Direito Comparado

Rejeição de reformas e revisão de contrato built to suit

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

24 de abril de 2013, 21h22

Na última coluna, iniciou-se o exame de uma modalidade de locação não residencial, a built to suit, que foi introduzida pela Lei 12.744, de 19 de dezembro de 2012, que alterou a Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Após ter-se destacado a conexão histórica entre os regimes “locatícios” (locação de prédios e locação de mão de obra, atual prestação de serviços) e a crise do Direito Civil no século XX, salientou-se a grande dificuldade de assimilação do novo tipo contratual à Lei do Inquilinato.

A locação predial urbana possui três espécies: residencial, por temporada e não residencial. Essa última, como salienta a doutrina especializada, congloba as antigas locações não residenciais propriamente ditas, as comerciais e as industriais. Sua nota essencial é, portanto, a destinação à atividades do locatário que se não enquadrem no fim residencial e que ostentem ou não finalidades econômicas.

A nova legislação acrescentou o artigo 54-A à Lei 8.245/1991, que pode ser assim resenhado: a) o built to suit é uma modalidade de locação predial urbana não residencial, caracterizada pela conduta do locador consistente na prévia aquisição, construção ou substancial reforma, por si ou por terceiros, de imóvel especificado pelo chamado “pretendente à locação”; b) o locador ocupará o imóvel por meio de contrato por prazo determinado, no qual “prevalecerão as condições livremente pactuadas no contrato respectivo e as disposições procedimentais previstas” na Lei do Inquilinato. Quanto à revisão do valor dos alugueres, a lei permite que se convencione a renúncia prévia a esse direito (parágrafo 1o do artigo 54-A). Se o locatário exercer o direito de resilição unilateral do contrato (denúncia antecipada), ele pagará a multa convencionada, cujo limite é a soma dos valores dos alugueres a receber até o termo final da locação (§ 2o do art. 54-A).

O artigo 4o, caput, da Lei do Inquilinato teve sua redação alterada, a fim de se ajustar a esse novo dispositivo: “Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o parágrafo 2o do artigo 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada.”

Esses novos dispositivos são extremamente sintéticos e que deixam em aberto muitos problemas que poderiam ter sido evitados com um tratamento legislativo mais adequado. Observe-se que o intuito dessa norma foi tipificar um contrato cujo desenvolvimento ocorreu no Brasil graças à autonomia privada. A intervenção do legislador deveria oferecer um resultado melhor do que o já consolidado pelas práticas negociais.

Em termos comparativos, é possível fazer um inventário de algumas decisões da jurisprudência norte-americana sobre o contrato build to suit (como preferem denominá-lo nos Estados Unidos, ao invés da expressão mais usual no Brasil, built to suit). A utilidade desse exame está em perceber, por contraste, as deficiências da legislação ora adotada no Direito nacional.

1. Rejeição das obras de adaptação ou da reforma do imóvel
O artigo 54-A da Lei no 8.245/1991 descreve como um dos elementos do suporte fático do contrato a “construção ou substancial reforma” do imóvel, o que se revela como uma ação prévia do futuro locador. Diferentemente de um contrato locatício tradicional, seu aperfeiçoamento depende do exame do prédio e da constatação de que ele é adequado ao fim almejado pelo locatário. No built to suit, há um aspecto que perturba a placidez desse esquema: a adaptação do imóvel aos propósitos de quem o ocupará é essencial e depende de uma série de investimentos, nada vulgares, cuja amortização só ocorrerá com o pagamento dos alugueres. Na doutrina anterior à Lei 12.744/2012, esse era um ponto muito bem salientado: “Constrói-se para alugar e aluga-se porque foi construído. O pagamento serve a remunerar ambas as prestações. Precisamente por isso, seu valor é muito superior ao de um simples aluguel. (…) A construção não é uma prestação de secundária importância. Muito ao contrário, sua devida execução é imprescindível para que seja atingido o objetivo perseguido pelas partes.”[1]

Isso parece bem. Mas, o que ocorrerá se o futuro locatário não considerar adequada a reforma ou a construção? Segundo a jurisprudência norte-americana essa é a maneira mais fácil de se “kill the deal”. O caso clássico sobre essa questão foi julgado em 1997 pela Suprema Corte do Texas:[2] Palisades Plaza, Inc., em 1992, celebrou um contrato de built to suit, por prazo de cinco anos, com Austin Hill Country Realty, Inc. Concluídas as obras, Palisades notificou Austin Hill, dando-lhe ciência de que não receberia a construção no estado em que se encontrava, por se haver desviado das especificações contratuais, e, em razão disso, resolvia o contrato. No julgamento, a corte texana entendeu que o locatário deveria ter cooperado e evitado que o locador (e responsável pela reforma) incorresse em gastos superiores aos necessários, devendo este último receber uma indenização. Utilizou-se a doutrina duty to mitigate the loss para fundamentar esse julgado, embora não pareça ser possível simplesmente transpô-la para a realidade brasileira. Até porque o Código Civil brasileiro dispõe de regra expressa a respeito, em seu artigo 615: “Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume do lugar, o dono é obrigado a recebê-la. Poderá, porém, rejeitá-la, se o empreiteiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza”. O inconveniente é a compatibilização desse dispositivo, que é de um regime jurídico diverso (contrato de empreitada), com a especialidade da Lei do Inquilinato, embora já existam posicionamentos doutrinários respeitáveis no sentido de que se “podem incluir pactos peculiares à modalidade de locação por encomenda, notadamente quanto aos parâmetros para a conclusão das obras, início da relação locatícia e aluguéis, além de penalidades em razão do desrespeito a esses prazos, entre outras avenças peculiares”.[3]

2. Renovação de locação e valor razoável do aluguel
Em outro julgado, a Suprema Corte do Texas decidiu que o locatário teria o direito de renovação do contrato de locação, a despeito da contrariedade do locador, por efeito da razoabilidade e da boa-fé.[4] No caso brasileiro, há duas importantes questões ligadas à renovação e ao valor dos alugueres. Pela sistemática da nova lei (parágrafo 1o do artigo 54-A), as partes são autorizadas a renunciar previamente ao direito de pretender a revisão do contrato. Antes da lei de 2012, havia forte polêmica na dogmática especializada sobre a validade de cláusulas dessa natureza. Luiz Augusto Haddad Figueiredo, ao escrever sobre o contrato built to suit, admitia a formulação dessas restrições, no entanto, aceitava a hipótese de revisão com base nos artigos 478-480 do Código Civil.[5] Cristiano de Sousa Zanetti, em capítulo específico sobre o tema, realçava a viabilidade da cláusula de renúncia, mas ressalvava que não se poderia “descartar, porém, a possibilidade de a tese restar vencida, hipótese em que será de máxima relevância examinar se o direito de revisão previsto na Lei 8.245/1991 pode ser manejado pelo ocupante”.[6] Na jurisprudência era idêntica a controvérsia, com leve prevalência da tese da validade dessas cláusulas, a despeito do artigo 45 da Lei do Inquilinato.[7][8] Em acórdão sobre o contrato built to suit, anterior ao novo artigo 54-A, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sustentou a licitude da cláusula de renúncia antecipada às pretensões revisionais, sob o color de que essa espécie contratual era paritética e os contraentes não se poderiam prevalecer do modelo de proteção da Lei do Inquilinato.[9]

Luiz Antonio Scavone Junior, um dos primeiros a escrever sobre a Lei 12.744/2012, defende que a restrição antecipada ao exercício do direito de pretender a revisão do contrato de “locação por encomenda”, como ele denomina a figura jurídica introduzida pelo novo artigo 54-A, é uma exceção ao princípio de ordem pública contido no artigo 45 da Lei do Inquilinato: “E a regra vem com razão, tendo em vista que o investimento do locador não pode ficar à mercê de revisão pela redução eventual do valor da locação, tendo em vista que o aluguel remunerará investimento feito exclusivamente para atender às necessidades do locatário”.[10]

Ao viso desta coluna, o pacto de renúncia deve ser interpretado como derrogatório da revisão fundada nos dispositivos da Lei do Inquilinato. Mas, não haveria impedimento de se deduzir uma pretensão revisional com base nos artigos 478-480 do Código Civil, desde que comprovada a ocorrência de alteração das circunstâncias, timbrada pelo binômio imprevisão-onerosidade excessiva, como já se defendeu alhures.[11]


[1] ZANETTI, Cristiano de Sousa. Build to suit: qualificação e conseqüências. BAPTISTA, Luiz Olavo; PRADO, Maurício Almeida (Orgs.) Construção civil e direito. São Paulo: Lex : Magister, 2011. p. 110-114.
[2] Austin Hill Country Realty, Inc. v. Palisades Plaza, Inc., 948 S.W.2d 293 (Tex. 1997).
[3] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. A Lei nº 12.744/2012 e o contrato Built-to-Suit : “locação por ecomenda”. Revista Síntese direito imobiliário, v. 3, n. 13, p. 75-85, jan./fev. 2013. P. 84.
[4] Aycock v. Vantage Management Company, 554 S.W.2d 235 (Tex. Civ. App. — Dallas 1977).
[5] FIGUEIREDO, Luiz Gustavo Haddad. Built to suit. Revista de Direito Imobiliário (São Paulo), v. 35, n. 72, p. 161-188, jan./jun. 2012.
[6] ZANETTI, Cristiano de Sousa. Op. cit. p. 108.
[7] “Art. 45. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto.”
[8] Pela invalidade da cláusula: “LOCAÇÃO – Revisional de aluguel – Termo aditivo ao contrato, em que o locador renuncia ao direito na vigência do ajuste – Ineficácia – Voto vencido” (TARJ – Ap 4869/94 – 8.ª Câmara – j. 17-8-1994. Rel. Jayro dos Santos Ferreira. JRP19951865). No sentido de sua validade: “Havendo, no contrato de locação, cláusula expressa de renúncia ao direito de revisão, fica impedida a alteração, no prazo original, do valor fixado para o aluguel” (STJ. AgRg no REsp 692.703/SP, Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador Convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 18/05/2010, DJe 07/06/2010). Sugere-se consultar o rico inventário de decisões sobre essa questão, levado a efeito por Waldir de Arruda Miranda Carneiro (Anotações à Lei do Inquilinato: Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. São Paulo: RT, 2000. p. 292).
[9] TJSP. Ap c/ Rev 9156991-70.2008.8.26.0000, 25.ª Câm. de Direito Privado, j. 04.05.2011, rel. Des. Antonio Benedito Ribeiro Pinto.
[10] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Op. cit. p. 79.
[11] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. item. 6.2.2.3.3.
 

Autores

  • é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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