Proposta inconstitucional

PEC 33 reaviva disputa entre Carl Schmitt e Hans Kelsen

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27 de abril de 2013, 7h08

Conforme amplamente noticiado pelos órgãos de imprensa, por “votação simbólica” ocorrida no dia 24 de abril de 2013, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, foi aprovada a Proposta de Emenda Constitucional 33/2011[1], de autoria do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI).

O aludido ato normativo, a pretexto de conter o “ativismo judicial” do Supremo Tribunal Federal e resgatar o valor da representação política, da soberania popular e da dignidade da lei, propõe a alteração dos artigos 97, 102 e 103-A, da Constituição Federal, para, em síntese:

a) alterar o quórum exigido para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, que passaria a ser de quatro quintos, ao invés da regra atual da maioria absoluta;

b) estabelecer critérios mais rigorosos para a edição de súmulas vinculantes, a exemplo da aprovação por quórum de quatro quintos dos membros do Supremo Tribunal Federal (ou seja, 9 dos 11 ministros) e a observância da estrita identidade com as situações que ensejaram a sua criação, além de condicionar o seu efeito vinculante à aprovação pelo Congresso Nacional (admitindo-se a aprovação tácita, caso não ocorra deliberação no prazo de noventa dias);

c) condicionar o efeito vinculante e a eficácia erga omnes das decisões de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em ações diretas de inconstitucionalidade que declarem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição, à sua ratificação pelo Congresso Nacional (admitindo-se a aprovação tácita, caso não ocorra deliberação no prazo de noventa dias), explicitando, ainda, que, em caso de manifestação contrária do Parlamento, deverá a proposta ser submetida à consulta popular.

Antes de iniciar a análise acerca do conteúdo da PEC 33/2011, é importante destacar que ela foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça — CCJ da Câmara dos Deputados, que não detém papel meramente figurativo no trâmite do processo legislativo, por ser seu dever exercer o controle preventivo de constitucionalidade dos atos normativos[2]. Em verdade, é para isso que existe a aludida comissão permanente, para evitar que atos normativos inconstitucionais venham a ser aprovados pelo Parlamento e, ao final, invalidados pelo Poder Judiciário, o que, evidentemente, causa insegurança jurídica.

Será que esse papel/missão da CCJ da Câmara foi cumprido, no caso concreto? Penso que não, tendo em vista que, em tema de inegável estatura constitucional, em que está em disputa o equilíbrio entre os poderes, seria exigível um debate qualificado no Parlamento, na comissão destinada ao exame das questões constitucionais, inclusive acerca da própria admissibilidade da proposta de emenda à Constituição. O que se observou foi a aprovação, sem qualquer voz dissonante, por “votação simbólica”, da citada Proposta, em conformidade com o parecer do relator, o deputado João Campos (PSDB-GO).

Quanto ao mérito da proposta, percebe-se que, caso aprovada, ensejará um notório esvaziamento da função atribuída ao Supremo Tribunal Federal pelo artigo 102 da Constituição Federal, qual seja, “a guarda da Constituição”, quando condiciona a aprovação de súmulas vinculantes (instrumento introduzido na Constituição Federal pela EC 45/2004, com o propósito de conferir a tão desejada previsibilidade dos pronunciamentos jurisdicionais e a consequente estabilidade das relações sociais) e a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público ao quórum qualificadíssimo de quatro quintos. Ou seja, uma quase-unanimidade, dificultando, sobremaneira, o exercício do poder contramajoritário, atribuído à jurisdição constitucional.

Pretende, ainda, a PEC 33/2011, submeter as decisões do mérito do Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade material de atos do poder constituinte derivado (edição de emendas constitucionais), ao escrutínio do Parlamento, órgão que produziu o ato normativo invalidado judicialmente. Confere-se ao Congresso Nacional o poder de desaprovação do ato normativo e, nesse caso, impõe-se a submissão da controvérsia à consulta popular.

O povo passará a ser o árbitro da disputa entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, no que tange à constitucionalidade de emendas aprovadas pelo primeiro e anuladas, por vício de inconstitucionalidade, pelo segundo.

A pretensão inaugurada por esta Proposta de Emenda Constitucional faz lembrar a clássica disputa que surgiu, nos albores do constitucionalismo, acerca de quem deveria ser o guardião da Constituição. Os seus protagonistas eram Carl Schmitt e Hans Kelsen. O primeiro afirmava que a Constituição deveria ser guardada pelo chefe do Estado, o presidente do Reich. O segundo confiava essa função a um Tribunal Constitucional.

A supremacia da Constituição, da forma como conhecida nos Estados soberanos do ocidente, recebeu uma forte influência do direito constitucional norte-americano, através da notória decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Marbury vs. Madison, em que, pela primeira vez, foi reconhecida judicialmente a possibilidade do exercício do controle judicial de constitucionalidade de atos normativos.

Mesmo em Estados soberanos em que se afirmava existir a supremacia do Parlamento, tal panorama foi recentemente alterado.

Na Grã-Bretanha, por exemplo, no ano de 2005, através do ato de Reforma Constitucional, foi criada a Suprema Corte do Reino Unido (UKSC), instalada em outubro de 2009. Na França, foi introduzida, pela reforma constitucional de 23 de julho de 2008, que entrou em vigor em 1º de março de 2010, a question prioritaire de constitutionnalité, passando a permitir o controle repressivo de constitucionalidade dos atos normativos, antes inexistente naquele ordenamento jurídico.

Atribuir ao Parlamento ou, em última instância, ao próprio povo (a consulta popular de que trata a Proposta de Emenda Constitucional), a análise da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (que, no Brasil, faz as vezes de Corte Constitucional), é proposta que viola flagrantemente o princípio constitucional da separação dos poderes (CF, artigo 2º), por alterar o concerto institucional dos Poderes da República Federativa do Brasil, conforme originariamente estabelecido na Constituição de 1988. E, diante da cláusula pétrea contida no artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal, não deve passar pelo juízo de admissibilidade.

Vale afirmar, ainda, que na história constitucional brasileira, apenas a Constituição de 1937[3], outorgada pelo presidente Getúlio Vargas no mesmo dia em que implanta a ditadura do Estado Novo, continha dispositivo semelhante.

Quando o Congresso Nacional promulga uma Proposta de Emenda Constitucional está exercendo o poder constituinte derivado em nome do povo (verdadeiro titular desse poder). Quando o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, nega validade a essa norma, emanada do poder constituinte derivado, está a prestigiar a vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal, zelando pela sua integridade e pelo respeito à vontade da nação (na lição de Carlos Ayres Britto[4], é esta uma entidade atemporal, congregando o passado, o presente e o porvir dos habitantes de determinado Estado soberano).

Concluo essas breves reflexões, apontando a inconstitucionalidade dos dispositivos contidos na PEC 33/2011, por afronta à cláusula pétrea da separação dos Poderes, fazendo coro das palavras proferidas pelo ministro Gilmar Mendes, no dia da sua aprovação pela CCJ da Câmara dos Deputados: "Não há nenhuma dúvida, ela é inconstitucional do começo ao fim, de Deus ao último constituinte que assinou a Constituição. É evidente que é isso. Eles [CCJ] rasgaram a Constituição. Se um dia essa emenda vier a ser aprovada é melhor que se feche o Supremo Tribunal Federal. É disso que se cuida”.


[1] O inteiro teor da PEC 33/2011, bem como da sua Exposição de Motivos, estão disponíveis em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=876817&filename=PEC+33/2011.

[2] O art. 32, IV, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê a existência da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania no âmbito desta Casa Legislativa, à qual incumbe deliberar acerca dos “aspectos constitucional, legal, jurídico, regimental e de técnica legislativa de projetos, emendas ou substitutivos sujeitos à apreciação da Câmara ou de suas Comissões” (alínea “a”) e da “admissibilidade de proposta de emenda à Constituição” (alínea “b”).

[3] Art 96 – Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República.

Parágrafo único – No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.

[4] Conforme consta em voto proferido na ADI 3105/DF: “Toda nação é multigeracional. Não há espaço para uma geração se sentir oprimida por outra se a nação permanece a mesma, ou seja, assim como o rio é um único rio da nascente à foz — nascente, foz, corrente — tudo é uma só coisa, a nação de ontem é a mesma nação de hoje, do ponto de vista ontológico ou de sua identidade cultural. Se a geração atual entende que essa Constituição já se esclerosou, já não serve como locomotiva social, e as instituições nascidas à sombra dela já se esclerosaram, entraram em colapso cardíaco ou coisa que o valha, o que impede essa nova geração de pugnar por uma nova Constituição? Mas, enquanto a Constituição permanecer, tem que ser respeitada sem que haja, no interior dela, essa fricção geracional preocupante. Parece-me que não!”.

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