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Pior do que está pode ficar: mestres sem mestrado

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

23 de abril de 2013, 8h01

Spacca
Tiririca errou! Pior do que está pode ficar. Escrevo sobre a Lei 12.772/2012 que proíbe as universidades federais exigir títulos de mestre ou doutor nos concursos para ingresso na carreira docente. Você não leu errado — a norma proíbe que sejam exigidos estes títulos para contratação de professores nas universidades federais. Ou seja, caro leitor, pior do que está certamente pode ficar.

Que tal ingressar como aluno em uma universidade federal e se deparar com um recém-formado como docente? Nenhum artigo publicado, nenhuma palestra ministrada, nada de produção acadêmica — talvez os trabalhos feitos ao longo do curso de graduação. Fazer concurso público tendo por patamar inicial obrigatório da carreira apenas o diploma de graduação é algo impensável nos dias que correm.

Conheço profissionais de muita qualidade que ingressaram em universidades federais sem nenhuma titulação e já como docentes iniciaram seus estudos pós-graduados — mas isso faz pelo menos três décadas e era uma exceção. O Brasil avançou enormemente de lá para cá. O sistema de pós-graduação cresceu, formamos novos doutores de muito boa qualidade. Claro que mesmo aí existem melhores e piores, porém em uma análise comparativa temporal, estamos hoje bastante melhor do que a trinta anos atrás. Basta olhar setores como medicina, odontologia, engenharia ou mesmo Direito. Um dos pilares da estabilidade democrática são os estudos avançados em matéria de democracia, transparência, acesso à informação, republicanismo e outros. Poderia tratar de outras áreas jurídicas que mudaram enormemente, como o Direito de Família, em que a discussão passou dos filhos adulterinos para as uniões homoafetivas.

O sistema de pós-graduação é o berço de novos docentes — no qual se formam aqueles que atuarão neste dificílimo processo de transmitir o saber existente e obter novos saberes. É o locus da formação dos novos formadores. O que restará da pós-graduação se a exigência para ingresso na carreira docente se mantiver apenas com o diploma de graduação?

Por outro lado, há certo ar de demagogia nesta nova regra. Em um concurso lícito, no qual a banca é composta por professores doutores, quem terá mais chance de ingresso? Um graduado ou um doutor, com produção acadêmica e vasto currículo? É claro que existem concursos lícitos, ilícitos, e outros em que existe uma suspeita permanente de ilicitude. Dias atrás soube de um concurso em uma universidade federal em São Paulo em que os candidatos não tiveram acesso à prova escrita — sequer foi feita sua leitura pública e a banca, contrastada com esse fato, achou que tudo estava perfeitamente correto e conforme a lei! Não sei se houve ilicitude, mas há um verdadeiro carimbo de irregularidade neste tipo de procedimento. Claro que as bancas naufragarão de tanto trabalho nos concursos, pois a disputa desqualificada será ampliada com mais provas didáticas, leitura pública de provas etc. — espero que as ilicitudes não sejam ampliadas.

O que faz uma universidade melhor do que outra? Certamente seu corpo docente — melhores professores, melhor qualidade de ensino. Claro que instalações, suporte acadêmico, biblioteca, laboratórios e projeto são relevantes, mas sem docentes qualificados e empenhados nas clássicas atividades de ensino e pesquisa, não há como formar uma instituição de ensino de qualidade. Pode-se ter até “butiques acadêmicas, como tantas que existem, onde se encontram cabeleireiro, manicure, massagista, lojas de roupas e por aí vai — verdadeiros shopping centers. Instalações bonitas, mas corpo docente com baixa titulação, pouca produção e, ainda por cima, remunerado por hora trabalhada. Com alguma sorte pode-se até ter instrução nestas instituições, jamais educação.

Existem várias funções na atividade de ensino, qualquer que seja seu nível, dentre elas a de possibilitar o acesso das pessoas a níveis elevados de conhecimento, o que lhes permitirá alcançar benefícios civilizatórios, tais como menor índice de mortalidade infantil, maior longevidade, melhores salários e melhor alimentação — além do adequado treinamento para o exercício de uma atividade remunerada, de nível técnico ou superior. É assim que se conquista cidadania e se constrói uma República, na qual todos possam ter direito a usufruir dos bens e serviços públicos. É em razão deste fato que dois princípios devem ser conjugados na questão do ensino superior no Brasil: a expansão do sistema e o incremento de sua qualidade.

É necessário expandir para poder conceder a todos o acesso aos benefícios acima referidos. Contudo, fazer isso sem qualidade será efetuar uma fraude. Em vez de conceder a cada um a possibilidade de acesso aos benefícios civilizatórios, haverá somente a concessão de um título oco, um canudo sem conteúdo. O resultado será a frustração da expectativa individual do estudante, que não conseguirá a melhor posição social que almeja, bem como de toda a sociedade, que investiu suas esperanças em ultrapassar as barreiras do subdesenvolvimento através da melhor qualificação de seu povo.

Aqui entra a questão do gasto público e do problema intergeracional — questões próprias do Direito Financeiro. Quanto de dinheiro público será gasto nesta iniciativa canhestra de concursos públicos para docentes apenas com graduação? Além disso, é preciso considerar as perversas repercussões intergeracionais, pois este tipo de problema gerado nessa fase evolutiva acarretará deletérias consequências ao longo dos anos. Nos concursos abertos hoje, caso as vagas sejam preenchidas sob este critério, os docentes graduados ingressarão e precisarão ser qualificados, exigindo mais gastos públicos. Enquanto isso, reproduzirão conhecimentos manualescos para seus alunos. Estes, por sua vez, poderão ser os docentes graduados dos futuros universitários, gerando um círculo vicioso que havíamos deixado no passado.

Parece-me claro que este tipo de questão deve ser pautado por cada universidade, dentro de sua própria autonomia acadêmica. Em algumas áreas, tais como gastronomia ou cinema, exigir mestrado já é uma sandice. Outro aspecto a ser considerado é o geográfico. Se conseguir um mestre em Direito ou em Psicologia já é uma dificuldade em alguns estados, imagine encontrar vários doutores para fazer uma disputa. Ou seja, a autonomia acadêmica universitária deve prevalecer neste assunto, dosando os cursos e os locais onde este tipo de exigência deve ser feita. A imposição centralista e uniformista é o grande problema desta decisão tosca e tecnocrática.

Daí me ocorre uma dúvida. O que anda sendo feito nos gabinetes em Brasília, onde esse tipo de norma é produzida? Trata-se de norma (artigo 8º) que já consta desde o Projeto de Lei 4368/12, encaminhado pelo Poder Executivo (clique aqui para ler) e do qual se originou a Lei 12.772/2012. Este anteprojeto de lei foi elaborado nos escaninhos do MEC, enviado ao Congresso, debatido por deputados e senadores e ninguém viu um absurdo desse tamanho? Uma frase atribuída a Otto von Bismarck, ministro responsável pela unificação alemã no século XIX, é pertinente ao caso: “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”.

Enfim, o deputado paulista Tiririca errou. Seu bordão durante a campanha eleitoral era: “pior do que está não fica”. Pode ficar, deputado. Com esse Congresso, criando leis como essa, pior do que está dá para ficar. Infelizmente.

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