Diário de Classe

Doutrinadores agora têm a concorrência de Paolla Oliveira

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31 de agosto de 2013, 8h01

Começava a escrever esta coluna a respeito do que alguns constitucionalistas disseram ao ConJur sobre a legalidade da manutenção do mandato parlamentar do deputado federal Natan Donadon, quando soube de uma decisão que está circulando pelas redes sociais desde quinta-feira (29/8). Então, suspendi o projeto inicial e tomei outro caminho para tratar de um tema não menos importante e, de certo modo, correlato: o dever de fundamentação das decisões e o papel da doutrina.

A “doutrina” de Paolla Oliveira…
Num dos foros regionais da comarca de Porto Alegre, no mês de março deste ano, F.C. foi condenado pela prática do crime de tráfico de substância entorpecente à pena de sete anos de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, e à pena de 500 dias-multa fixados no valor mínimo legal.

Até aqui, nada de mais. Isto porque, como se sabe, centenas de réus são condenados diariamente em todo Brasil por este e outros crimes a penas equivalentes ou até mesmo superiores. O que chamou minha atenção, entretanto, foi a “fundamentação” utilizada pelo magistrado em sua sentença:

O Juiz é o Estado na busca da verdade-real, que efetivamente tem que se manifestar, é uma garantia do cidadão brasileiro.

Meu pai, […], Promotor de Justiça Jubilado, sempre me diz isso, em nossas conversas sobre Justiça e Verdade, citando o Padre Antônio Vieira: Juiz sem liberdade é como a noite que não segue a aurora. É a própria contradição!!!

Ou como disse a jovem atriz PAOLA OLIVEIRA, na Marie Claire de MAR 2011, PAG. 76: “Direitos Humanos é para quem sabe o que isso significa. Não para quem comete atrocidades de forma inconsequente, ao se pronunciar sobre a invasão do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro”.

E disse mais a jovem atriz: “O sistema é muito frouxo. Tem que haver mais rigidez na punição”.

Creio que estamos caminhando para o lado inverso, ao dar mais liberdades e direitos aos acusados e criminosos, ao invés de garantir sim o devido processo legal, o contraditório e a mais ampla defesa, mas não podemos sonegar do Estado-Juiz, buscar elementos para sua convicção de julgamento, sendo essa mais uma garantia do cidadão-réu, porque ao julgar, seja para absolver ou condenar, o Juiz deve fazê-lo de forma fundamentada na prova colhida nos autos e ao realizar perguntas a réus e testemunhas, nada mais nada menos está fazendo o que lhe compete constitucionalmente.
[…]
Com efeito, há alguns anos passados, não muitos, cerca de 10 anos aproximadamente, a pequena quantidade de entorpecentes determinava a tipificação de “portar para consumo próprio”,do art. 16, da lei nº 6.368/76 (antiga lei de tóxicos), ou seja, qualificava o autor do delito como “usuário” de entorpecentes.

Foi mais longe ainda não somente esse entendimento, mas que o usuário deveria ser considerado como “doente”, em razão dos efeitos nefastos dos entorpecentes no psique do agente criminoso, que não deveria ser “preso”, mas sim tratado!!!

Com isso, abriu-se as portas do inferno e passou-se à liberdade de consumo e, via de consequência, do comércio de entorpecentes, porque dessa forma determinou ao traficante A DISTRIBUIÇÃO DE PEQUENAS QUANTIAS AOS SEUS VENDEDORES – representantes comerciais – QUE SE FOSSEM FLAGRADOS COM A DROGA, SERIAM ENQUADRADOS COMO USUÁRIOS E DESSA FORMA NÃO SERIAM PRESOS.
[…]
Além disso, a prestação de serviço do acusado vai mais além de apenas “comercializar o entorpecente”, ele fornece o local para o consumo imediato!!! Como diz o ditado: barba, cabelo e bigode… serviço completo!!! Só faltava também fornecer sofá para curtir a “viagem” e o chocolate ou o sanduíche com refrigerante para a hora da “larica”!!!!
[…]
Na maioria das vezes, os réus sustentam Síndrome de Dependência Compulsiva, havendo necessidade de encaminhamentos do agente à especial tratamento curativo. Contudo, enquanto isso, esses mesmos agentes que precisam de tratamento especial curativo, realizam Latrocínios, Homicídios, Roubos a mão armada, com extrema violência e grave ameaça a pessoa.

Foi essa frouxidão, como disse a jovem atriz Paola Oliveira, que resulta hoje numa quase incontrolável senda criminosa envolvendo todo o tipo de uso de entorpecentes!!!!

Sem adentrar no mérito, o teor da decisão evidencia que fracassamos. Não conheço o juiz que proferiu a decisão e, desde logo, registro que não se trata de qualquer questão pessoal. Minha crítica é bastante pontual: se para resolver casos jurídicos precisamos recorrer à filosofia de Paolla Oliveira — sim, ela inseriu mais um “ele” por causa da numerologia —, isto significa que a doutrina perdeu mais uma batalha. Marie Claire não é fonte de Direito! Se fosse, certamente já haveria uma edição especial de Caras, no Castelo da revista (certamente!), com os famosos e a aplicação do princípio da proporcionalidade. Lendo os comentários a respeito da decisão, encontrei quem sustente que o acerto no veredicto condenatório desonera o juiz de sua responsabilidade quanto à fundamentação. Outros alegam que, no fundo, a opinião de Paolla Oliveira representa a sociedade e, portanto, deve ser observada.

Por um instante, confesso que fiquei imaginando como seria um tribunal do júri composto de celebridades globais: Paolla Oliveira, para quem os direitos humanos não devem ser aplicados a todos; Carolina Ferraz, que defendeu publicamente o apartheid dos elevadores sociais e de serviço; Faustão, que pregou discursos moralistas contra a corrupção no embalo das manifestações de junho; Glória Perez, conhecida por sua iniciativa na criação da Lei dos Crimes Hediondos; Pedro Bial, para quem herói é aquele consegue sobrevier às dificuldades da casa mais vigiada do Brasil; Regina Duarte, cujo medo virou propaganda eleitoral contra o candidato Lula; Ana Maria Braga, que frequentemente também busca a verdade nos casos policiais que chocam o país, inquirindo testemunhas e entrevistando autoridades. Em tempo: Luciano Huck estava na lista, porém foi dispensado na última hora em face de suas amizades com o presidente do STF e o governador do Rio de Janeiro. Todos sob a presidência do juiz Arnaldo Cesar Coelho, para quem “a regra é clara”. Já pensou?!

Ora, não discutirei aqui “o direito segundo as celebridades” ou “a liberdade de expressão dos famosos”. Também não pretendo aprofundar a “hediondez da sentença” ou o “livre convencimento do juiz”, mas apenas o que a decisão nos revela subliminarmente: a dificuldade que ainda temos em compreender no que consiste o dever constitucional de fundamentar as decisões. Decidir não é o mesmo que escolher e, por isto, não depende da vontade do juiz. Se a opinião do juiz é igual àquela de uma atriz, por exemplo, isto é irrelevante para o julgamento do processo. Muito discutimos a respeitos do tamanho das sentenças e pouco nos preocupamos com seu conteúdo. Com isto, substituímos o problema principal pelo problema secundário. Estabelecemos metas para julgar mais, e não para julgar melhor. Um dos resultados disso é conhecido de todos: a absoluta inoperância da doutrina para a formação de um discurso jurídico crítico e autêntico.

… e a lição de Julia Roberts
No filme O Dossiê Pelicano (1993), dirigido por Alan J. Pakula e inspirado no romance homônimo de John Grisham (1992), assistimos a uma cena em que o professor de Direito constitucional de uma universidade norte-americana discute com seus alunos o famoso caso Bowers v. Hardwick, questionando-os acerca do referido precedente. Durante a discussão acerca do tratamento conferido pela constituição americana ao Direito à privacidade, uma aluna — de nome Darby Shaw, interpretada pela bela Julia Roberts, à época com 25 anos de idade — sustenta a inconstitucionalidade da legislação do estado da Geórgia, que criminalizava a sodomia. O professor, todavia, encerra o debate, dizendo que a Suprema Corte decidiu no sentido contrário: não é inconstitucional que os estados classifiquem como criminosa a conduta da sodomia. Ao final, ele dirige à aluna a seguinte pergunta: “– Por que isto?” Inconformada, ela responde: “porque eles erraram”.

Nos últimos anos, esta cena cinematográfica vem sendo utilizada inúmeras vezes — tanto por Lenio Streck quanto por José Juan Moreso — para reforçar o papel crítico que deve ser desempenhado pela doutrina do Direito, sobretudo porque a ela compete a fiscalização da atividade desenvolvida pelos tribunais, através da observação e da análise das decisões judiciais.

Trata-se, em suma, do chamado “fator Julia Roberts”: muito embora sejam os tribunais que, ao final, detenham a última palavra, isso não quer dizer que eles não se equivoquem e tampouco que suas decisões não devam ser questionadas e, sempre que necessário, criticadas.

Em um belo artigo, intitulado German Constitutional Culture in Transition (Cardozo Law Review, n. 14), Bernhard Schlink afirma que, de fato, o funcionamento da legislação e da administração depende em grande medida da supervisão por parte do poder judiciário à qual o legislativo e o executivo estão sujeitos. A atividade do judiciário, enquanto intérprete da constituição, é por sua vez suscetível à análise e crítica que devem ser realizadas pela ciência jurídica.

Adotando posição semelhante, em O Domínio da Vida, Ronald Dworkin adverte que, muito embora exerçam uma atividade essencial à Justiça, os juízes não são as personagens mais importantes do drama judiciário que se encontra, inevitavelmente, implicado em todo processo judicial. E conclui afirmando que os juízes devem justificar suas sentenças por meio de argumentos de princípios e de integridade, que possam ser criticados pelo meio jurídico e avalizados pela opinião pública, cuja influência deveria ser sentida sempre que os presidentes nomeiam os juízes.

Na mesma linha, porém sob um viés analítico, Luigi Ferrajoli ensina que, no paradigma garantista, a ciência jurídica também pode ser concebida como uma garantia, na medida em que tem a função de denunciar — e, portanto, impedir — toda e qualquer violação dos direitos. Para ele, ao contrário do positivismo kelseniano, a ciência do Direito deve assumir uma função pragmática: a crítica interna do Direito.

Em suma: a tarefa da doutrina é precisamente exercer o constante “constrangimento epistemológico” (Streck) ao qual deve estar submetida a atividade dos juízes e tribunais. Este é, afinal, o papel que o cientista do direito deve assumir, numa sociedade democrática, em defesa das garantias que conformam o Estado constitucional.

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