Processo Novo

Divisão de competências entre STF e STJ faz sentido?

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

5 de agosto de 2013, 9h12

Spacca
A existência de dois tribunais de “cúpula”, um dedicado à interpretação da Constituição, e, outro, da lei federal, tem razão de ser?

Na década de 60 do século passado, passava o Supremo Tribunal Federal por grandes dificuldades, decorrentes do elevado número de processos que tramitavam, naquele tribunal. O problema tornou-se crônico, passando a ser conhecido como “a crise do Supremo”.

Várias medidas foram tomadas com o intuito de resolver a crise. Impedimentos e óbices legais e regimentais foram criados, para dificultar a subida de recursos ao Supremo Tribunal (a expressão “jurisprudência defensiva”, à época, ainda não era utilizada). Foi nesse contexto, com a Emenda Constitucional 7/1977, que surgiu a arguição de relevância.

Mas ela não resolveu o problema. Tornava-se necessário, então, procurar outra alternativa. José Afonso da Silva defendia, na doutrina, a criação de um novo tribunal, que retiraria a competência do STF para julgar pelo menos 75% dos feitos. Essa tese foi ganhando adeptos, na doutrina e entre ministros do Supremo Tribunal Federal (escrevi a respeito desse movimento no livro Prequestionamento e repercussão geral – e outras questões relativas aos recursos especial e extraordinário, 6ª edição, Revista dos Tribunais, 2012).

Com a Constituição Federal de 1988, a ideia foi finalmente adotada. Criou-se o Superior Tribunal de Justiça, que, com o recurso especial, passaria a decidir questões atinentes à inteligência da lei federal (Constituição Federal, artigo 105, inciso III). O Supremo Tribunal Federal continuaria a julgar o recurso extraordinário, mas tal recurso, doravante, se restringiria a questões constitucionais (artigo 102, caput e inciso III, da Constituição Federal).

Essa divisão padece de um grave problema, que, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais evidente: em boa parte dos casos, é muito difícil – eu diria, até, que é impossível – dizer que a questão de direito é constitucional ou federal.

É certo que, em muitas situações, a questão se resolve, em termos aparentemente definitivos, a partir de apenas um dispositivo da Constituição ou de uma lei federal. Parece claro, por exemplo, que a questão relativa à tempestividade da apelação é resolvida apenas com base em um dispositivo de lei federal (v., a respeito, art. 508 do CPC)[1].

Mas não é de questões como essa que desejo tratar, aqui. Refiro-me ao crescente número de situações em que, no dia a dia, não conseguimos discernir se o tema é de direito constitucional ou federal.

Penso em algo que não chega a ser uma tese, mas considero uma hipótese a ser considerada: demoramos alguns anos para despertar, realmente, para o real alcance da Constituição Federal de 1988. Parece que mesmo a jurisprudência dos tribunais superiores levou tempo para compreender o sentido e a amplitude de disposições constitucionais consideradas, hoje, algumas das mais importantes.
Pode-se citar, como exemplo disso, o que sucedeu com o disposto no artigo 1º, inciso III da Constituição, que estabelece como um dos fundamentos do Estado brasileiro “a dignidade da pessoa humana”. De acordo com informações colhidas no site do STF, a primeira decisão que faz referência ao tema em sua ementa é de 1994. Até 2003, apenas outros dez acórdãos fazem menção a tal fundamento na ementa. Só a partir de 2004 a dignidade de pessoa humana passou a ser citada com mais frequência nas ementas dos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal[2].

Ao lado dessa gradativa compreensão do sentido da norma constitucional, paralelamente, outro sentimento tomou conta, de modo paulatino, da doutrina e da jurisprudência: o de que muitos problemas de direito “federal infraconstitucional” não podem ser dirimidos, senão a partir da leitura da Constituição.

Há vários exemplos de problemas examinados, recentemente, pelo Superior Tribunal de Justiça, em que a “questão federal” foi dirimida com base em alguma regra ou princípio constitucional. O Superior Tribunal de Justiça assim agiu quando tratou de questões como direito à imagem, separação de bens na união estável, responsabilidade de hospital por recusa de atendimento, indenização por perseguição política durante o regime militar, dever do Estado de informar à imprensa gastos que teve com publicidade, demarcação de terras indígenas etc. [3]

O mais significativo dos exemplos talvez seja o julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A tendência, a que ora me refiro, foi, no caso, textualmente assumida pelos ministros daquele tribunal: “Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam ‘de costas’ para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita”.

A exemplo do que sucedeu com o Supremo Tribunal Federal, também o Superior Tribunal de Justiça passou a dar atenção ao disposto no art. 1.º, inciso III da Constituição aproximadamente em 1994, tendo proferido poucos acórdãos fundamentados, explicitamente, em tal dispositivo, até os anos de 2003-2004.

Particularmente nos últimos 10 anos, a dignidade da pessoa humana tem servido de vetor a uma infinidade de julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça.
A ideia de que os tribunais superiores ocupariam “nichos” bem separados e definidos, em que o Supremo Tribunal Federal julgaria apenas questões constitucionais através de recursos extraordinários, e o Superior Tribunal de Justiça resolveria somente questões federais infraconstitucionais ao julgar recursos especiais, resta, segundo penso, totalmente comprometida.

Essa questão deve ser objeto de discussão neste momento, em que tramita no Congresso Nacional Projeto de Emenda à Constituição que cria o requisito da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional” para o recurso especial.

Ninguém esconde que a medida tem por finalidade reduzir o número de processos em trâmite no Superior de Justiça. Antes de se pensar em “criar filtros”, creio que devemos levar a sério o papel que tribunais de cúpula devem desempenhar, não apenas como órgãos do Poder Judiciário, mas, também, mas frente a todo o sistema jurídico.

Ao invés de se criar medidas que restrinjam o acesso aos tribunais superiores, seria o caso de discutir, por exemplo, se deveria ser alterado o modo de escolha dos ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal, se sua competência deveria se restringir ao controle abstrato de constitucionalidade, etc. Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, deveria se propor o cabimento de recurso especial quando houvesse violação à normas federais lato sensu (aí inserida a norma constitucional)[4].

Uma alteração que seguisse esse rumo poderia resolver dois dos grandes problemas que, penso, dizem respeito à atual conformação desses dois tribunais superiores: de um lado, poderia transformar o Supremo Tribunal Federal em autêntica corte constitucional; além disso, eliminaria a dicotomia recurso extraordinário/recurso especial, a que nos referimos no presente texto, e que tanta confusão causa, no dia a dia forense (tal confusão tende, em parte, a ser mitigada se aprovada a solução prevista no projeto de novo CPC, que mencionamos na coluna passada). 

Voltaremos a discutir esses temas em futuros textos desta coluna. Até a próxima semana!


[1] Cabe, aqui, um esclarecimento: Evidentemente, não há tema de direito federal infraconstitucional “puro”, que não deva ser resolvido senão a partir da Constituição. Mesmo o problema mencionado não escapa da norma constitucional, ou – o que é dizer o mesmo – não pode ficar à margem, ou, muito menos, ser resolvido de modo contrário à Constituição. No caso mencionado, a questão é resolvida com a interpretação e aplicação da solução prevista no art. 508 do CPC, após, evidente, tal disposição ter sido “testada” à luz da Constituição pelo intérprete/aplicador do direito para resolver um problema.
[2] É curioso notar, por outro lado, que talvez tenhamos chegado, atualmente, à outra extremidade desse movimento (pendular?): a dignidade da pessoa humana vem sendo citada como fundamento para se decidir quase todos os problemas, hoje levados ao Poder Judiciário (ligo isso à ao que chamo de “hiperinflação dos princípios”, algo que considero grave, e será objeto de outro texto, no futuro, nesta coluna).
[3] Embora, nesses dois últimos caso, as decisões não tenham sido proferida em julgamento de recurso especial, os exemplos são bastante expressivos do problema.
[4] Ainda que, no caso, se previsse algum filtro. Entendemos, de todo modo, que na hipótese de recurso interposto contra decisão que der à norma “interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”, a relevância da questão federal (ou repercussão geral da questão constitucional) estará sempre presente.

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