Senso Incomum

A iatrogenia e o Direito: quando tudo vira grau zero

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25 de abril de 2013, 8h00

Spacca
Pensamento individual não cria ideologia
A cada semana leio um livro ou quase um. Por duas razões, que, na maior parte das vezes, se conjuminam. A uma, leio para elaborar o roteiro que seguirei para o Programa Direito & Literatura (já estamos no programa 197); a duas, para buscar inspiração para a próxima Coluna aqui na ConJur. Não é fácil ser responsável por uma coluna semanal e mantê-la no ranking das dez matérias mais acessadas no maior portal jurídico de terrae brasilis. Nesse sentido, agradeço a confiança dos milhares de leitores, com a ajuda dos quais batemos um recorde, emplacando, na semana que passou, em segundo, terceiro e quarto lugares duas colunas e um artigo, tudo em um espaço de 5 a 7 dias. Gracias, parceiros.

Pois de sábado para domingo, em uma vista d´olhos em minha biblioteca de literatura, encontrei o livro de Caryl Emerson, chamado Os 100 Primeiros Anos de Mikhail Bakhtin. Qual é a vertente ideológica que não tenha debatido Bakhtin? Lembro-me de quando cursava mestrado, em que Luis Alberto Warat nos indicava a leitura dos livros Problemas da Poética de Dostoiévski e Cultura Popular na Idade Média (em que está a origem do Carnaval e do qual Warat se inspirou para construir o seu A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos) e o que mais fazia sucesso, Marxismo e Filosofia da Linguagem, no qual Bakthin descobre no signo linguístico um signo social e ideológico, que põe em relação à consciência individual com a interação social. Dizia ele que o pensamento individual não cria ideologia, é a ideologia que cria pensamento individual.

A boa crítica ao pós-modernismo
Mas não vou falar propriamente de Bakhtin. Nessa obra sobre Bakhtin, Emerson cita uma crítica do escritor russo O.V. Vainshtein, feita em 1993, numa mesa redonda sobre pós-modernismo e cultura: “Sob o signo de pós-modernismo pode-se não apenas ver performances e poesia escrita, como também fazer panquecas, vestir roupas extravagantes, fazer sexo e brigar, além de arrolar como predecessor qualquer autor que se queira o panteão da cultura mundial, de Marquês de Sade a Santo Agostinho. (…) O que importa para o pós-modernismo não é a profundidade nem a intensidade, mas o deslizar sobre a superfície, o optar entre vários significados.”

E vejam o complemento de Vainshtein: “Profundamente pós-modernista, nesse sentido, é a imagem do passeio veloz pelos canais de televisão com um aparelho de controle remoto, consistindo o prazer do telespectador, em grande medida, no próprio apertar dos botões — atividade que propicia uma agradável sensação de poder sobre a imagem na tela e que no campo da estética visual promete inesperados efeitos de montagem”.

A epistemologia rasa um ponto zero
A citação de Vaishtein me remeteu de volta à coluna da semana passada, em que tratei dessa espécie de “pós-modernidade” que tomou conta do Direito, do ensino do Direito, da doutrina, da jurisprudência e dos concursos públicos. Não há (mais) fundamento. Há, apenas, o grau zero de sentido. Trata-se de uma epistemologia rasa “tipo” 1.0 (câmbio manual, sem direção hidráulica, sem bancos de couro, sem air-bag, sem tapetes e sem espelho retrovisor do lado direito), na qual é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. A partir dela, pode-se perguntar qualquer coisa em concursos públicos. E pode-se, sobretudo, dizer qualquer coisa em sala de aula. Estamos em um laissez faire de sentidos. Inclusive podemos ensinar um Kelsen que nunca existiu. Um Recaséns Siches que não tem nada a ver com a pergunta do concurso público. Podemos falar de um Malatesta absolutamente contraditório e que entra em julgamentos de Pindorama como se fosse um conjunto de axiomas coerentes (o Malatesta vira alguém que Mal-Atesta). Na outra ponta, toda essa algaravia está aliada à tecnologia. Muita internet. Vamos eletronizar tudo.[1] Mais tecnologia, menos cultura. Mais informação, menos saber. E bem menos sabedoria.

É a vitória do senso comum, que joga os juristas de volta à pré-modernidade. Sim, porque o senso comum teórico que habita na fala da maior parte da comunidade jurídica está assentado em uma espécie de “mito do dado”. “É assim porque é”, diz-se. Mergulhados no senso comum teórico, os juristas simplificadores, nas suas mais variadas facetas — em que não está excluída a pós-graduação, porque, há, por aí, teses de mestrado e doutorado em Pindorama tratando de temas pequeno-monográficos, como embargos infringentes, embargos declaratórios, cheque sem fundos, limitação de fim de semana na LEP, o papel do oficial de justiça etc. — não alcançaram a modernidade, isto é, não agem como o sujeito moderno que olha para fora e se pergunta: “Céus, por que isso é assim?” “ Eu penso; logo, existo”. Já seria um bom começo se nossos juristas fossem cartesianistas e apelassem para a dúvida. Como diz Bento Prado Jr., em Por que Rir da Filosofia?, “a consulta que fazemos ao senso comum nada nos informa, portanto, a respeito do mundo, deixa ‘as coisas como estão’ e, a nós, no grau zero da filosofia”. Bingo. Sabia muito esse Bento Prado, não?

Warat dizia que senso comum é o lugar dos segredos. E eu acrescento: é o lugar dos segredos falsos. Dos simulacros epistêmicos. Da coagulação dos sentidos. De cada dez professores de Direito, seguramente sete nunca leram a Teoria Pura do Direito (atenção: para aqueles que reclamarem, já de pronto dou de barbada: fique tranquilo, você está nos 30% que leram!). E muitos dos que leram não entenderam, certo? (de novo, para aqueles que reclamarem, fiquem tranquilos: vocês não estão nesse percentual que não entendeu). Se não é assim, por qual razão essa algaravia em torno do autor? Por que a maldição em torno do 8º Capítulo da TPD? Na coluna passada (clique aqui para ler) mostrei como Kelsen é ensinado para o Exame de Ordem. Espantoso. Mas não fica por aí. Há livros ensinando que o AI-5 é a Norma Fundamental (a Grundnorm) da Constituição do Brasil. E há decisões de altos tribunais dizendo que Kelsen falava de interpretação pura da lei. Sim, gente importante diz e disse coisa desse gênero.

Mas isso não é o pior: minhas pesquisas empíricas — embora o universo não seja cientificamente suficiente para um cálculo correto — mostram que parcela considerável de docentes nunca leu, de cabo a rabo, outros autores de renome (ou seja, nem Kelsen nem Dworkin ou os clássicos da própria dogmática jurídica). Assim, de cada dez professores de Direito, arrisco a dizer que 70% sucumbem à literatura descomplicada/facilitada (entendida lato senso). Ou, no mínimo, fecham os olhos quando os alunos levam para as salas de aula essa literatura de perfil “pequeno-gnosiológico”. E o que dizer da literatura jurídica que está descansando sobre as bancadas dos tribunais? Não esqueçamos que, na lista bibliográfica constante na Resolução do CNJ sobre o uso de disciplinas humanistas nos concursos (as demais não seriam humanistas?), consta como inovação, além de Kelsen, Recaséns Siches. Sim, como constou na questão aquela do concurso da Justiça do Trabalho (clique aqui aqui para ler), Siches é tido como uma espécie de antídoto de Kelsen. Portanto, dois erros: Kelsen não é o que pensam dele e seu antípoda não pensa aquilo que se diz que ele pensa. Um é positivista normativista e o outro é um positivista axiologista, que acredita(va) em valores objetivos (espécie de objetivismo moral difícil de ser explicado, hoje, à luz dos avanços paradigmáticos do campo da Filosofia no Direito. Vejam: disse “Filosofia no Direito” e não “do Direito”; a primeira, que busco fazer, de caráter estruturante; e segunda, apenas uma capa de sentido, que busca colocar “verniz” no discurso jurídico). Mais uma vez se pode constatar a máxima de que o Direito é um fenômeno complexo, difícil de “pegar”. Fosse fácil, seria “piriguete” (pedindo desculpas por me repetir, mas, no contexto, não achei outra passagem que mais bem ilustrasse a situação posta).

Aplique-se aí um fator geométrico: se é assim, de cada dez estudantes de Direito, no mínimo sete saem da faculdade totalmente descomplicados. Mas onde está o fator geométrico? É que essa descomplicação, quando aplicada na "sociedade de juristas" vai dobrando, triplicando e assim, geometricamente, criando uma imensa sociedade descomplicada de juristas. Pronto: vivemos a sociedade dos juristas descomplicados ou a sociedade descomplicada de juristas. Escolhamos o título. Cartas (ainda gosto delas) para a coluna.

A arte de ser um aluno ruim
Aliás, aqui cabe muito bem a certificação daquilo que estou dizendo. Nada melhor do que fontes externas. Com efeito, permito-me trazer à lume o texto intitulado A arte de ser um aluno ruim[2] , em que o autor, especializado em Exames de Ordem, define o perfil do estudante de sucesso para os concursos para a OAB, qual seja, o ruim. Em suas palavras sentencia: “Costumo sempre falar em minhas aulas que o aluno de Direito que possui maior facilidade em passar em provas da OAB é aquele que na época da graduação era fraco, ruim ou péssimo. (…) E antes que comecem a me atirar pedras, me permita dizer que se trata de uma constatação sociológica. Faça um exercício mental. Lembre-se dos piores alunos da sua turma. Aqueles que você tinha certeza que sequer iriam terminar o curso. Agora se lembre dos melhores, os queridinhos dos professores. Qual dos dois passou mais rápido na OAB? Qual dos dois passou mais rápido em concurso? Qual dos dois está progredindo mais rápido na profissão?”

Mas a melhor parte do artigo está aqui: “O bom aluno sabe demais e por isso ele briga com a prova. OAB não é lugar para você defender o que acha mais certo ou errado, mais lógico ou ilógico, mas sim para responder exatamente o que a banca quer que seja respondido. Fugir disso é pedir para não passar. Caso a FGV queira que seja você indique como a resposta de 2+2 o resultado 05, é isso que você vai ter que responder”. (sic) — grifei.

Observo que, não obstante o autor declarar que usa o adjetivo ruim de forma caricatural no intuito de dizer que o estudo para a OAB deve ter um direcionamento específico, esta expressão denota, de fato, o resultante desta relação ensino-concursos: estudantes sem reflexão crítica, preocupados em decorar conceitos, códigos, leis, artigos, jurisprudências e dispor-se ao alvedrio da empresa organizadora do certame. And I rest my case. Não sou eu quem está dizendo. Portanto, não é implicância minha. Tirem-me esse peso das costas.

Sigo, nestes jardins de los senderos que se bifurcan (parafraseando Borges e Warat). Meu Amigo e fiel leitor, professor Ivan Guérios Curi, a propósito da coluna da semana passada, diz-me que o texto o fez lembrar de Juan Ramon Capella. Em suas palavras: “Recordei, ao ler já pela terceira ou quarta vez, Poulantzas, Castoriadis, o velho Carlos Marques (gostei do aportuguesamento do nome que você fez na coluna). Bem, fiquei aqui a pensar: a sociedade sem juristas seria pior que a sociedade descomplicada de juristas?” Sim, meu caro Ivan: qual seria a diferença, no plano simbólico?

E segue o e-mail de Guérios Curi: “Meu querido Lenio: deu-se conta que tocou num ponto muitíssimo sério? A sociedade organizada (descomplicada, mas institucionalizada, e quando digo isso, refiro-me também aos tribunais etc.) de juristas é iatrogênica! Com certeza que sim, mas gostava (ao modo lusitano) de ver uma próxima coluna com o seguinte título: "Sociedade sem juristas: a nêmesis do Direito".

Isto porque — e segue Guérios Curi — o tipo de subcultura institucionalizada (foi o que você apontou na coluna) não só (re)produz uma cultura metafórica, como produz todos os males que o direito vai depois curar. Aí está a iatrogênese, porque os males sociais acabam por ser criação dos próprios juristas. Resumindo: cria-se a doença, mas o remédio já está (antes) sendo produzido pela indústria médico-farmacêutica. Não valeria a pena retomar, ainda que com reservas as teses (nas quais me baseio para argumentar) de Ivan Illich em suas obras Sociedade sem Escolas e ‘A Expropriação da Saúde: Nêmesis da Medicina’?”

O e-mail de Curi faz pensar. Façamos algumas analogias sobre a iatrogênese e a iatrogenia. Países desenvolvidos não possuem (e não cultuam nem escrevem sobre) uma coisa como “embargos declaratórios” ou “agravo de agravo”. E, por que? Porque não tem a doença a “ser curada pelos embargos e agravos de agravos”. Sentenças contraditórias lá são nulas. Írritas. Em Pindorama, inventamos a doença e, logo depois, vendemos — e bem — o remédio. Não cura. Mas vai dar muito pano para manga. E muito livro para vender. E muita pegadinha em concurso público.

Confesso: …eu não estou me sentindo muito bem!
Nestes tempos de fragmentação, institucionalizou-se “o impessoal”, aquilo que Heidegger chamava de Das Man, isto é, “a gente acha que…”. Ou “tipo-a-gente-acha-que-Kelsen-queria-dizer-que-a-lei-deveria-ser-interpretada-de-forma-pura…” ou “tipo-assim-regras-são-no-tudo-ou-nada-e-princípios-são-na-ponderação”…

Essa coisa “tipo-assim-pós-positivismo-neoconstitucionalismo-pós-modernismo” coloniza, dia a dia, mais e mais, o nosso cotidiano. Que fizeram com a palavra que lhes foi dada, perguntaria o poeta Stefan George? Ou Heidegger perguntando: Quando as palavras voltarão a ser palavras?

Conta-se que durante uma exposição um oficial nazista indagou a Picasso: “Foi você quem fez isso?”, ao que ele respondeu: “Não, foram vocês que fizeram. Pois é. Quando falo, aqui, das mazelas do ensino jurídico, nessa simbiose “ensino-doutrina-jurisprudência-concursos”, quero apenas dizer que não fiz nada disso que está aí. Apenas procuro retratar tudo de forma crítica, revolvendo o chão linguístico em que está assentada o senso comum teórico.

O que fazer? Difícil dizer. Bobbio era um pessimista metodológico, segundo dizia. Já eu sou um otimista metodológico. Algo como um otimista “als ob”, ou seja, um otimista “como se” (homenageio o filósofo Hans Vaihinger, da filosofia do als ob, que, por sinal, inspirou Kelsen a mudar o “comando” filosófico de sua Grundnorm, de hipotético-dedutiva, para uma “ficção” necessariamente útil). É “como se” pudéssemos fazer uma teoria do Direito apta à superação do senso comum teórico dos juristas; é “como se” isso pudesse dar certo. É como se pudéssemos construir uma teoria da decisão pela qual… enfim, paro por aqui.

No século passado li uma frase em um belo livro de Jair Ferreira dos Santos — e que aqui adapto (ou faço uma pequena corruptela) — , que falava da pós-modernidade e fazia uma caricatura destes novos tempos, que nunca esqueci e que passo para os meus parceiros-leitores:

“Deus está morto, Tim Maia está morto, tem um monte de filme sobre zumbis por aí, Big Brother é comparado a Guimarães Rosa, Naldo e Michel Teló são neo-gênios, a Grundnorm kelseniana foi pausteurizada, estão vendendo aos milhares resumos de livros simplificados, dizem por aí que isso é só o começo… e, querem saber? — eu não estou me sentindo muito bem!”


[1] Chegará o dia — e isso está quase acontecendo (permitam-se à licença vernacular do “quase-acontecendo) — em que o advogado pedirá por código e a decisão sairá por código. Voltaremos à lógica proposicional. Ao invés de dizer que João subtraiu uma bicicleta, colocaremos “p”. Assim, decidiremos com base em uma “tabela de verdade”, como no neopositivismo lógico (ou empirismo contemporâneo). Lidaremos com “p” e “q”. Se “p” é V(erdadeiro) e “q” é V(erdadeiro) e a proposição é conjuntiva, o resultado será sempre V. Já se for disjuntiva, o resultado será sempre F(also). Será o nirvana.
[2] Disponível em: http://blog.portalexamedeordem.com.br/blog/2013/04/a-arte-de-ser-um-aluno-ruim/ Acesso em: 10/4/2013.

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