Sistema em colapso

Menor infrator é submetido a rotinas de presidiário

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8 de agosto de 2013, 12h15

A julgar pelas mazelas e o aviltamento das unidades de internação, não existe diferença formal entre as penas por crimes cometidos por maiores de idade e as sanções reservadas a menores infratores. Aos 12 anos de idade, cidadãos brasileiros que cometem crimes acabam tragados por um sistema tão deteriorado quanto a estrutura carcerária destinada a adultos, a despeito de a lei prever que menores tenham a chance de serem submetidos a medidas socioeducativas. É a conclusão de promotores e dos responsáveis por um de dois relatórios divulgados nesta quinta-feira (8/8) pelo Conselho Nacional do Ministério Público sobre as unidades de internação e semiliberdade para adolescentes no Brasil.

Sob o título “Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes – Relatório da Resolução 67/2011”, a consolidação de dados colhidos por promotores de todo o país entre março de 2012 e março de 2013 revela um sistema em derrocada, uma realidade de superlotação, rebeliões e morte. O outro relatório divulgado nesta quinta, “Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes no país – Relatório da Resolução 71/2011” também mostra um contexto duro, onde os diversos braços do Estado ainda precisam aprender a articular seus instrumentos para o bem do auxílio de crianças e adolescentes sem família ou em situação de risco.

O segundo relatório dá conta da situação nas unidades de acolhimento de menores — abrigos, casas-lares e famílias acolhedoras cadastradas. Das 2.754 unidades em operação, incluindo aí os três tipos de acolhimento, os promotores visitaram 2.370. Dentre os 2.598 abrigos e casas-lares, os promotores estiveram em 2.247 deles. Já entre os 156 órgãos que cadastram e preparam as famílias acolhedoras, os promotores estiveram em 123. Dessa forma, foram visitadas, ao todo, 86,1% das unidades de acolhimento de todo o país.

No Brasil, 29.321 crianças e adolescentes estão em acolhimento institucional, entre elas aquelas afastadas provisoriamente da família e também as que estão sob guarda do Estado. A principal dificuldade revelada pelos dados do relatório diz respeito aos problemas de integrar as iniciativas dos diversos órgãos do Estado responsáveis pelo acompanhamento dos menores. Essa dificuldade acaba repercutindo no atraso e na eventual impossibilidade do encaminhamento de crianças e adolescentes, seja de volta às suas famílias de origem ou à adoção.

“Estamos correndo permanentemente contra o tempo. Temos que ter um controle muito mais individualizado do que hoje conseguimos ter”, observa a juíza federal Taís Schilling Ferraz, conselheira do CNMP pela vaga do Supremo Tribunal Federal, coordenadora-geral do relatório e presidente da Comissão da Infância e Juventude do conselho. Um dos principais problemas apontados pelos dados do levantamento, segundo a conselheira, é o da ausência do guia de acolhimento, o documento que indica a autorização judicial do encaminhamento do menor e, por conseguinte, do devido trâmite de seu processo.

Para uma criança ser encaminhada a uma instituição de acolhimento ou a uma família acolhedora é necessária a autorização do juiz. Antigamente, bastava que o conselheiro tutelar, o promotor ou o delegado que encontrasse um menor em situação de risco encaminhasse para o acolhimento. Hoje, estes podem tomar a iniciativa apenas em emergências, mas, mesmo assim, com a anuência posterior de um juiz.

Com a dificuldade da Justiça em acompanhar um universo de mais de 30 mil casos de violência contra menores, o que acontece é o encaminhamento informal de crianças e adolescentes às unidades. O relatório mostra que 27,9% dos abrigos visitados por promotores informaram receber crianças sem a devido guia de acolhimento.

“Temos situações de menores que estão no limbo. Há um grupo de crianças e adolescentes sem o aval do juiz para estar na instituição. Só que, sem o aval, eles não têm um processo individual. Ou seja, ninguém sabe que eles estão lá. Nem para tentar devolvê-los a suas famílias, nem para tentar achar uma família substituta”, aponta a conselheira.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, dos 33.327 casos de violência contra menores, 21.041 ocorrem no ambiente familiar. Por meio do cruzamento de dados do relatório com informações do Ministério da Saúde, os responsáveis pelo levantamento apontam que os principais motivos de encaminhamento de menores para unidades de acolhimento envolvem negligência dos pais ou responsáveis, abandono e violência doméstica ou sexual.

Tempo de permanência
Outro dado em destaque diz respeito ao tempo de permanência dos menores nas unidades. Quase um terço das crianças e adolescentes acaba ficando no abrigo mais do que o prazo limite de dos dois anos (31%). Os que ficam entre um e dois anos são 30%; entre seis meses e um ano, 20%; entre três e seis meses, 12%; e apenas 7% ficam no acolhimento por até três meses.

A readequação das unidades para não receber menores além da lotação permitida também é outro problema grave. Até por questões de tradição histórica, prevalecem, em algumas regiões do país,  grandes abrigos, com mais crianças do que o atualmente permitido. As normas atuais estabelecem o número máximo de vinte menores em cada unidade.

“Não adianta apenas reconhecer que há mais jovens do que o permitido. Temos que ter onde colocar as crianças. Então existe, por exemplo, um programa do Ministério do Desenvolvimento Social no sentido de reordenar e garantir subsídio público àquelas entidades que se dispuserem fazer nos termos do reordenamento”, observa Ferraz.

A regionalização também é outra questão sublinhada no relatório. No Nordeste, pelas mesmas razões históricas da presença de grandes instituições de caridade vinculadas à Igreja, prevalece a “institucionalização” do acolhimento, isto é, um maior número de abrigos e casas–lares do que de famílias que recebem os menores. Na região Sul, é justamente o contrário, com um maior encaminhamento dos jovens às famílias acolhedoras.

“Dos abrigos visitados, 21% ficam na região Sul. De acolhimento familiar, 65% ficam no sul. No Nordeste, há apenas 2% de acolhimento familiar e no norte 1%”, informou a promotora de Justiça da Bahia Tamar Oliveira Luz Dias, membro auxiliar da Comissão da Infância e Juventude do conselho.

Sistema falido
A realidade dos adolescentes que cometem atos infracionais e aguardam julgamento ou já receberam a medida socioeducativa de privação de liberdade é ainda mais desoladora. Para formular o relatório referente à Resolução 67, os promotores visitaram 287 das 321 unidades de internação em funcionamento no país, ou seja 89,4% do total. Das unidades de semiliberdade, foram visitadas 105 das 122, isto é, 86,1%.

O relatório aponta a superlotação das unidades de internação em 16 estados. Nas oito unidades visitadas no Mato Grosso do Sul, por exemplo, foi constatada uma superlotação da rede em 354%. Embora haja vagas para 220 internos em todo o estado, 779 adolescentes cumprem medidas socioeducativas nas unidades. Um regulamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, estabelece a lotação máxima de 40 internos por unidade.

Além dos problemas de insuficiência de espaço, há a negligência em relação a separação dos adolescentes de acordo com critérios de idade e compleição física, o que acaba resultando no aumento dos episódios de abuso e violência. Os responsáveis pelo relatório chamam ainda a atenção para o fenômeno de sobreposição de sanções aplicadas em virtude do mau comportamento dos internos.

A lei determina que sejam abertos Procedimentos Administrativos Disciplinares (PAD) para estabelecer as sanções em casos de mau comportamento. Mas o relatório mostra que 56% das unidades visitadas não abrem PADs antes de procederem com as punições. Dessa forma, há casos de abuso como o de menores que acumulam suspensões de banhos de sol ao ponto de passarem mais de 300 dias sem sair das celas e ficar ao ar livre.

Para os responsáveis pelo relatório, os dados confirmam o entendimento sobre quanto são infecundas medidas que reivindicam punições mais rigorosas aos menores de idade. A carência de estrutura e recursos humanos para viabilizar o acesso dos infratores ao estudo e às atividades profissionalizantes é apontada como a principal mácula do sistema. Sem a chance de participar dessas atividades, o adolescente tem a rotina ociosa semelhante à de um presidiário.

“Quando chega nessa parte de cuidado com o adolescente, todo o sistema começa a falir. No que se refere à infraestruta e aos recursos humanos, o quadro fica ainda mais complicado”, observou o promotor de Justiça na Bahia Carlos Martheo Guanaes. "A responsabilidade penal começa, de fato, aos 12 anos. A realidade do adolescente infrator é uma reprodução do sistema carcerário. Com a proposta de redução da maioriadade penal, você vai pegar um adolescente de 16 anos que vive esse quadro e jogá-lo em uma prisão. Como isso pode ser melhor para sociedade?”, questiona.

Mas nem tudo são má notícias. Os responsáveis pelos dois relatórios são enfáticos em afirmar que, onde há esforços e vontade política para atender as normativas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei — o Sinase —, é possível ver progresso e mesmo metas atingidas. Para eles, em muitos pontos, é apenas uma questão de afinar um sistema que é “intersetorial”, depende portanto de muitas e diferentes frentes do poder público. “Onde as normativas são adotadas e seguidas, há muitos bons exemplos”, insiste a conselheira Taís Schilling Ferraz.

Clique aqui para ler o relatório "Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes no país – Relatório da Resolução 71/2011".
Clique aqui para ler o relatório "Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes – Relatório da Resolução" 67/2011.

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