Falta de regulamentação

PEC das Domésticas deixa dúvidas sobre penhora de bens

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14 de agosto de 2013, 13h32

O Congresso Nacional ainda não concluiu a tarefa de regulamentar, por meio de lei complementar, o exercício de alguns direitos assegurados pela Emenda Constitucional 72 aos trabalhadores domésticos.

O texto do projeto de lei complementar, iniciado no Senado (PLS 224/2013 — Complementar), é relativamente extenso, e, como indicado no seu artigo 47, revoga integralmente a legislação infraconstitucional temática atual, a Lei 5.859/1972.

Chama a atenção, no entanto, que esse mesmo dispositivo também revoga uma das exceções quanto à impenhorabilidade do bem de família, atualmente regulamentada pela Lei 8.009/1990. O artigo 3º desta lei diz que “a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido (inciso I) em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias”.

Note-se que se trata de exceção que ombreia outras, relativas a crédito de tributos, fiança, financiamento bancário e hipoteca atinentes sobre o imóvel; a alimentos; ou na hipótese de aquisição do bem com recursos provenientes de crime ou para assegurar a execução de sentença criminal.

As exceções à regra da intangibilidade do bem de família, como se pode observar, levam em conta situações de relevo, e que não justificariam sua oposição, pelo devedor, em face do crédito exequendo.

No caso do trabalho doméstico, essa exceção se justificaria não só pelo valor social do trabalho como um dos fundamentos da República (artigo 1º, inciso IV, Constituição Federal), mas também pelo fato de que, em muitas circunstâncias, não seria moralmente idôneo ao empregador se apropriar do trabalho do seu empregado doméstico e, contra este, opor uma blindagem patrimonial, frustrando-lhe as expectativas de recebimento do seu crédito. Nesse sentido, notamos a posição também da jurisprudência.

BENS DE FAMÍLIA. PENHORABILIDADE. A Lei 8.009/90, em seu art. 3º, I, declara que a impenhorabilidade do bem de família não é oponível no processo executivo trabalhista quando se trata dos “[…] créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias […]”. Dispositivo aplicável quando a execução trata dos créditos da ex-empregada doméstica da executada (TRT 10ª Região. AP n. 0103/2000, 2ª Turma. Rel. Juíza Flávia Simões Falcão, DJU 30/6/2000).

Nada obstante, a revogação desse dispositivo, pelo que pude perceber até aqui, não foi objeto de um adequado debate público, até mesmo porque a Emenda Constitucional 72/2013 não demanda alteração desse tema no plano infraconstitucional.

Num cenário de graves dificuldades de efetivação dos direitos sociais e, por que não dizer, também das tutelas jurisdicionais, medida dessa natureza deveria ser precedida de uma ampla discussão, inclusive com a análise das taxas de congestionamento da fase de execução na Justiça do Trabalho, hoje em torno de 70%.

Soma-se a essa preocupação a circunstância de que, no Brasil, ainda vigora o dogma da impenhorabilidade de salários e proventos de aposentadoria, em que pese a previsão de avanços esse tema na redação aprovada pelo Congresso Nacional da Lei 11.382/2006.

Assim, caso confirmada, pela Câmara dos Deputados, a revogação do inciso I do artigo 3º da Lei 8.009/1990, poderemos ter, em alguns casos, a antítese prática daquilo que pretendeu a Emenda 72: inexistência de ferramentas para assegurar a efetivação dos direitos assegurados aos trabalhadores domésticos.

Cabendo à jurisdição trabalhista, nos termos do artigo 114 da Constituição, garantir a efetivação das tutelas relativas a direitos trabalhistas, contribuições sociais e multas eventualmente aplicadas a empregadores domésticos, o problema das ferramentas assecuratórias do cumprimento dessas obrigações é de grande preocupação.

E esse quadro ganha ainda mais cores se considerarmos que, no conceito de bem de família, não se situa apenas o imóvel e suas edificações e benfeitorias, mas também, a par dos precedentes judiciais, os bens móveis que equipam a residência, desde que não se encontrem em duplicidade e não sejam tidos por vultosos.

Isso não quer dizer que o poder Judiciário tenha de se mostrar insensível a determinadas realidades factuais que sugiram a adoção de soluções que harmonizem, de alguma forma, interesses igualmente protegidos pela Constituição, na medida em que, no Estado Constitucional, não se pode falar em direitos absolutos.

Nesse contexto, não se mostra razoável, por exemplo, a expropriação de imóvel único de fins residenciais para satisfazer execução de pequena monta, ou quando o devedor é idoso ou portador de doença considerada grave, em analogia ao que previsto na Emenda 62/2009.

De todo modo, a regulamentação da Emenda 72/2013 deveria ter se debruçado sobre o tema da efetivação dos direitos, nomeadamente quando se sabe do alto grau de informalidade no âmbito do trabalho doméstico. Estatísticas do Ministério do Trabalho dão conta que a informalidade está presente em aproximadamente 70% dos contratos de trabalho nesse setor.

Esse quadro se associa a outro mais amplo: a baixa faticidade ou eficácia da legislação trabalhista no Brasil, uma das causas da pletora de processos que a Justiça do Trabalho recebe anualmente.

Assim, parece-me uma questão de grande relevo pensar na efetivação dos direitos trabalhistas — os antigos e os novos — assegurados aos empregados domésticos. Caso contrário, ignoraremos a advertência de Norberto Bobbio, em A era dos direitos, quanto à necessidade pensar para além da declaração de direitos: é preciso também garantir sua fruição, atém mesmo porque o Estado Social não se mede pela quantidade de leis estatuindo direitos, mas, mercê desse tecido normativo, pelo concreto e efetivo bem-estar dos seus destinatários.

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