Segunda Leitura

Ambiente jurídico pede sensibilidade nos relacionamentos

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

25 de agosto de 2013, 8h00

Spacca
O mundo jurídico é sistematicamente acusado de formal, protocolar e até anacrônico, visto que nele práticas antigas estão dissociadas do mundo contemporâneo. Os exemplos são muitos e não se confinam nos tribunais, como muitos podem imaginar. Vão bem além. Permeiam todas as outras atividades em que as Ciências Jurídicas estejam inseridas.

No universo acadêmico, as bancas de mestrado e doutorado das áreas técnicas são completamente diferentes das que ocorrem na área jurídica. Naquelas, prevalece a informalidade, no tratamento e nos trajes. Nestas, a forma assume maior espaço, muitas vezes exteriorizada pelo tratamento de senhor ou pela leitura do resultado solenemente, com todos em pé.

Nos escritórios de advocacia não é diferente. Muito embora o paletó e a gravata estejam cedendo espaço a trajes mais informais, fruto da simplicidade  da vida moderna e também do aquecimento global,  ainda há uma distância abismal entre um local em que se trabalha, por exemplo, na área da informática e outro em que se pratica uma profissão jurídica.

Nos tribunais e nos juízos a formalidade é maior, muito embora atenuada por força da transformação pela qual passa a sociedade. Quando eu era estagiário, o uso do paletó e gravata era obrigatório e, quando o juiz se aproximava, ficava em pé. Tudo mudou, mas as relações interpessoais da área do Direito continuam a ser mais cerimoniosas do que nas demais profissões. E isto não é um fenômeno brasileiro, mas universal. Na América espanhola, por exemplo, o formalismo é bem maior.

De onde vêm estas práticas mais formais? Dificilmente se encontrará estudo a respeito. Quiçá dos romanos, com suas máximas de comportamento. Talvez da Idade Média, com a solenidade da corte do Rei Arthur. Quem sabe do período do absolutismo, em que os poderes do rei eram totais e isto, de certa maneira, se estendia aos juízes. Não sei.

No entanto, o geral, o tratamento solene vem cedendo espaço em toda parte. Há uma tendência natural de menor hierarquização e maior flexibilidade nas relações sociais, inclusive no mundo corporativo. Consequentemente, todos os setores são alcançados, inclusive os que se relacionam com profissões jurídicas.

O tema relacionamento raramente é estudado no mundo jurídico. Juliana Ribeiro Goulart, em oportuno estudo sobre a oralidade nos processos, observa que as audiências são formais, as pessoas se tratam de doutor, o juiz de Vossa Excelência e este exerce o poder de polícia. Registra a autora que: “Esse ritual e a forma de tratamento utilizadas nas salas de audiências, desprezam os sentimentos sob o pretexto de preservá-los. Obrigam o juiz e o Ministério Público a serem imparciais em suas decisões e pareceres. Um processo frio e hostil que acaba desumanizando a justiça, afastando o juiz das partes e o Ministério Público de sua mais importante missão: a de proteger os interesses e o convívio da sociedade.” (Por uma nova cultura dialógica no processo: o princípio da oralidade como instrumento de efetivação de uma escuta criativa, Revista Jurídica, P.11, disponível neste link.

O texto suscita indagações. Qual o limite do formalismo? Deveriam, juiz e agente do Ministério Público, serem mais parciais?  O tratamento nas audiências deveria ser você? Ou tu? O que se ganharia e o que se perderia com isso? O juiz deve preocupar-se com os interesses da sociedade ou com a razão de uma partes?

O professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, observa que “o formalismo processual contém, portanto, a própria ideia do processo como organização da desordem, emprestando previsibilidade a todo o procedimento. Se o processo não obedecesse a uma ordem determinada, cada ato devendo ser praticado a seu devido tempo e lugar, fácil entender que o litígio desembocaria numa disputa desordenada, sem limites ou garantias para as partes, prevalecendo ou podendo prevalecer a arbitrariedade e a parcialidade do órgão judicial ou a chicana do adversário (O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo, disponível neste link).

Portanto, o formalismo, dentro ou fora das audiências, tem a finalidade de conduzir os atos processuais com ordem. A prática judiciária revela que se em uma audiência o juiz se comporta de modo absolutamente informal, eleva-se o risco de conflito entre as partes. E até de ele ser ofendido no momento em que tomar uma decisão contrária aos interesses de um dos envolvidos, insatisfeito com o resultado. Tal qual faria em um bar, assistindo a um jogo de futebol, se o seu time sofresse um gol.

Obviamente, isto não significa que o juiz deva ser frio como um crupiê diante da roleta, insensível ao drama humano que se desenrola à sua frente.  Não. A cordialidade e calor humano devem ser exteriorizados no tratamento cordial, na atenção, ou em uma frase para desanuviar o ambiente. Não precisam nem devem, todavia, vir acompanhados de uma intimidade cujos efeitos possam ser negativos.

Por exemplo, se o ambiente atingir um grau de conflito exagerado, exige-se do magistrado que seja, a um só tempo,  afável e equidistante das partes, para que possa aproximá-las mantendo e deixando evidente a sua imparcialidade. E mais. Os advogados devem manter-se serenos e não devem entrar em discussões com frases agressivas. O litígio não é entre eles, mas entre os seus clientes.

Em verdade, as formalidades de tratamento nas relações jurídicas, em juízo ou fora dele, têm um objetivo não declarado: amenizar as divergências e, com isto, diminuir o potencial de confronto. Não é sem razão que se usam  expressões como “data vênia”. É para que posições divergentes não sejam levadas para o lado pessoal. É para que a discussão fique apenas no plano das ideias e se evitem ódios eternos. As palavras atuam como o algodão entre cristais, previnem o impacto que poderá romper boas relações entre profissionais do Direito.

E, repito, isto não se dá somente nas audiências ou nos julgamentos nos tribunais. Pode dar-se em um escritório de advocacia, por exemplo, em uma tentativa de conciliação entre partes e advogados diversos. Uma frase irônica, um gesto mal posto, pode levar ao insucesso a tentativa de acordo e resultar em uma longa ação judicial.

Painéis em congressos podem ser palco de conflitos desnecessários. Certa feita, em Porto Alegre, após declarar minha posição favorável à responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos crimes ambientais, fui surpreendido com a reação exacerbada de um promotor de Justiça que, nervoso, posicionava-se contra. Quando me deram a palavra expliquei que nada tinha de pessoal, a discussão era tão somente jurídica. Acabou.

Nas faculdades de Direito não é diferente. Uma reunião de departamento pode originar uma discussão sem maior complexidade, como a maior importância desta ou daquela matéria. Porém, dita de maneira inábil, pode resultar em meses, anos, de hostilidade, com todos os reflexos negativos imagináveis.

Nas relações entre servidores, a cautela deve ser maior. Ingressam jovens no serviço público e dele saem na terceira idade. Ofender alguém porque se saiu, com ou sem razão, beneficiado em algo (por exemplo, uma função gratificada), dizendo-lhe  “poucas e boas”, pode dificultar a convivência por décadas. O melhor é canalizar a revolta para algo positivo e que resulte em  crescimento pessoal.

Se assim é nos contatos pessoais, o mesmo se dá nas petições. A revolta de um advogado ou do agente do MP leva, muitas vezes, ao excesso nas frases. No processo eletrônico o risco é maior, pois a pessoa tem ainda maior dificuldade em vislumbrar os efeitos de seu ato. Os resultados são sempre negativos.

Se a petição pede ofendendo, por que há de esperar deferimento? Mesmo que haja motivo para o  protesto, a petição será mal recebida. Da mesma forma um recurso de agravo de instrumento ou apelação. Exteriorizar o inconformismo com ofensas, mesmo que coberto de razão, poderá suscitar a solidariedade do magistrado que está na instância acima. Não ajuda em nada.

Nestes casos o melhor é controlar o ímpeto e registrar o inconformismo de forma contundente, bem fundamentada, mas não passional. Algo semelhante a um soco com punho de ferro, mas com luvas de veludo.

De resto, sempre é prudente, diante de um  fato que nos causa revolta, deixar a decisão para o dia seguinte. A noite é boa conselheira. Mas, se a situação exige resposta no ato, respirar profundamente algumas vezes auxiliará no controle emocional. Afinal, o desabafo excessivo pode gerar um conforto momentâneo, mas, depois, anos de constrangimento, mágoas e vinganças.

A ofensa desnecessária nunca é esquecida. Sem falar que pode resultar em ações penais, indenizações por danos morais ou sindicâncias administrativas. Os embates da vida, aos quais ninguém escapa, são suficientes para tirar-nos a alegria. Criar outros, desnecessariamente, não é um ato de inteligência.

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