alguns possam ser prejudicados pela “divisão” de recursos ou pela maior demora na resposta judicial.

Os dois casos citados são importantes e com perspectivas diferentes. O erro grave está em se tratar tudo como ação civil pública, pois isto leva a erros de estatísticas e até mesmo de mensuração de complexidade. Afinal, uma ação para direito individual tende a ser repetitiva, ou seja, sem complexidade  jurídica enquanto uma ação civil pública para direitos coletivos de política pública na área de saúde é bem complexa.

Além disso, erra-se ao ajuizar a ação civil pública para direitos individuais, pois isto impede o acesso do Ministério Público ao Juizado Especial da Fazenda Pública. Afinal, a Lei 12.153/09 veda que se discuta causas de direito coletivo e difuso no Juizado Especial, mas não impede que se ajuíze ações por interesse individual. Logo, é possível que o Ministério Público ajuíze ações para pleito de remédios ou outro atendimento médico individualizado no Juizado Especial da Fazenda Pública, caso use a ação sumaríssima em vez da ação civil pública.

Na atuação em defesa de direito individual indisponível, o Ministério Público não exerce advocacia, pois atua como substituto processual e não como representante processual (assistente jurídico da parte), esta diferença técnica é juridicamente relevante.

Portanto, a ação civil pública  deve ter como objeto os direitos coletivos, os difusos e os interesses individuais homogêneos. Quanto aos direitos individuais, ainda que indisponíveis, devem ser protegidos pelas ações específicas de natureza individual pelo rito específico, mesmo se proposta pelo Ministério Público, o que permite uma maior dimensão da avaliação das atividades e seus resultados, bem como coaduna como a visão social dos direitos coletivos.

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