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Carolina Carneiro: Brasil e Bolívia violaram tratados no caso do senador

1 de agosto de 2013, 9h02

Por Anna Carolina Coelho Carneiro

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Quando se fala em asilo político, parte significativa da população pensa, imediatamente, que se trata de um direito subjetivo que pertença aos indivíduos. É um equívoco muito comum, uma vez que o asilo, em realidade, consiste na proteção que um Estado confere a um indivíduo estrangeiro que tenha ameaçadas a liberdade, a dignidade ou a vida, geralmente em seu Estado de nacionalidade, em razão de perseguição política. 

Todavia, o asilo é um direito do Estado, e não um dever, conforme indica, inclusive, a Resolução 3.212 da Assembleia Geral da ONU. Assim, quando um Estado concede asilo a determinado estrangeiro, está praticando ato de soberania que deve ser respeitado pelos demais Estados, conforme também prevê a dita Resolução 3.212 da Assembleia Geral da ONU. 

Não fosse assim, a concessão do asilo estaria prevista no artigo 5º da Constituição Federal, quando, na verdade, encontra-se no artigo 4º, inciso X, enquanto um dos princípios norteadores da República Federativa do Brasil em suas relações internacionais. Afinal, não se pode esquecer que, por mais humanitário que seja o caráter do instituto do asilo, ainda é uma prerrogativa do Estado decidir quem, dentre estrangeiros, pode ingressar em seu território, apesar de existirem posicionamentos contrários a defender eventual obrigatoriedade da concessão do asilo. 

A forma perfeita e acabada do asilo é o asilo territorial, aquele em que o asilado é acolhido no território do Estado asilante. Como indica Francisco Rezek , o asilo territorial é “concedido pelo Estado àquele estrangeiro que, havendo cruzado a fronteira, colocou-se no âmbito espacial de sua soberania, e aí requereu o benefício”. O candidato ao asilo territorial, na grande maioria dos casos, cruza a fronteira sem portar os documentos necessários ao ingresso regular no território daquele país, o que é plenamente justificável diante da situação de perseguição política em que vivia no Estado do qual se retirou.

Em razão da Convenção de Caracas sobre Asilo Diplomático, a qual o Brasil assinou em 28 de março de 1954 e ratificou em 25 de junho de 1957, o ordenamento brasileiro reconhece também o asilo diplomático, que é aquele em que o estrangeiro perseguido por razões políticas é acolhido em embaixadas, navios de guerra e acampamentos ou aeronaves militares (artigo I da Convenção de Caracas). 

O asilo diplomático é uma forma precária de asilo, uma etapa anterior ao asilo definitivo, que é o asilo territorial. Conforme dispõe a Convenção de Caracas, no artigo V, o asilo diplomático deve ser concedido pelo tempo estritamente necessário para que o asilado possa sair daquele território em segurança, e, para tanto, estabelece o artigo XII que o Estado territorial é obrigado a conceder imediatamente, salvo motivo de força maior, o salvo-conduto necessário à retirada do indivíduo daquele território, frise-se, em segurança. 

Cumpre destacar que, ainda de acordo com a mencionada Convenção, compete à autoridade asilante, de posse de informações oferecidas pelo Estado territorial, formar seu juízo a respeito da natureza do delito (se político ou se comum), devendo esta decisão, bem como a concessão do asilo, ser respeitada pelo Estado territorial.

Pois bem, diante de todo este contexto, analisemos a situação do senador boliviano Roger Pinto Molina, opositor ao governo do presidente Evo Morales. 

Os meios de comunicação já noticiam o caso do senador Pinto Molina há mais de ano, tendo sua situação se tornado notória. Em 28 de maio de 2012 o senador pediu asilo na Embaixada do Brasil em La Paz, sob a alegação de que sofria perseguição política do governo de Evo Morales em razão das diversas denúncias de corrupção e de envolvimento com o narcotráfico que havia efetuado contra integrantes do governo. No dia 8 de junho daquele ano, o asilo foi concedido ao senador Pinto Molina pelo governo brasileiro, o que significa que o Brasil reconhece como de natureza política os delitos imputados ao senador, o que inegavelmente configuraria perseguição política. 

Mesmo já sendo detentor do status de asilado político, o senador Pinto Molina estava restrito a uma sala de 20 metros quadrados na Embaixada brasileira, com visitação autorizada de apenas três pessoas (uma de suas filhas, um assistente e seu advogado), por 455 dias. 

Em que pese ao alegado “conforto” proporcionado pela Embaixada brasileira, não é possível negar que 455 dias nestas circunstâncias consista em verdadeira privação de liberdade, com o agravante de que não se tratava de cumprimento de pena e que o salvo-conduto já havia sido reiteradamente solicitado! O senador vivia restrições tão rigorosas na “confortável” sala em que estava confinado na Embaixada brasileira que seu advogado impetrou o HC 117.905 no STF, o qual conta como autoridade coatora a própria Presidente Dilma que, visivelmente, em nada se empenhou para pôr fim à angústia e a privação de liberdade atentatória à dignidade humana de um asilado político. 

Diante da dura concretude dos fatos, o diplomata Eduardo Saboia, Encarregado de Negócios da Embaixada e por ela responsável na ausência do embaixador (que era o caso), corajosamente decidiu trazer o senador Pinto Molina para o Brasil, no que obteve louvável êxito. 

Defrontados com a situação, o governo boliviano alegou desrespeito à Convenção de Caracas e o governo brasileiro asseverou a “quebra de hierarquia”. Duas incontestáveis verdades! 

Houve sim violação à Convenção de Caracas, bem como a outros instrumentos internacionais que tratam do asilo político, quando o governo da Bolívia, que deveria ter respeitado o ato de soberania brasileiro de concessão de asilo, se negou por 15 meses a conceder o salvo-conduto e as garantias necessárias à saída do asilado. Isso deveria ter sido ato imediato e desprovido de discricionariedade! Isso sem mencionar o trágico episódio em que militares bolivianos armados revistaram o avião da Força Aérea Brasileira, que transportava o ministro da Defesa Celso Amorim, à procura do senador Pinto Molina, que estava, à época, “confortavelmente” confinado a uma sala na Embaixada brasileira.

Houve, igualmente, quebra de hierarquia, mas de hierarquia normativa, quando se intentou dar mais valor a um dispositivo de cunho eminentemente burocrático-funcional constante de tratado (que se presta exclusivamente a garantir alguma segurança ao asilado na sua retirada do país territorial) do que à dignidade humana, norma imperativa, valor absoluto sobre o qual se deve fundar todo e qualquer Estado Democrático de Direito. Afinal, é fato incontroverso que, na ordem internacional, acima de qualquer tratado e qualquer costume, se encontram as normas cogentes, aquelas que se revelam inafastáveis pela vontade dos Estados, cujo desrespeito implica ilícito internacional, e que tem como uma de suas mais ilustres representantes a dignidade humana. 

Mesmo a contragosto de chefes de Estado, neste momento pode-se dizer que prevaleceu a audaciosa lucidez do diplomata Eduardo Saboia, que escolheu deixar de lado o “faz de conta” das supostas negociações para o salvo-conduto do senador Pinto Molina e agiu na concretização dos seus direitos humanos, resguardando a vida e a dignidade do Senador, ao mesmo tempo em que protegeu a honra do Estado brasileiro de um resultado desastroso nesse patético teatro político de irrestrita camaradagem esquerdista.