Processo Novo

Precisamos de regra sobre fundamentação de decisões?

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

19 de agosto de 2013, 8h01

Spacca
Há alguns meses, escrevi, em outro espaço, que a necessidade de regras decorre da imperfeição do ser humano. Claro que essa frase não explica toda a complexidade de tão fascinante tema, mas parece possível cogitar que, fôssemos perfeitos, irrepreensíveis, o Direito poderia ser, até, desnecessário.

Pensei nesse ponto tendo em vista duas críticas que vi sendo veiculadas a uma disposição, inserida no projeto do novo Código de Processo Civil, referente à fundamentação das decisões judiciais. Refiro-me ao artigo 499, parágrafo 1º do projeto (na redação da versão que, em princípio, será levada à votação no plenário da Câmara dos Deputados nesta semana).

Segundo esse artigo, “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I — se limita à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II — empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III — invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV — não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V — se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI — deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Alguns afirmam que tal disposição seria desnecessária, pois o dever de fundamentar as decisões judiciais encontra-se estabelecido expressamente no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal. Outros, ainda, afirmam que o artigo inserido no projeto do novo CPC vai além do que exige a Constituição Federal, pois o juiz não estaria obrigado a “responder questionários” apresentados pelas partes.

A Constituição Federal não define ou esmiúça o dever de motivação das decisões judiciais, que fica a cargo do labor desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência.[1]

Na aplicação do dispositivo constitucional, surgem questões como a seguinte: deve o juiz, ao proferir sentença, analisar todos os argumentos expostos pelas partes?

Parece evidente que o magistrado não está obrigado a “responder questionário”. Assim, caso um dos fundamentos da defesa seja suficiente para se julgar improcedente o pedido, torna-se desnecessário o exame dos demais argumentos expostos pelo réu.

Contudo, não pode a sentença que julga procedente o pedido deixar de examinar todas as alegações de defesa que poderiam levar à improcedência — e, do mesmo modo, não pode o pedido ser julgado improcedente se não forem rejeitados todos os fundamentos da demanda.

Embora isso pareça claro, há inúmeros julgados dos tribunais anulando decisões omissas sobre fundamentos que, se examinados, poderiam levar o julgamento a resultado diverso. Por razões como essa, parece justificável a existência de uma disposição no projeto do novo Código, que disponha sobre a fundamentação da decisão judicial, em tal caso.

Algo pior, penso, pode acontecer com as decisões que afirmam estar fundamentadas em princípios. O significado de princípio, ao que tudo indica, ainda não está claro, entre nós. Muitas vezes, usamos a expressão “princípio” como sinônimo de “valor”, o que não parece adequado; em outros casos, dispensamos a uma regra o tratamento que seria adequado a um princípio, e “sopesamos” regras.

Embora haja vasta doutrina a respeito, o fato é que impera a divergência, entre boa parte dos autores que cuidam do tema. É inegável, porém, que vivemos em uma época de inflação de princípios.

Além disso, há, na Constituição e nas leis, uma grande quantidade de textos que contêm “conceitos vagos ou indeterminados”. Some-se o fato de esses “conceitos vagos” deverem ser usados para resolver lides que emergem de uma sociedade extremamente complexa, em que tudo muda muito rapidamente.[2]

Parece correto afirmar que, em casos assim, não basta a sentença dar pela improcedência do pedido com base na “dignidade da pessoa humana”, como se a mera citação do artigo 1º, inciso III da Constituição fosse suficiente para que se considerasse fundamentado o julgado. Além de não poder se limitar “à reprodução ou à paráfrase de ato normativo”, deve a decisão judicial que se vale de “conceitos jurídicos indeterminados […] explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”.

Algo parecido ocorre com a prática de se citar precedentes para se justificar um dado posicionamento, na decisão judicial. Considero que não devemos simplesmente “copiar” o mecanismo de precedentes existentes outros países, particularmente entre aqueles que adotam o modelo de common law.

Penso que devemos conhecer e compreender a experiência de outros sistemas jurídicos, mas a justificação de que deve haver uma jurisprudência íntegra no Brasil deve encontrar suas bases em nossa Constituição.

Como sustentei na nota antes mencionada, o Direito é feito em comunidade. Ninguém faz Direito sozinho: “A exigência — para mim, um princípio — de que a jurisprudência seja íntegra, também decorre da ideia (ou do humilde reconhecimento) da imperfeição humana: como os juízes não estão sozinhos no mundo — e, evidentemente, não estão sós no mundo jurídico —, devem compreender o que se produz na jurisprudência — do mesmo Tribunal, de orgãos superiores etc. —, seguirem aquilo que se produziu ou, se divergirem, devem indicar os porquês. Ninguém se fez ou se faz sozinho. Devemos muito uns aos outros — ok, talvez esse não seja o seu, mas é o meu caso. O Direito também se faz comunitariamente.” Embora isso pareça algo comezinho, a jurisprudência vem nos dando mostras de que são necessárias medidas, previstas na lei, que estimulem a criação de um ambiente estável, com uma jurisprudência efetivamente íntegra.

Parece mais que justificável, assim, que haja algo no projeto do novo CPC, a respeito da necessidade de os órgãos judiciais observarem a jurisprudência. Com o devido cuidado, contudo. Assim, não basta invocar o entendimento sumulado. Além disso, é necessário “identificar seus fundamentos determinantes”, bem como “demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.

As regras ora referidas, existentes no projeto do novo CPC, decorrem, a meu ver, do que está em nossa Constituição, ou de princípios — aqui, no sentido que me parece correto — que podem ser extraídos do Código em vigor. Mas a circunstância de, a pretexto de não haver disposição expressa, tais regras serem insistentemente desrespeitadas, justifica plenamente, a meu ver, a sua presença, no projeto de novo CPC.

***

Recebi pedidos para escrever, na coluna desta segunda-feira, algo sobre a polêmica envolvendo os Ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, no Supremo Tribunal Federal. Mas muitos textos já foram publicados a respeito, vários deles aqui mesmo na ConJur.

Embora, à época em que a escrevi, eu não estivesse preocupado com tal questão, minha opinião pode ser extraída da nota antes referida.

Até a próxima semana!


[1] Há ampla doutrina e jurisprudência a respeito. Tratei do tema na obra CPC – Código de Processo Civil comentado, 2. ed., Ed. RT, comentário ao art. 458 do CPC.
[2] Examino essas questões na obra CF – Constituição Federal comentada, comentários aos arts. 2.º e 93, inciso IX.

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