Direito Comparado

Testamento vital e seu perfil normativo (parte 2)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

11 de setembro de 2013, 8h01

O interessante problema do “testamento vital”, sob a óptica do Direito brasileiro, foi analisado em coluna anterior (clique aqui para ler). A sequência das colunas foi interrompida, mas por uma razão plenamente justificável: o falecimento de Ronald Harry Coase (1910-2013), aos 102 anos, no último dia 2 de setembro de 2013, a quem foi dedicado o texto da semana passada. Com esses necessários esclarecimentos aos ilustres leitores, volta-se agora ao testamento vital, mas sob o enfoque da legislação estrangeira sobre o tema, com o direcionamento específico para os Estados Unidos da América e a Alemanha.

A regulamentação federal das Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs) nos Estados Unidos encontra-se no Patient Self Determination Act (PSDA), de 1991, que pode ser considerada, como bem informa Luciana Dadalto, a “primeira lei federal a reconhecer o direito à autodeterminação do paciente” e que, de modo importante para o estudo dogmático da questão, estabeleceu as DAVs “como gênero de documentos de manifestação de vontade para tratamentos médicos”, cujas espécies seriam o living will (o testamento vital propriamente dito) e o durable power of attorney for health care (o ato de instituição de um procurador que tomará, em nome do paciente, as decisões relativas ao tratamento, suas formas, sua duração e sua cessação)[1]. É certo também que, a despeito de ser uma norma federal, o PDSA convive com outras 35 leis estaduais sobre o testamento vital, cada uma delas com conceitos próprios sobre o que seja um paciente terminal.[2]

De tal forma, é surpreendente que “as DAV representaram um grande avanço na luta norte-americana pelo direito à autodeterminação do indivíduo, todavia, são subutilizadas pela população estadunidense". A autora aponta que estudos demonstram que menos de 25% da população norte-americana possui um living will, ao passo que 75% afirma que gostaria de fazer uma DAV.  "Existe um abismo entre o número indivíduos que desejam manifestar sua vontade e o que realmente o faz".[3]

A propósito dessa “falência do testamento vital” nos Estados Unidos, Angela Fagerlin e Carl E. Schneider escreveram um artigo no qual apresentam as razões para sua baixa disseminação nos dias atuais. Segundo os autores, é preciso reconhecer a falência das DAVs como meios de proteção dos interesses dos pacientes, sendo necessário alertá-los sobre as reais possibilidades desses documentos produzirem os efeitos pretendidos, quando de sua elaboração. Eles vão mais longe e chegam a defender a pura e simples revogação da lei federal de 1991 (o PSDA), que foi aprovada com arrogante indiferença em relação a seus custos e a seu alcance.[4]

Outro aspecto das DAVs nos Estados Unidos é sua correlação com debates mais profundos que ferem o problema da eutanásia. Não é por menos que Luis Kutner, a quem se atribui a originalidade da concepção do living will, em 1969, em seu pioneiro artigo sobre o tema, publicado no Indiana Law Journal, tenha-lhe dado esse sugestivo título: O devido processo da eutanásia: O testamento vital, uma proposta.[5] Seu fundamento para o living will estava em que o paciente poderia não ter a oportunidade de dar seu consentimento prévio ao modo ou ao alcance do tratamento a que seria submetido. Desse modo, encontrando-se ele em pleno gozo de suas faculdades e amplamente capaz de exprimir ele mesmo sua vontade sobre essas questões, seria de todo conveniente que ele o fizesse por meio de um living will, capaz de açambarcar hipóteses como sua permanência em um estado vegetativo ou, no caso de um adepto de determinada religião, que deseja se resguardar contra intervenções cirúrgicas contrárias à sua profissão de fé.[6] Evidentemente, segundo Luis Kutner, o living will seria restrito a pacientes adultos e capazes de deliberar sobre seu futuro e, por outro lado, evitar-se-iam discussões sobre a responsabilidade dos hospitais ou dos médicos, acaso fossem acusados de praticar eutanásia.[7]

Na Alemanha, a figura jurídica equivalente às DAVs é denominada de Patientenverfügungen [traduzível, com muita liberdade, como diretivas (ou diretrizes) antecipadas de vontade], que integra formalmente o Código Civil, desde 1o de setembro de 2009, quando lhe foi aditado os §§ 1901a-1904, cujos conteúdos podem ser assim resumidos:

(1) Se uma pessoa maior e capaz houver declarado, por meio de documento escrito, quanto à aceitação ou a vedação de futuros exames, tratamentos ou intervenções médicas, na hipótese de superveniente causa incapacitante para [nova] declaração de vontade, deve-se certificar que a declaração [prévia] está em conformidade com a situação atual do declarante e com o tratamento [a que ele se submete]. Essa declaração, independentemente [de requisito] de forma, pode ser revogada a todo tempo. (2) Não existindo declaração do paciente ou, na hipótese de existir, se esta não se mostrar conforme com sua situação atual ou com seu tratamento, deve-se atuar para que sua vontade seja observada, ainda que presumida. A vontade presumida há de ser objeto de aferição consoante critérios concretos, observando-se manifestações ou escritas, além de suas convicções religiosas, pessoais ou étnicas. (3) As regras informadas nos itens 1 e 2 não se invalidam ou mitigam por efeito da qualidade ou do estado da moléstia do declarante.

(1) Os procedimentos médicos deverão ser avaliados pelo médico, observando-se a situação do paciente e seu prognóstico. (2) Para fins de aferiação da vontade [real] ou presumida do paciente, é de se admitir que os parentes ou as pessoas que lhes sejam próximas tenham o direito de se manifestar, sob condição de que essa atuação não implique a postergação do tratamento por tempo considerável.

Os artigos introduzidos no Código Civil alemão (BGB) derivaram de um pesado debate legislativo no Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão), que resultou na aprovação do projeto de lei por uma margem razoavelmente estreita de votos (317 a favor e 233 em contrário).

Em 2010, o Bundesgerichtshof (BGH) (Tribunal Federal, equivalente, com menor número de matérias sob sua competência, ao Superior Tribunal de Justiça) analisou a validade dos §§ 1901a-1904 do BGB, em um acórdão (BGH 2 StR 454/09, de 25.6.2010), foram indiretamente legitimados sob o fundamento de que as Patientenverfügungen se prestam a conservar a autodeterminação do paciente, além de que, com a nova legislação civil, o quadro normativo cambiou sensivelmente em face de decisões anteriores sobre o tema.[8]

O exame do testamento vital, se observados dois ordenamentos jurídicos estrangeiros, com tantas diferenças de caráter histórico e metodológico, conduz a um problema central: sua diferenciação, in concretu, de práticas tendentes a facilitar a eutanásia. No caso americano, a discussão atual está na eficácia das DAVs e, no exemplo alemão, que é paradigmático, nota-se uma dilatação do âmbito de incidência da vontade sobre o futuro dos tratamentos médicos do próprio declarante.


[1] DADALTO, Luciana. Testamento vital. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 100.
[2] DADALTO, Luciana. Op. cit. p. 101.
[3] DADALTO, Luciana. Op. cit. loc. cit.
[4]If living wills have failed, we must say so. We must say so to patients. If we believe our declamations about truth-telling, we should frankly warn patients how faint is the chance that living wills can have their intended effect. More broadly, we should abjure programs intended to cajole everyone into signing living wills. We should also repeal the PSDA, which was passed with arrant and arrogant indifference to its effectiveness and its costs and which today imposes accumulating paperwork and administrative expense for paltry Rewards” (FAGERLIN, Angela; SCHNEIDER, Carl E. Hastings Center Report. v. 34, n. 2, p. 30–42, mar-apr.2004. p. 38).
[5] Luis Kutner (1908-1993) foi um advogado norte-americano, ativista de Direitos Humanos e cofundador da Anistia Internacional. Ele teve participação em episódios internacionalmente famosos como a libertação de József, Cardeal Mindszenty (líder religioso húngaro mantido no cárcere pelo regime comunista de Budapeste) e na luta pelos direitos civis nos anos 1960.
[6] KUTNER, Luis. Due process of euthanasia: The living will, a proposal. Indiana Law Journal. v 44, n. 4, art.2, p. 539-554. 1969. p. 551.
[7] KUTNER, Luis. Op. cit. p. 553-554.
[8] A íntegra da decisão está disponível neste link. Acesso em 9/9/2013.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!