Observatório Constitucional

Como a sorte influencia a Jurisdição Constitucional

Autor

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

31 de agosto de 2013, 8h00

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Tem-se enfatizado, com grande entusiasmo, a qualidade dos fundamentos apresentados pelos juízes para o deslinde dos casos decididos pelas Cortes Constitucionais. Uma das justificativas normalmente apresentadas em favor da legitimidade da jurisdição constitucional seria a de que os juízes se valeriam de argumentos morais, ou de princípios, para justificar suas decisões, enquanto que os membros do Parlamento agiriam imbuídos de interesses parciais ao votarem as leis. Não por outro motivo Ronald Dworkin qualificou a Suprema Corte norte-americana como um fórum de princípios[1], no qual os direitos dos cidadãos estariam mais bem protegidos do que se deixados ao alvitre das maiorias políticas ocasionais.

Uma análise mais detida das circunstâncias que determinam quem sai vencedor ou perdedor nos casos decididos pelo Supremo Tribunal Federal revela, contudo, que nem sempre o resultado final deriva de um processo decisório racional, no qual prevalece o melhor argumento, mas pode ser, em grande parte, produto do acaso. Dito de outra forma, a sorte (ou azar) do litigante muitas vezes é o fator preponderante na definição de uma questão colocada diante de nosso tribunal constitucional, independentemente de qual interpretação jurídica a maioria da Corte entenda ser a melhor possível. Três casos são representativos nesse sentido.

Às vésperas da eleição geral de 2010, uma dúvida jurídica relevante ainda persistia: poderia ser a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) aplicada no mesmo ano de sua edição ou deveria ser observado o princípio da anualidade eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição Federal? O então candidato ao governo do Distrito Federal, líder nas pesquisas de intenção de voto, que havia tido sua candidatura impugnada com base na referida lei, interpôs Recurso Extraordinário contra acórdão do Tribunal Superior Eleitoral que lhe era desfavorável. Faltando apenas nove dias para o pleito, o plenário do Supremo Tribunal Federal debateu a questão por mais de 11 horas, chegando a um inusitado empate na votação em razão da vacância de uma das cadeiras da Corte[2].

A incerteza jurídica decorrente deste julgamento fez com que o litigante renunciasse à sua candidatura, para sorte de seu adversário político, que se elegeu com certa facilidade. Após a nomeação do ministro Luiz Fux, já no ano de 2011, a questão restou definitivamente decidida, por 6 votos a 5, no sentido da inaplicabilidade da Lei da Ficha Limpa ànas eleições de 2010[3]. Não há dúvidas de que o empate ocorrido no primeiro julgamento influenciou de maneira decisiva o destino dos candidatos, prejudicando a candidatura daquele que se ancorava em interpretação constitucional que, ao cabo, restou acolhida pela maioria da Corte.

Outro caso julgado em 2010 também evidencia como o fator sorte tem o condão de influenciar o resultado final dos casos submetidos à Corte. Em 7 de março, foi levada a julgamento, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, a Ação Penal 433, na qual se discutia a ocorrência de crime contra a Administração Pública praticada por Deputado Federal. A ministra relatora Ellen Gracie e o ministro revisor Cezar Peluso votaram pela condenação criminal do parlamentar, tendo sido acompanhados pelos ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia e Ayres Britto. O ministro Dias Toffoli, por outro lado, abriu a divergência, concluindo pela atipicidade do fato, no que foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello.

No caso específico, a prescrição criminal ocorreria no dia seguinte à sessão de julgamento (8 de março de 2010) e estava ausente o ministro Eros Grau. Ocorrendo empate de 5 a 5 na votação, a maioria da Corte decidiu que se deveria aguardar o voto faltante, o que ocasionou a prescrição do delito[4]. O réu, por um golpe de sorte, beneficiou-se de uma circunstância contingente: a ausência de um magistrado no dia de seu julgamento.

Em circunstâncias distintas, mas também envolvendo uma obra do acaso, reconheceu-se, em caso único, que ex-ministro de Estado não responderia por ação de improbidade, mas por crime de responsabilidade, com assento em foro privilegiado. Na Reclamação 2.138, a Corte deliberou, por 6 votos a 5, que o juízo da 14ª Vara Federal do Distrito Federal seria incompetente para julgar ação de improbidade contra ministro de Estado, já que os agentes políticos responderiam por crime de responsabilidade, no foro determinado pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 102, inciso I, alínea “c”. Anulou-se, assim, a sentença de mérito de primeiro grau que havia julgado procedente a ação do parquet e decretado a suspensão dos direitos políticos do réu pelo prazo de oito anos, bem como a perda da função pública[5].

O curioso é que, julgado o caso em 2007, a maioria vencedora se formou com os votos dos ministros Ilmar Galvão, Nelson Jobim e Maurício Corrêa, magistrados já aposentados àquela altura. Dos debates travados, percebeu-se que o pronunciamento da Corte não refletia o entendimento de seus atuais membros, dentre os quais três não tiveram direito a voto, pois seus antecessores já se haviam pronunciado. Percebe-se, pois, que, por capricho do destino, o político foi vitorioso nesse processo específico. Desde então, o Supremo Tribunal Federal nunca mais reconheceu direito semelhante a outro agente público[6].

O que esses três casos revelam é que nem sempre a interpretação considerada a mais correta é a que prevalece. Os advogados conhecem bem essa faceta aleatória da prática jurídica. Não raras vezes ações idênticas distribuídas para juízos distintos têm desfechos completamente distintos. Também é prática recorrente torcer para que uma medida urgente seja distribuída para este ou aquele magistrado, que possui um entendimento mais favorável ao pleito do requerente. Estes fatos fazem parte da rotina daqueles que militam perante os fóruns e os tribunais Brasil a fora.

As implicações destes fatores contingentes para a construção de uma teoria da jurisdição constitucional, contudo, ainda estão a merecer maiores reflexões por parte da academia. Obviamente que, em se tratando de questões constitucionais, o mais adequado seria a prevalência da interpretação que a maioria dos membros da Corte considerasse a mais adequada. Eliminar o fator sorte de nossa prática constitucional é certamente impraticável, mas é possível minimizar os seus efeitos por meio de arranjos institucionais bem desenhados. O sistema de votação da Suprema Corte norte-americana, por exemplo, no qual o resultado do julgamento somente é proclamado após os juízes chegarem internamente a um acordo sobre como deve ser decidido o caso, pode ser criticado por vários fatores, mas evitaria o mal-estar causado nos três precedentes mencionados. A nosso sentir, o estudo dos arranjos institucionais, com o diagnóstico das consequências positivas e negativas de cada variação estrutural, apresenta-se, atualmente, como uma das principais tarefas dos estudiosos do Direito Constitucional.


[1] DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1985, p. 33-71.
[4] Supremo Tribunal Federal, Ação Penal nº. 433, Relatora:  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 11/03/2010, DJe-091.

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