Imunidade penal

Acordo de leniência no Brasil traz insegurança jurídica

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9 de agosto de 2013, 8h15

Com a publicidade do acordo de leniência firmado entre a empresa Siemens Ltda. e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) veio à tona toda uma suposta rede de corrupção coordenada durante mais de um mandato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Consequentemente o tema leniência — que até então encontrava relevância maior no campo exclusivo da análise acadêmica — passou a ser discutido pela sociedade de maneira recorrente e considerável.

Diversos veículos de comunicação divulgaram a medida acordada pela empresa envolvida em cartel para fins de prestação de serviços para a Companhia Paulista de Transportes Metropolitanos (CPTM) e paulatina dominação de mercado, no qual restava consignado um esquema para assegurar a vitória de umas das empresas envolvidas em cada licitação promovidas pelo município de São Paulo sucessivamente. Assim, sempre que aberto um edital para licitação do Metrô de São Paulo e Brasília as empresas Siemens, Alstom, Bombardier, CAF e Mitsui se inscreviam e intercalavam vitórias em conformidade com critérios estabelecidos em reuniões secretas .

O ex-funcionário da Siemens Ltda., cuja identidade é mantida em sigilo até então , procurou o Ministério da Justiça e explicou a complexa organização na qual havia o pagamento de propina a partidos políticos a partir da subcontratação de outras empresas — laranjas — sob a justificativa de prestação de serviço específico das quais partiam os percentuais acordados com o partido político.

O acordo de leniência foi incorporado pela legislação brasileira em 2010, com o advento da reforma procedida na Lei 8.884/94 por meio da vigência da Lei 10.149, que previa a possibilidade de acordos entre o Poder Público e empresa membro de cartel — ou seus funcionários — em seu artigo 35-B. Mais tarde entrou em vigor a Nova Lei Antitruste (Lei 12.529/2011) que manteve em seu texto, especificamente no artigo 86 e seguintes, a possibilidade de celebração de acordos de leniência.

O acordo de leniência consiste, pois, em pacto feito entre o membro de cartel e o Estado — por intermédio do Ministério da Justiça — no qual resta consignado que caso o proponente traga elementos de convicção suficientes ao desmanche do cartel no qual estava envolvido terá garantida imunidade penal e administrativa, conforme a dicção do artigo 87, parágrafo único, da mencionada lei.

A grande polêmica reside no fato de que a maneira como vem previsto o acordo no ordenamento brasileiro não assegura as informações necessárias para que o interessado em firmar a medida veja-se efetivamente tentado a buscar a autoridade competente. Os requisitos para a concretização do acordo, bem como a garantia das benesses prometidas pelo dispositivo legal são vagos, além de não ser assegurado o sigilo absoluto a respeito da identidade do delator .

Segundo se infere da legislação pertinente serão concedidas as imunidades penal e administrativa caso o proponente cumpra os seguintes critérios: a) a empresa deve ser a primeira e denunciar a atividade cartelizadora; b) a empresa cesse completa e imediatamente sua participação da conduta; c) a Superintendência não possua provas suficientes para assegurar a condenação da empresa; e e) a empresa confesse sua participação no ilícito e coopere com as investigações.

Com efeito, muito embora o acordo pareça inicialmente vantajoso ao envolvido em conduta cartelizadora –— pela suposta imunidade concedida ao final de seus trâmites — pode se revelar uma verdadeira fraude protagonizada pelo próprio Poder Público. Tendo em vista que não é assegurado o sigilo absoluto, a identidade do delator eventualmente será revelada de modo que as consequências profissionais podem ser irreversíveis.

Ademais, o acordo prescinde da confissão de culpa, de maneira que uma vez inscrevendo-se no programa o proponente necessariamente deverá admitir sua participação no ilícito para obter efetivamente os benefícios prometidos. A polêmica reside especificamente nesta exigência de confissão por parte do delator, bem como à exigência de auxílio na produção da prova. E somente existe tal reticência a respeito do instituto porque segundo entendimento doutrinário o acordo de leniência não se presta a evitar a posterior apresentação de denúncia.

No entanto, a previsão expressa do já mencionado artigo 87, parágrafo único, indica que depois de celebrado o acordo e devidamente preenchidos os requisitos o reflexo penal incondicional será a extinção da punibilidade da empresa ou pessoa que delatou a conduta. Com efeito, muito embora a lei seja clara no sentido de que a consequência da celebração do acordo de leniência será a extinção da punibilidade, na prática o Ministério Público não encontra no dispositivo óbice à propositura da ação penal.

A justificativa para a inserção do delator no polo passivo de ação penal estaria supostamente fulcrada nos princípios da obrigatoriedade — segundo o qual o Ministério Público, por estar agindo em nome da coletividade, é obrigado a propor a ação penal —, bem como na separação dos poderes, eis que a decretação de extinção da punibilidade prescinde de decisão judicial.

Desta forma, conforme dito alhures, à primeira vista o acordo de leniência parece uma medida que efetivamente favorece de alguma forma o proponente/delator. Contudo, além de não contar com sigilo absoluto a respeito de sua identidade — já que após a conclusão do procedimento administrativo os autos são divulgados no sítio do Ministério da Justiça — o delator corre ainda o risco de ser processado criminalmente pelos fatos que ele mesmo denunciou ao poder público, e, pior: sendo utilizada para tanto a prova que ele mesmo produziu.

Assim, quanto à relativização do sigilo, uma vez sendo divulgada sua atuação em delatar os demais comparsas, certamente haverá posterior boicote mercadológico encabeçado pelos demais membros do cartel que restaram processados e condenados por meio de provas concedidas pelo delator. Já no que tange a possibilidade de posterior denúncia em face do leniente, assim como a sua justificativa tem respaldo em princípios constitucionais penais, também sua vedação encontra azo na Constituição da República.

Segundo previsão constitucional é autorizada a não produção de prova contra si, princípio do qual emana o direito ao silencio. Assim, muito embora haja proteção constitucional no sentido de assegurar que o investigado/acusado não faça prova contra si mesmo, existe também dispositivo na nova legislação antitruste que exige para fins de obtenção de benefício a participação do proponente na produção das provas suficientes ao desmanche do cartel bem como à condenação de seus demais componentes.

Assim, existe uma flexibilização de direito fundamental do cidadão por meio da exigência de auxílio na produção da prova, já que os elementos de convicção que estão sendo coletados para fins de obtenção de justa causa e posterior condenação também servem para comprometer o próprio delator. Havendo, portanto, essa relativização da garantia constitucional a regra deve ser a busca pela maior segurança possível aquele que se expôs no sentido de coletar provas e confessar a conduta cartelizadora.

Provavelmente a problemática que orbita este tema se deve ao fato de que o programa de leniência foi importado — sem as devidas alterações — do modelo Norte-Americano, que adota a Common Law . Neste sistema a propositura ou não de demanda penal fica a critério do Ministério Público, de modo que se opera uma espécie de juízo de conveniência.

No Brasil a lógica de aplicação das leis e a atuação do Ministério Público vem delineada de forma muito diferente, a começar pelo fato de que nos Estados Unidos da América o ingresso de um jurista na carreira pública se dá por meio de voto popular, quando no Brasil o requisito é o concurso público. Nos Estados Unidos se o Membro do Ministério Público atua em dissonância com as diretrizes da lei e contrariamente a sua função pode ser facilmente destituído, quando no Brasil é assegurada a vitaliciedade.

Em síntese muito embora pareça que o funcionário da Siemens que delatou o cartel será beneficiado pela sua postura isso não é uma certeza, tendo em conta que caberá ao arbítrio do Ministério Público inseri-lo ou não dentre os acusados.

Para evitar essa incongruência e inquestionável afronta ao devido processo legal material já houve propostas no sentido de o Ministério Público assinar juntamente com o Cade o acordo para fins de dar legitimidade aos seus termos na seara judicial. Contudo, tendo em conta que a assinatura do acordo entre o proponente e o Ministério da Justiça enseja extinção da punibilidade, carece a ação de uma de suas condições, de maneira que o Ministério Público não teria razão para assinar o acordo tendo em conta que a conduta deixa de ser considerada penalmente relevante.

Conforme a dicção do artigo 395, II do Código de Processo Penal a denúncia será rejeitada se for manifestamente inepta, caso carece de um pressuposto processual ou condição da ação ou em não se observando a justa causa. Com efeito, havendo previsão de extinção da punibilidade quando da celebração do acordo consequentemente haverá falta de uma condição da ação, de maneira que segundo os ditames da economia processual não é coerente a apresentação de denúncia.

Ademais, trazendo para o direito público a teoria do venire contra factum proprio, tradicionalmente utilizada na teoria dos contratos, o Estado não é obrigado a legislar, mas quando o faz deve cumprir suas determinações. Tal importação é plenamente possível eis que o acordo de leniência possui natureza contratual, de maneira que compromete ambos os lados que o assinam a cumprir sua parte com a devida boa-fé .

Também insta destacar que os entes que regulam o funcionamento do Estado em sua Soberania integram um todo indissolúvel, de modo que a alegação de que o Ministério Público tem a obrigação de propor a denúncia talvez esconda um ranço de vaidade no sentido de afirmar poder e legitimidade para o controle da força.

Assim, a maneira como vem previsto o acordo de leniência no ordenamento brasileiro, atrelado à insistência em propor ação penal contra o delator acaba por ensejar grave quadro de insegurança jurídica ao proponente, que se encontra em nítida posição de submissão ao arbítrio do Estado.

Em outros termos, caso o delator não cumpra os requisitos o Ministério da Justiça poderá não conceder as imunidades previstas no artigo 87 da Lei 12.529/2011. Contudo, caso o Estado não cumpra sua parte do contrato não poderá o delator se proteger das forças de um processo criminal, o que demonstra a clara situação de desigualdade; e naturalmente irá reduzir o número de acordos de leniência firmados.

Concluindo, não obstante haja suposta convicção no sentido de que o funcionário da Siemens Ltda. que delatou a conduta será de alguma forma beneficiado pelo acordo de leniência, insta aguardar o desenrolar dos fatos e verificar qual será a postura do Ministério Público: denunciá-lo ou não.
 

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