Dano ao erário

Acúmulo de cargos pode escapar da Lei de Improbidade

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2 de agosto de 2013, 9h13

É muito comum no Brasil que servidores públicos ocupem mais de um cargo na administração pública. Em regra, a acumulação remunerada de cargos públicos é vedada pela Constituição, que em seu artigo 37, inciso XVI, alíneas “a”, “b” e “c”, admite três exceções. São estas a acumulação de dois cargos de professor, de um cargo de professor com outro técnico ou científico, ou ainda de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.

Com relação aos que ocupam mandato eletivo, a Carta Magna, em seu artigo 38 e incisos, determina que aqueles que ocupam mandato federal, estadual ou distrital devem ficar afastados de seu cargo, emprego ou função. Os prefeitos também ficam afastados de seus cargos, mas podem optar pela remuneração de qualquer um deles. Já os vereadores poderão acumular a vaga na Câmara com o cargo ou emprego público que ocupem, desde que haja compatibilidade, caso contrário, aplica-se a mesma regra válida para os prefeitos.

Importante ressaltar que em todas as hipóteses do artigo 37, inciso VXI da Constituição e no caso da acumulação por parte de vereador, deve haver, obrigatoriamente, compatibilidade de horários. Tal regra é expressamente prevista no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº 8.112/90), em seu artigo 118, §2º.

Há também outro empecilho para a acumulação de cargos: a incompatibilidade em razão da distância. De acordo com o artigo 5º, alínea “d”, do Decreto 25031/55, do Estado de São Paulo, “somente será permitida a acumulação de cargos no mesmo município ou em municípios vizinhos, entendidos como tais, apenas as que forem limítrofes”. Não seria nada razoável admitir, a título de exemplo, que o mesmo servidor tivesse um vínculo em Santos e outro na cidade de São Paulo. A impossibilidade, no caso, decorreria de barreira fática imposta pela distância.

Dessa forma, a acumulação de cargos públicos fora das hipóteses admissíveis configuraria, em tese, conduta que atenta contra os princípios da Administração Pública e, consequentemente, enquadrada como ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11, caput, da Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa).

A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA PARA CASOS DE ACUMULAÇÃO IRREGULAR DE CARGOS

Para a mais recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em matéria de acumulação irregular de cargos públicos, uma vez comprovada a efetiva prestação dos serviços e a boa-fé do servidor, estaria afastada a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa por se tratar de mera irregularidade. Isso é o que se pode concluir ao analisar-se o julgamento de Agravo Regimental no Recurso Especial 1.245.622 – RS[1], tratando de caso em que houve acumulação do cargo de assessor jurídico em municípios distintos.

Na hipótese de acumulação de cargos, se consignada a efetiva prestação de serviço público, o valor irrisório da contraprestação paga ao profissional e a boa-fé do contratado, há de se afastar a violação do art. 11 da Lei n. 8.429/1992. Isso se dá sobretudo quando as premissas fáticas do acórdão recorrido evidenciam a ocorrência de simples irregularidade e inexistência de desvio ético ou inabilitação moral para o exercício do múnus público. (Precedente: REsp 996.791/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 8.6.2010, DJe 27.4.2011.)

Assim, verifica-se que, segundo a jurisprudência do STJ, a acumulação de cargos irregular não configura necessariamente um ato de improbidade administrativa, devendo ser considerada uma série de elementos no caso concreto.

O primeiro aspecto a se analisar é se houve ou não a efetiva prestação dos serviços e se a mesma se deu de forma satisfatória, sem trazer prejuízo a nenhum dos órgãos envolvidos.

Com relação à boa-fé do contratado, entendemos que a mesma é específica, ou seja, refere-se apenas à vontade de exercer as duas atividades de maneira eficiente e não causar prejuízo, mesmo estando o servidor ciente de que se trata de uma acumulação irregular de cargos públicos.

Há que se registrar a subjetividade da expressão “valor irrisório da contraprestação paga ao profissional”. O entendimento indica que trata-se de valor que não excede ao que é praticado habitualmente para serviços da mesma natureza e que não resulte em enriquecimento sem causa ou prejuízo ao erário.

Com relação aos casos em que se demonstra que houve efetivo prejuízo para a Administração Pública, como no caso da incompatibilidade de horários (que obviamente leva à conclusão de que os serviços não foram efetivamente prestados nos dois órgãos concomitantemente), não resta dúvida quanto à aplicação da LIA. É o que se verifica no seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região[2]:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. MÉDICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. INCOMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS.

I – A acumulação lícita de cargos exige que se atenda ao requisito da compatibilidade de horários, a teor do art. 119 da Lei 8.112/90.

II – As sanções do art. 12, da Lei 8.429/92 não são necessariamente cumulativas, cabendo ao magistrado a sua dosimetria.

III – Não é devida a devolução dos valores percebidos a título de salários quando verificado que o trabalho foi efetivamente prestado, ainda que as nomeações tenham sido irregulares, visto que seria o mesmo que admitir enriquecimento sem causa da União.

IV – Apelação provida em parte. Sentença reformada.

Dessa forma, a má-fé do servidor que ocupa simultaneamente dois cargos públicos em que há incompatibilidade de horários é nitidamente perceptível, uma vez que haverá necessariamente prejuízo para uma das entidades para quem o servidor presta serviços. Não se trata, portanto, de mera irregularidade. Assim, não há como deixar de se aplicar, ainda que em parte (dependendo da situação concreta), as sanções previstas na LIA.

A 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais[3], ao julgar acumulação irregular de cargos em municípios distintos, reforça que a boa-fé do servidor é sempre presumida, uma vez que deve ser comprovada a má-fé de maneira inequívoca para que se possa aplicar a LIA:

EMENTA: Remessa oficial e apelação cível voluntária. Ação civil pública. Acumulação indevida de cargos públicos. Má-fé ausente. Direito de opção. Falta de oportunidade para ser exercido. Improbidade administrativa não caracterizada. Sentença confirmada. 1. Rejeitada a petição inicial da ação civil pública na qual foi veiculada pretensão de ressarcimento do erário público, está presente o duplo grau de jurisdição obrigatório. A remessa deve ser, de ofício, conhecida. 2. A boa-fé sempre é presumida. Assim, a má-fé desafia comprovação. 3. O funcionário público que esteja acumulando mais de um cargo público de forma irregular tem o direito de optar por apenas um deles. 4. Ausente a prova da má-fé na acumulação indevida de cargos e não tendo sido ensejada oportunidade para a opção, resta afastada a suposta improbidade administrativa. Revela-se, portanto, correta a sentença que deixou de receber a petição inicial. 5. Remessa oficial conhecida de ofício. 6. Apelação cível voluntária conhecida. 7. Sentença que deixou de receber a petição inicial confirmada no reexame necessário, prejudicado o recurso voluntário.

A referida jurisprudência traz à baila o direito previsto no artigo 133, caput, da Lei 8.112/90, que prevê a notificação do servidor para apresentar opção nos casos em que for detectada a acumulação ilegal. Há o entendimento de que o elemento subjetivo não está relacionado com a notificação para o exercício do direito de opção, devendo o julgador se ater somente à comprovação, ou não, do efetivo prejuízo para a Administração Pública para concluir se houve boa ou má-fé. O servidor não pode alegar desconhecimento da lei, logo não há necessidade de que haja notificação para que o mesmo tome conhecimento da irregularidade da acumulação. Embora o §5º, do art. 133 da Lei 8.112/90 preconize que “a opção pelo servidor até o último dia de prazo para defesa configurará sua boa-fé, hipótese em que se converterá automaticamente em pedido de exoneração do outro cargo”, não resta dúvida de que a presunção de boa-fé prevista na norma restringe-se apenas ao processo administrativo disciplinar de que trata o próprio art. 133 da Lei 8.112/90 e não cabe sua aplicação nos procedimentos da LIA. 

CONCLUSÃO

Assim, verifica-se que a acumulação ilegal de cargos públicos nem sempre está sujeita à incidência da Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que nos casos em que não há a comprovação do dano causado ao erário existe apenas uma situação de irregularidade. Considerando-se como regra o pressuposto de que a boa-fé do servidor é presumida, só se admite a existência de má-fé quando a acumulação se der de maneira que cause dano à Administração Pública.

O STJ firmou sólida jurisprudência no sentido de que, havendo comprovação de que os serviços foram efetivamente prestados, não há que se falar em desvio ético capaz de ensejar a aplicação das penas da LIA. Destaque-se que ao adotar tal entendimento a Corte não está consentindo com a acumulação ilícita de cargos, pois existem outros instrumentos jurídicos à disposição do Ministério Público (e das entidades que forem afetadas pela acumulação) para que se restabeleça a legalidade.


[1]AgRg no Recurso Especial Nº 1.245.622 – RS. Rel: Min. Humberto Martins. STJ. Publicado em 24 de junho de 2011.

[2] AC 2003.41.00.005421-8/RO, Rel. Desembargador Federal Cândido Ribeiro.Terceira Turma. TRF1.Publicado em 21 de setembro de 2007.

[3] Apelação Cível N° 1.0439.08.086621-3/001. Rel. Desembargador Caetano Levi Lopes. 2ª Câmara Cível. TJ-MG. Publicado em 05 de novembro de 2009.

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