Diário de Classe

Scott Turow ensina como (não) se faz um advogado

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3 de agosto de 2013, 8h01

Scott Turow é um renomado escritor e advogado norte-americano. Não está entre meus preferidos. Longe disso. De todo modo, seus livros foram traduzidos para diversos idiomas e venderam milhões de cópias em todo o mundo, além de algumas adaptações para o cinema. A primeira de suas obras, de caráter autobiográfico, é intitulada O Primeiro Ano — Como se Faz um Advogado (no original, One L: The Turbulent True Story of a First Year at Harvard Law School). Nela, o autor narra os rituais, as angústias e os desafios que marcaram a formação na Faculdade de Direito de Harvard (clique aqui para assistir). Por que estou contando isto?

Explico. Entre as conclusões do autor, relatadas no último capítulo, uma chama especial atenção. Ao fazer um balanço acerca de sua trajetória, ele afirma: “eu sei que saio do curso melhor preparado tecnicamente; não sei, porém, se saio uma pessoa melhor”. Turow denuncia o modo como os estudantes são recrutados pelos principais escritórios, que defendem os interesses das grandes corporações, instituindo, assim, um círculo vicioso que contamina — ou melhor, predetermina e prejudica — a formação dos jovens juristas.

Este me parece um ponto relevante — e que vem sendo absolutamente negligenciado — quando se discute, atualmente, o ensino jurídico no Brasil. Sei que este tema vem sendo reiteradamente abordado neste Diário de Classe e em outras colunas da ConJur. Todavia, considerando o momento que estamos vivendo — marcado por inúmeras discussões públicas a respeito do novo marco regulatório do ensino jurídico —, impossível tangenciar o assunto, diante dos últimos acontecimentos e, sobretudo da necessidade de se questionar os problemas das soluções que vêm sendo formuladas.

Como se sabe, no último mês de março, o Ministério da Educação firmou acordo de cooperação com a Ordem dos Advogados do Brasil para a construção de um novo marco regulatório para o ensino do Direito. Desde então, houve a suspensão do processo de criação de novos cursos, o congelamento de milhares de vagas e o início de uma rodada de audiências públicas, realizadas em diversas seccionais da OAB, conforme orientação de seu Conselho Federal, a respeito das diretrizes que devem ser adotadas neste modelo. Tudo isso ganhou ainda mais destaque com a polêmica em torno das questões dissertativas de Direito Penal e de Direito Administrativo formuladas no X Exame da Ordem.

Leio por aí que as discussões realizadas em diversos estados da federação (Piauí, São Paulo, Paraná, Amazonas, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Alagoas, Ceará, Pará e Santa Catarina) têm contemplado pautas variadas — como, por exemplo, os critérios para a criação e reconhecimento de novos cursos, os instrumentos de avaliação, o tal estágio obrigatório e a necessidade de alterações das diretrizes curriculares — e reunido as propostas encaminhadas pelos representantes das comunidades jurídica e acadêmica.

Sei também que, desde o início, as audiências públicas vêm sendo acompanhadas pela Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi), que está atenta e tem desempenhado o papel de catalisador na formulação do novo marco regulatório. Registre-se, nesse sentido, a Carta Aberta a Propósito da Revisão do Marco Regulatório em Direito, na qual estabeleceu, objetivamente, 16 pontos centrais para o debate acerca do futuro ensino jurídico.

Entretanto, percebo que a preocupação central diz respeito, ao fim e ao cabo, à baixa aprovação no Exame de Ordem. Este é o discurso que vem sendo formatado sob o véu da necessidade de um ensino jurídico de qualidade. E isto se deve a uma razão óbvia, uma vez que os trabalhos são conduzidos pela Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. A lógica é bem simples: precisamos melhorar o ensino do Direito no país para que os bacharéis consigam, ao final, ser aprovados no temido Exame de Ordem. Discordo e, para tanto, volto à lição de Turow.

Lá, no ensino jurídico estadunidense, os cursos visam à formação de profissionais a serem recrutados por grandes escritórios/corporações. Aqui, em terrae brasilis, os cursos se voltam à aprovação no Exame de Ordem. Tanto é assim que, periodicamente, divulgamos o ranking das faculdades que obtêm maior percentual de egressos aprovados na OAB, como se isso fosse um atestado de qualidade. Isto para não falar do tal Selo OAB, certificado às instituições recomendadas.

Na última quinta-feira (1º/8), Lenio Streck colocou o dedo na ferida, mais uma vez, denunciando as idiossincrasias do sistema: “Agora mesmo descobri que haverá uma audiência pública da OAB sobre o ensino jurídico. Está tendo em todo Brasil…  Estão preocupados com o EAD e os cursos de curta duração. Qual é o problema? O problema é a cegueira da OAB, que não percebe que o modelo de ensino exigido/estimulado pelo Exame de Ordem é que viabiliza essas soluções mágicas. Meu desafio: alteremos a forma dos concursos e a forma das questões do Exame de Ordem que, em pouquíssimo tempo, mudaremos o ensino jurídico. A OAB não se dá conta de que ela mesma é quem fomenta isso que está ai. Repito: isso é uma reprodução do problema e não uma solução” (grifei).

Bingo! Este é o ponto. Apostamos num ensino jurídico cartorial e cada vez mais profissionalizante, a fim de preparar os estudantes para o Exame da Ordem. O pior de tudo é que fracassamos! Basta, para tanto, ver os altos índices de reprovação. Em suma: voltamos a formação para a realização de uma prova cujo teor finalmente nos demos conta de que deve ser revisto.

Fica a pergunta: de que adiantará a construção de nova política de ensino jurídico no Brasil se, ao final, o Exame da Ordem e os concursos públicos para as carreiras jurídicas mantiverem o formato de quiz, estimulando o fenômeno da plastificação do Direito? Afinal, será que é assim que se faz um advogado, um juiz ou um promotor?

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