Centenário Victor Nunes

É necessário revisitar a obra deste gigante das letras jurídicas

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11 de agosto de 2013, 7h00

Sabe-se que Carlos Drummond de Andrade “eternizou” (ainda mais) com amor, carinho, respeito e admiração a Machado de Assis quando escreveu “A um Bruxo com amor” tornando corrente a referência expressiva “Bruxo do Cosme Velho”.

Sem nenhuma pretensão de emular o grande poeta, mas reconhecendo a importância de Victor Nunes Leal, com o mesmo carinho, respeito e admiração, poderia igualmente chamá-lo de “O Bruxo de Carangola”.

Em 2014 comemorar-se-á o centenário de nascimento de Victor Nunes Leal, e este momento é oportuno para rememorar o grande jurista. Devemos reconhecer que lhe são devidos muitos dos avanços institucionais e doutrinários na área do Direito Público, e ainda há muito a ser explorado e debatido.

São-lhe devidas primacialmente a implementação das Súmulas e a RTJ – Revista Trimestral de Jurisprudência, como representativas de seu ideário incansável na busca por coerência e tratamento paritário dos jurisdicionados, além do indispensável convencimento do Presidente Juscelino Kubistchek acerca da necessidade de implementação da construção da Universidade de Brasília. Mas existe muito mais em Victor Nunes Leal.

Em momentos de debates sobre o marco regulatório do ensino jurídico, a OAB sugeriu recentemente que a disciplina “Direito Eleitoral” se tornasse obrigatória nos cursos de direito.

Uma proposta mais ousada e com efeitos práticos imediatos seria inserir – não necessariamente como obrigatório, mas como “essencial” – uma matéria que poderia se chamar “Pensamento e Obra de Victor Nunes”, não no sentido pejorativo, mas que na naturalidade das observações permitisse essencialidade sem obrigação.

Teríamos então uma matéria ou disciplina com vinculação entre as abas da História, Ciência Política, Filosofia Política, Sociologia e Direito, que abordaria evidentemente as eleições e o direito eleitoral. O momento sócio-político, aliás, é bastante sugestivo.

Passaria a fazer parte do cotidiano dos estudantes e futuros profissionais do direito e mesmo de outras áreas do saber a ele vinculados (conciliadores, advogados, delegados de polícia, promotores de justiça, procuradores da república, juízes de direito, juízes do trabalho, juízes federais, etc.) a reflexão tão importante sobre coronelismo, enxada e voto, sobre os problemas de Direito Público, sobre os “três inimigos do processo”, entre outros.

Em Coronelismo, Enxada e Voto[1] a complexidade das ligações políticas, sociais, jurídicas, ideológicas e econômicas nos rincões da municipalidade no Brasil, nas paragens do estudo do mandonismo, do empreguismo das trocas de favores de tão candente atualidade sob o enfoque institucionalista sobre o sistema coronelista.

Nos Problemas de Direito Público[2] as matizes reflexivas sobre o cerne do Direito Constitucional que permitem refletir sobre qualquer sistema, independente de dogmática específica, como por exemplo, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988 em que o Supremo Tribunal Federal (STF) teve de se debruçar sobre a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e os Recursos Extraordinários interpostos anteriormente a 1988 e cujos liames fático-jurídicos passaram a ser discutidos com base no pensamento de Victor Nunes.

Por outro lado, nos três inimigos do processo[3], em tempos de debates sobre os “novos” Códigos de Processo Civil e Penal, embora o texto fale sobre “inimigos do processo oral” sua extensão e uso válidos perpassam o “processo como um todo” a nos suscitar a reflexão sobre a “ignorância, a rotina e a chicana” e a necessidade de seu repensar e de sua erradicação, artigo escrito em 1938, muito antes de se começar a falar em “Direito e Literatura” no qual Victor Nunes já falava com propriedade sobre Recordação da Casa dos Mortos de Fiódor Dostoiévski com tamanha naturalidade a fazer uso do recurso literário no contexto específico.

Sobre a Lei e sua relação com o meio social em que vive o intérprete, seria importante observar o artigo escrito em 1964 para o Jornal do Brasil (07.07.64) em celebração de outro gigante das letras jurídicas que fora Annibal Freire, no qual o grande Victor Nunes Leal dava pistas esclarecedoras de seu ideário iluminista sobre a lei e provavelmente tisnando um espelho a ser observado:

“Annibal Freire nunca foi um fetichista da lei escrita. A lei vale e deve ser entendida à luz dos princípios em que se inspira, contrasteados sempre com a realidade social que nos rodeia. Em suas mãos, a lei não é uma imagem do passado a reger o presente e o futuro. É um sistema de convivência, que as gerações sucessivas haverão de manejar em beneficio do ser humano, do seu bem estar, do seu aperfeiçoamento, da sua liberdade, em uma palavra, da sua dignidade. As leis – dizia – não podem ter sentido puramente abstrato. São normas reguladoras da atividade humana e social e, na sua elaboração, o legislador não ficou desatento a circunstancia essencial de sua aplicação na vida real.

O equilíbrio e a independência dos Poderes do Estado, legitimados pela origem democrática do Poder, era um de seus principais instrumentos de interpretação do texto constitucional. Não importa – ponderou -, a propósito do ensaio parlamentarista da Constituição do Ceará – que o regime presidencial não esteja, expressamente inscrito entre os princípios obrigatórios para os Estados. Na organização dos poderes políticos, cabe primazia ao princípio da independência e harmonia. Não pode ser de independência o critério que permita a um poder extravasar dos seus limites, invadindo a esfera própria de outro”.[4]

Os discursos de Victor Nunes Leal também são exemplos de simplicidade que misturam conhecimento e objetividade como exemplos de orador esplendoroso transcritos nos diários de justiça e muitos deles preservados e difundidos pelo Instituto Victor Nunes Leal (IVNL), com o indispensável dínamo da preservação da memoria do grande jurista que encontra força no não menos grandioso jurista que é José Paulo Sepúlveda Pertence.

Um discurso há que gostaria de relembrar, pela força de suas memórias e palavras, qual seja, aquele que Victor Nunes proferiu em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil no plenário do STF em 26 de maio de 1980 na homenagem da memória do ministro Hahnemann Guimarães[5], no qual uma confissão parece indispensável: como não se emocionar com tão comoventes linhas, escrituras, contidas neste discurso. Seguramente, e sem exagero, uma das maiores e melhores orações proferidas perante um Tribunal! Aqueles que não o conheceram pessoalmente, como o articulista, podem vislumbrar um pouco do fio de sua aura.

Seus votos e manifestações enquanto ministro do STF também são de interessante atualidade, tanto assim que foram compendiados muitos de seus votos pelo próprio STF na série Memória Jurisprudencial em rico e primoroso labor de Fernando Dias Menezes de Almeida[6].

Contudo, parece ainda que há uma tarefa a ser realizada, qual seja, o compêndio e a sistematização dos pronunciamentos de Victor Nunes Leal quando se sua passagem pelo Tribunal Superior Eleitoral, máxime porque foi caçado pelo Ato Institucional nº 5, em 1968. Ao assumir uma cadeira no TSE na condição de ministro substituto na data de 22 de outubro de 1963, foram proferidas algumas palavras pelo ministro presidente, pelo procurador geral eleitoral e pelo próprio Victor Nunes, nos trechos abaixo compilados, que dão conta da receptividade do Bruxo de Carangola entre seus pares e de suas pretensões e modéstia invulgar:

“Senhor Ministro Antônio Martins Villas Boas: Ao abrir os trabalhos de hoje, nesta casa, quero congratular-me pela presença do eminente Ministro Victor Nunes Leal que vem, pela primeira vez, integrar os membros deste Tribunal, como suplente. Não tenho dividas quanto ao alto valor da colaboração que Sua Excelência nos trará e que será grandemente apreciada por todos nos.

Senhor Doutor Procurador Geral Eleitoral: Senhor Presidente, em nome da Procuradoria Geral, quero também solidarizar-me com o Senhor Ministro Presidente nas expressões de jubilo que acaba de proferir por ter entrado em exercício nesta Casa o eminente Ministro Victor Nunes Leal, a quem me prendem laços de profunda admiração como Juiz e como amigo. Tive a honra de substituir Sua Excelência como Procurador Geral em dias passados. Não tenho duvida de sinceridade dos votos unanimes que estamos apresentando a Sua Excelência não só pela qualidade do Juiz como, também, pelas inúmeras qualidades intelectuais fáceis de serem percebidas por todos nós em sua Excelência.

Em agradecimento o Senhor Ministro Victor Nunes Leal assim falou: Senhor Presidente, sou muito grato a Vossa Excelência e ao eminente Procurador Geral da Republica, Doutor Candido de Oliveira Neto, pelas bondosas palavras que acabam de ser proferidas, palavras de amigos, colegas, portanto, palavras em que a generosidade é muito maior do que a sua expressão textual. Minha presença neste Tribunal é esporádica. Tenho a honra de estar substituindo, aqui, o ilustre Ministro Gonçalves de Oliveira, que se encontra ausente. Seja a que titulo for, porém, é uma grande honra para mim estar colaborando com os eminentes colegas deste Tribunal. É mais um setor em que, na medida de minhas possibilidades, procurarei cumprir o meu dever seriamente, dedicadamente”.[7]

Com efeito, os votos e pronunciamentos de Victor Nunes Leal quando de sua judicatura perante o Superior Eleitoral entre 1963 e 1969 – período bastante conturbado de nossa história, inclusive eleitoral – ainda estão a merecer compilação, estudo e discussão.

Aliás, um enigmático pronunciamento do gigante Victor Nunes Leal quando de sua passagem como ministro do Supremo Tribunal Federal, e que possivelmente tenha sido decisivo no marco de sua cassação pelo regime da ditadura militarista foi certamente sua elaborada construção quando do julgamento do habeas corpus impetrado no STF em favor do estudante da UnB Honestino Monteiro Guimarães (HC 46.059/RJ)[8] e cujos votos dos demais ministros que se manifestaram são de tétrica e chocante leitura a relembrar dos dias menos gloriosos do STF, a exceção dos grandes ministros caçados, como Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima.

De agora ao ano do centenário do Bruxo de Carangola (2014) deveriam ser realizadas inúmeras ações culturais de preservação de sua memória e de difusão de seus pronunciamentos, como concursos de redação nas escolas nos ensinos médio e fundamental, concursos de monografias para cursos superiores, encenações e peças de teatro sobre o coronelismo e ainda com discussões sobre reformas politicas e eleitorais.

Finaliza-se este singelo artigo repetindo Drummond, com as linhas dirigidas em homenagem a Victor Nunes Leal: também, e por que não, citar “A um bruxo, com amor”:

"(…) Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.

Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,

uma luz que não vem de parte alguma

pois todos os castiçais

estão apagados.(…)

E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)

o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica

entre loucos que riem de ser loucos

e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.

O eflúvio da manhã,

quem o pede ao crepúsculo da tarde?

Uma presença, o clarineta,

vai pé ante pé procurar o remédio,

mas haverá remédio para existir

senão existir?

E, para os dias mais ásperos, além

da cocaína moral dos bons livros?

Que crime cometemos além de viver

e porventura o de amar

não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,

e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida

apalpa o mármore da verdade, a descobrir

a fenda necessária;

onde o diabo joga dama com o destino,

estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,

que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando

rompe em meio a embriões e ruínas,

eternas exéquias e aleluias eternas,

e chega ao despistamento de teu pencenê.

O estribeiro Oblivion

bate à porta e chama ao espetáculo

promovido para divertir o planeta Saturno.

Dás volta à chave,

envolves-te na capa,

e qual novo Ariel, sem mais resposta,

sais pela janela, dissolves-te no ar."

As Minas Gerais já produziram lendas, ícones, diamantes e pepitas, entre eles: Drummond e Victor Nunes. Que de agora até o centenário de nascimento de Victor Nunes Leal (2014) se possa revisitar com mais vigor a obra e o pensamento deste gigante das letras jurídicas, a quem se pode, também, chamar de “O Bruxo de Carangola”.


[1] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. 4ª ed. Rio de Janeiro: Alfa Omega, 1978.

[2] ______. Problemas de direito público e outros problemas. Brasília: Ministério da Justiça, 1997.

[3] ______. Ignorância, rotina e chicana: os três maiores inimigos do processo oral. Revista Forense, v.74, n. 418/420, p. 251-253, abr./jun. 1938.

[4] ______. Lição de equilíbrio. Jornal do Brasil, 07 de julho de 1964.

[5] ______. [Discurso]. In: SESSÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL PLENO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 1., 1980, Brasília. Ata da […], realizada em 26 de maio de 1980: homenagem a memória do Sr. Ministro Hahnemann Guimarães. Diário da Justiça, p. 5071-5073, 3 jul. 1980. O discurso vem acompanhado de Notas e de dois apêndices: a carta do Ministro Hermes Lima ao Ministro Victor Nunes, de 18/9/1967 e a carta do Ministro Marcondes Filho ao Ministro Victor Nunes, de 20/9/1967, ambas contendo dados biográficos do Ministro Hahnemann Guimarães.

[6] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Memória jurisprudencial: Ministro Victor Nunes. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2006.

[7] ______. [Discurso]. In: SESSÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, Ata da 64ª Sessão Ordinária, n. Identificador 60525, em 22.10.1963, assunção do cargo de Ministro Substituto em substituição ao Ministro Gonçalves de Oliveira.

[8] Este enigmático corajoso pronunciamento de Victor Nunes Leal, nos STF perante os autos do HC 46.059-DF impetrado em favor de Honestino não consta da seleta de sua Memória jurisprudencial e tivemos a oportunidade de escrever um artigo a partir de fonte primária de pesquisa com o título de “A Hipérbole do Absurdo é o Cadáver de Honestino Permanecer Exposto no Plenário do Supremo Tribunal Federal: HC 46.059/RJ” em que submetemos a publicação perante a Revista Direito.UnB, mas que recebeu um parecer favorável a publicação com alteração e outro parecer contrário, e permanece ainda não publicado.

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