Ordenamento harmônico

Judiciário tem o dever de corrigir desvio do Legislativo

Autor

  • Irapuã Santana do Nascimento da Silva

    é ex-assessor de ministro no STF e no TSE procurador do município de Mauá (SP) professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) doutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC) além de consultor da Educafro e da Rádio Justiça.

25 de abril de 2013, 7h39

Existem leis em nosso ordenamento jurídico que, se aplicadas a um determinado caso concreto, irão gerar uma grande injustiça, embora em tese sejam consideradas constitucionais.

A partir deste momento, podemos separar a análise a seguir em dois critérios: (i) o motivo da criação de determinada norma e (ii) o modo como foi feito este processo.

Objeto de difícil análise e comprovação se mostra a primeira fase da análise: o motivo pelo qual levou o legislador a editar determinada norma. Caso este motivo infrinja garantia de direitos fundamentais, é pacífico que esta norma será considerada inconstitucional. Porém, se não houver ofensa a direito fundamental, mas um desvio de finalidade do seu órgão propositor? A atuação ilegítima também seria passível de controle?

O processo legislativo ocorre com a votação, onde a maioria irá decidir o destino da sociedade. Esta maioria vencedora que atuar com o desvio de finalidade poderá agir sem controle?

Estas questões entram em debate no exemplo recente da nova distribuição dos royalties. Claramente há o interesse econômico em jogo, deixando em segundo plano a própria definição do instituto. A Constituição garante aos estados produtores uma compensação financeira pela exploração do petróleo e do gás natural em seu respectivo território. Isto porque há o risco nesta atividade, então o lugar deve ter uma infraestrutura para manutenção da exploração, bem como meios de reparar eventuais danos que surgirem.

Deixando de lado a questão da efetiva implementação ou não dos recursos para sua finalidade originária, o fato é que membros do legislativo advindos dos estados não produtores atuaram como corretores de valores dos seus respectivos estados, o que foge à sua atuação, que representa um caráter nacional e não interesse meramente local de enriquecimento do ente federado.

Então temos o outro aspecto da maioria. No caso específico, a maioria é de estados não produtores, o que leva a uma vitória no momento da votação e sobrepujando a minoria. A Constituição é o instrumento de garantia na democracia de que a maioria deverá respeitar os direitos da minoria. Como fica resolvido este problema? Não se pode alegar que o direito da minoria fora observado, visto que se prevê uma redução e não seu completo esvaziamento, porque tal diminuição acarreta no prejuízo de várias atividades, causando graves consequências de ordem estrutural e contratual, por exemplo.

Se o motivo é ilegítimo, poderia o Judiciário se imiscuir neste âmbito sem ferir a separação de poderes? Ouso opinar no sentido afirmativo, pois Ferrajoli ensina que a jurisdição é a garantia de um direito, que se ele não puder ser exigido, ele não existe efetivamente. No caso, embora a Administração Pública tenha auto-executoriedade, somente poderá exerçê-la nos limites legais estabelecidos e, para a definição do alcance e do sentido encontramos o Judiciário. Além do mais, cabe ao Poder Judiciário a salvaguarda de um ordenamento jurídico harmônico, com seus princípios e regras respeitando a Constituição.

Portanto, os casos análogos a este que, em uma primeira análise, não contêm vício algum, há, em verdade, após um estudo mais minucioso, a inconstitucionalidade pelo desvio de função do órgão legiferante.

A forma com a qual o Judiciário irá tutelar será vista mais adiante. Porém, há outro caso para se observar antes de chegar a este ponto: lei constitucional aplicada ao caso concreto gerando injustiça a determinado indivíduo, tendo em mente que o caráter genérico da lei irá comportar certos problemas a determinadas pessoas e que o Judiciário deve ficar atento a estas hipóteses.

Passada a fase do controle abstrato e chegando à sua aplicabilidade, é preciso observar alguns aspectos. O primeiro deles é quanto à legitimidade do julgador para definir justiça ou injustiça de determinado mandamento legal ao caso concreto: há certa esquizofrenia quando o Estado determina que uma lei deva ser respeitada e aplicada por todos e, num segundo momento, o próprio Estado se pronuncia no sentido que determinado caso não está coberto pelo mandamento que continua válido e vigente.

Entretanto, um aspecto relevante deste pensamento é que, mesmo sendo um órgão estatal, presentando o Estado (não é representando, mas sim personificando o Estado), o juiz é um ser humano e, como tal, detém suas próprias ideologias e opiniões pessoais, que necessariamente irão influenciar no momento de julgar.

A dicotomia entre juiz-Estado e juiz-ser humano ganha interessante viés com o passar dos anos e a crescente comunicação dos sistemas da civil law e common law, surgindo o tensionamento constante entre legalidade estrita e fundamentos principiológicos para a resolução do caso. Embora sempre regido pela lei, a justiça do caso concreto ganha força, mas sempre devendo equilibrar com a estabilidade de um ordenamento no qual as partes não se surpreendam com alguma decisão “tirada da cartola”. Por conseguinte, qual o limite estabelecido para o julgador atuar no controle de uma lei injusta?

Para tentar traçar linhas gerais de como seria feita esta limitação, é preciso entender que o magistrado deve ser imparcial, portanto, o resultado de seu livre convencimento não lhe trará vantagem alguma. Outra questão importante é a imprescindibilidade de motivação de sua decisão e sua consequente publicidade.

Embora a regra geral seja da vinculação dos efeitos do caso concreto ao dispositivo da sentença, a fundamentação serve para controle externo da atuação jurisdicional. Observando esta grande importância, o projeto do novo Código de Processo Civil determina a exposição com especificação analítica dos motivos que levaram o julgador a tomar determinada decisão. Mesmo sendo taxado por alguns doutrinadores mais clássicos de mero poder-saber, são inegáveis os efeitos políticos, econômicos e sociais das decisões judiciais; e o fato de não haver eleição para ocupação do cargo deve ser equilibrado com a ampla ciência dos seus atos, concretizando sua legitimação.

Outra observação de limitação e controle dos atos do Judiciário, na concepção de Picardi, reside na ideia que o juiz está submetido a uma série de etapas vinculadas de análise de valores hermenêuticos até chegar ao momento em que deverá escolher uma entre duas ou mais situações possíveis de solução da lide. Ou seja, conclui-se que a escolha entre aplicação de uma lei injusta para o caso concreto e um princípio é a etapa final a que o magistrado atinge, tendo que sopesar entre a estrita aplicação da lei ou a inserção de um princípio para retirar a subsunção do caso.

O juiz, neste sentido, deixa de ser a “boca da lei”, sabendo de seu compromisso com a justa composição da lide e da efetividade dos princípios constitucionais. Ele deve velar pela harmonia de todo o ordenamento, levando em consideração que sua atuação deve ser imparcial e que sua decisão deve ser analiticamente motivada, nunca esquecendo a razoabilidade e proporcionalidade como parâmetros.

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