Diário de Classe

Hermenêutica vive paradoxo nos cursos de Direito

Autor

20 de abril de 2013, 8h02

Spacca
Refletir sobre o curso de Direito, sobre a sua estrutura curricular e os problemas que surgem a partir do exercício cotidiano de seu ensino, é uma fonte inesgotável de inquietações e perplexidades. Uma inquietação, muito particular de nosso tempo, diz respeito à massificação do curso, que ultrapassa o número de 1,2 mil faculdades. Algo que se apresenta, definitivamente, como uma “jabuticaba brasileira”. Por outro lado, uma perplexidade que pode ser anotada é que, mesmo diante dessa maciça proliferação, é possível perceber, nos últimos dez anos, um certo incremento curricular com relação às disciplinas que constituem o eixo fundamental da formação do jurista. Quero dizer: muito embora a indiscutível massificação, os currículos de várias faculdades de Direito demonstram uma preocupação na incorporação de disciplinas que são, por assim dizer, mais fortemente formativas do que apenas informativas.

Tive a oportunidade de conhecer — às vezes apenas de passagem; noutras participando efetivamente do quadro docente — a estrutura curricular de várias faculdades de Direito que se situam longe dos grandes centros de pesquisa. Cursos do interior de diversos Estados, tais quais, São Paulo, Santa Catariana, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Um fator curioso — que percebi quase como regra — diz respeito ao fato de, em praticamente todas as amostras, existir uma disciplina específica para tratar da Hermenêutica Jurídica.

Por que isso se apresenta aos meus olhos como uma transformação? Respondo: porque, tradicionalmente, a hermenêutica é tratada como uma disciplina acessória da dogmática jurídica, não como principal. Na verdade, em termos clássicos, a hermenêutica jurídica é enquadrada como uma disciplina auxiliar, que contribui com o intérprete na tarefa de compreender e interpretar corretamente os textos jurídicos. Durante muito tempo, a hermenêutica foi tratada como um apêndice das disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito ou de Filosofia do Direito. No contexto atual, a regra é encontrar currículos universitários que oferecem autonomia para o estudo dos temas da hermenêutica jurídica.

Evidentemente, tenho isso como algo positivo. Não apenas pelo fato de ser um entusiasta do estudo da hermenêutica jurídica, mas, também, porque é inegável que vários dos problemas contemporâneos que surgem no horizonte das questões jurídicas passam pelo enfrentamento de temas que são tratados pela hermenêutica. De fato, a hermenêutica é o elemento essencial da experiência jurídica. Há uma infinidade de fatores “empíricos” que autorizam essa afirmação. Tomemos como exemplo as discussões que, a cada sessão plenária, invadem a pauta do Supremo Tribunal Federal. Há sempre ali, tensionando todo o debate, a pergunta subjacente sobre a determinação do papel de um juiz constitucional: qual a sua tarefa? Fazer uma simples exegese de textos escritos; ou, ao contrário, efetuar um tipo de interpretação que incorpore discussões político-morais que são constitutivas de nossa comunidade política? Decisões recentes, tomadas na ADPF 54 ou na ADI 3.510, apontam para uma resposta alinhada à segunda possibilidade aqui apresentada. Além disso, a Constituição de 1988 afirma normativamente o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, do pluralismo cultural e valorativo que constitui a nossa comunidade política. Muitos destes “valores” incorporam principiologicamente o direito constitucional brasileiro. Como interpretar essa pluralidade em decisões concretas que devem levar a uma decisão única para o caso que se decide?

Todas essas questões indicam a centralidade que o problema hermenêutico assume na contemporaneidade.

Mas, se isso é assim e se os currículos universitários estão a jogar luz sobre a hermenêutica jurídica, qual o motivo de meu estranhamento? Por que continuo a manifestar alguma perplexidade? Respondo: porque, não obstante o destaque, alguma coisa funciona mal na operação da disciplina. Ainda não somos satisfatoriamente eficientes no trato das questões que hoje fazem parte dos debates sobre a hermenêutica jurídica. Já tive oportunidade de ouvir relatos de acadêmicos que se encontravam no final do curso — e que portanto já se apresentavam como bacharéis em hermenêutica jurídica, devidamente aprovados na referida disciplina — que diziam não conseguir perceber de que modo o enfrentamento dos problemas hermenêuticos contribuiriam para a solução das questões jurídicas. Em alguns casos, a própria tarefa da hermenêutica não aparecia de forma clara para eles.

Por que isso ocorre? Basicamente porque a alteração curricular não é o fator determinante para criar um ambiente adequado para o enfrentamento dos problemas da hermenêutica jurídica. Aliás, essa é uma medida discutível — quando adotada como medida isolada, sem outras modificações auxiliares — para solucionar o problema da deficiência do ensino de qualquer disciplina. Por certo que a alteração do currículo é um marco determinante, que oferece distinção e autonomia para o estudo do conteúdo objeto da disciplina. Porém, se desconectado de outros ajustes necessários de serem observados pela política acadêmica, a alteração realizada não produz nenhum resultado.

Por exemplo, na maioria das faculdades que se situam longe dos grandes centros, a situação mais comum de se encontrar é a do “professor improvisado”. O curso de Direito, aliás, é um terreno muito propício para a proliferação da figura do “quebra-galho”, do professor que se coloca disponível para trabalhar diversas disciplinas, nem sempre vinculadas à sua esfera de especialidade e que possui pouca ou nenhuma afinidade com o seu projeto de pesquisa (se é que ele, o professor, tem algum…). Daí que, em boa parte dos casos, o professor de hermenêutica jurídica não é, exatamente, um pesquisador de temas da hermenêutica jurídica.

Evidentemente, isso não pode ser colocado como uma irresponsabilidade do docente. Pelo contrário, penso que o modo como o nosso sistema de ensino está estruturado é que gera esse tipo de professor “faz-tudo” (principalmente no ensino privado, mas o ensino público não está imune a esse mesmo problema). As faculdades privadas, como regra, pagam o professor por hora de aula efetivamente lecionada. Existem alguns benefícios, tais quais, o descanso semanal remunerado e a chamada hora-atividade, mas nenhum deles representa um acréscimo significativo no valor do salário do docente. Assim, a saída para se conquistar um salário melhor, é o professor se habilitar para o maior número de aulas possível. Quanto mais aulas lecionadas, maior o salário. Disso, para uma atividade pan-disciplinar, é um salto curto.

Há casos extremos de professores que lecionam, literalmente, 40 horas/aula por semana (carga horária composta pelo desenvolvimento de várias disciplinas diferentes). Isso significa, por exemplo, 4 horas-aula pela manhã; 4 horas-aula à noite. Todos os dias da semana. Considerando o trabalho que este docente terá para preparar as suas aulas e corrigir as avaliações de todas as turmas das quais ele seja o responsável, é possível perguntar: em que momento esse docente poderá se dedicar à pesquisa? A resposta parece óbvia.

Desse modo, o docente se transforma em um operário do ensino. Operário que funciona em desacordo com aquilo que seria o elemento fundamental da universidade: a pesquisa; a produção etc.

A saída para o docente-operário executar o seu trabalho será conduzir suas aulas a partir de uma ou duas obras de autores consagrados da disciplina que leciona. Ou seja, a saída é se valer do trabalho de pesquisa de outro professor (que pode ser ou não um professor-pesquisador) para preparar as próprias aulas, já que a estrutura universitária, que exerce dominação sobre ele, não permite e nem incentiva o seu próprio trabalho de pesquisa.

Como essa preparação acaba por ser precária, o caminho a ser adotado, geralmente, é aquele que oferece menores espinhos. Assim, adota-se o autor mais simples “para a compreensão do aluno”. Aqui ocorre, também, um processo de transferência de responsabilidade: adota-se um autor mais simples não porque o próprio professor, atolado de trabalho, precisa de uma saída rápida para o seu problema, mas, sim, porque o mais simples é pretensamente assimilado mais facilmente pelo discente.

Desse modo, cria-se um círculo vicioso: o mais simples encara os problemas hermenêuticos de um modo muito torto, que mal dá para dizer que seria simplesmente anacrônico. Quero dizer: se fossem trabalhadas, de forma adequada, as propostas da hermenêutica jurídica novecentista, teríamos atingido, pelo menos, uma parte do objetivo. O problema é que predomina um grande sincretismo no tratamento da matéria. De um modo geral, a hermenêutica é retratada como um problema de método. Prega-se que, para se interpretar corretamente as normas jurídicas, deve-se proceder a uma interpretação que percorra os métodos: gramatical, lógico-sistemático, histórico e teleológico. Citam-se autores sem a devida contextualização (Savigny é, quase sempre, citado de modo equivocado, sem a devida introdução a seu método científico, que é o traço definidor de sua escola histórica). Também não se esclarece como há uma diferença no modo de se tratar do problema da interpretação no âmbito de teorias oriundas do direito privado de outras que se afirmam mais fortemente a partir do direito público. Não se enfrenta de modo adequado a relação entre hermenêutica e argumentação. E por aí vai…

E a hermenêutica é o elemento essencial da experiência jurídica. Mas nada disso aparece. Na verdade, como podemos dizer a partir de Martin Heidegger, a própria constituição existencial dos seres humanos é interpretativa. Nós somos animais autointerpretativos. Para compreender o mundo que nos circunda, primeiro precisamos nos autocompreender — através de uma interpretação existencial — como seres que se autoquestionam, sobre a sua posição no mundo e sobre o próprio mundo. Ronald Dworkin, por sua vez, afirmava que o Direito era uma prática interpretativa. Friedrich Müller define o pós-positivismo como um quadro teórico no interior do qual se tem como objeto do esforço investigativo do direito não apenas o conhecimento dos textos de normas, mas, principalmente, a concretização da norma. Vale dizer, o problema central das teorias pós-positivistas é a interpretação do direito.

Em 1999, Lenio Streck revolucionou o estudo da hermenêutica jurídica no interior do pensamento jurídico brasileiro. Através de densa pesquisa, o autor jogou para dentro do texto de seu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, as principais discussões contemporâneas acerca dos problemas hermenêuticos do Direito. Ele indicava, já no subtítulo da obra, um fato essencial: que a exploração da experiência jurídica é hermenêutica porque, necessariamente, interpretativa. Isso é assim desde os glosadores medievais até os autores pós-positivistas contemporâneos. Essa obra representa um caso exemplar justamente porque o trabalho como professor de hermenêutica foi precedido por um extenuante atividade de pesquisa sobre a temática.

Por certo, e quero frisar isso em letras garrafais, existem no Brasil diversos espaços universitários que possibilitam aos professores estabelecer a sua aproximação da disciplina que leciona a partir de um decantado processo de pesquisa. E há inúmeros professores de Direito que produzem obras de excelência nesses espaços. São tantos que nem seria possível citá-los aqui.

A difícil realidade, porém, é aquela visualizada na periferia do sistema educacional brasileiro. Nas faculdades de Direito que se encontram longe dos grandes centros de pesquisa. Faculdades espalhadas pelos quatro cantos do país e que formam a maioria significativa dos bacharéis em direito e eventuais futuros advogados, promotores, juízes, defensores, procuradores etc. e etc.

A melhora do ensino no Direito passa por um rearranjo que não é apenas curricular, mas estrutural em um sentido mais fundamental: valorização do docente; incentivo verdadeiro à pesquisa; e, ao mesmo tempo, a criação de condições para que as responsabilidades docentes e discentes sejam efetivamente assumidas.

Coloquei aqui, de forma muito genérica, o exemplo que se visualiza em torno da hermenêutica jurídica: um disciplina fundamental para o enfrentamento contemporâneo das questões jurídicas, mas que, paradoxalmente, não produz resultados satisfatórios nos cursos que a incorporam como disciplina autônoma em sua grade curricular, porque os problemas estruturais são mais profundos do que sua simples alocação no currículo do curso.

Mas isso se aplica a muitas outras disciplinas do curso.

E o curioso é perceber que o governo federal, ao invés de contribuir para o equacionamento do problema, aumenta o caldo que conforma o paradoxo acima referido.

Com efeito, uma lei de iniciativa do governo federal entrou em vigor no mês passado retirando a exigência de pós-graduação para os novos professores das universidades federais.[1] Trata-se da lei 12.772/2012 que dispõem, entre outras coisas, sobre a carreira do magistério superior no Brasil. Ressalta-se que a pós-graduação é um caminho que objetiva possibilitar um aperfeiçoamento nas atividades de pesquisa daqueles que exercem a atividade docente. O governo, porém, admite que poderá buscar uma nova regulamentação para a matéria (como se estivesse a admitir – implicitamente – o erro cometido com a nova legislação). De fato, não é difícil imaginar os motivos que levaram à edição da referida disposição normativa. Universidades federais que possuem dificuldades de formar quadros permanentes de professores em face da inexistência, em número suficiente, de docentes titulados. Todavia, a nova regulamentação causa um curto-circuito no sistema: como a lei é geral e abstrata, mesmo as regiões que possuem professores titulados, terão que aplicá-la. Assim, abre-se um perigoso precedente que, de algum modo, poderá repercutir no sistema privado de ensino. Afinal, se o próprio Estado reduz a sua exigência para a formação de seus quadros docentes, porque a iniciativa privada deve continuar a manter as exigências de titulação estipuladas pelo MEC? Vamos aguardar os próximos capítulos para saber como essa questão se desdobrará.

Por hora, é importante termos claro que as melhores faculdades de Direito do mundo são, igualmente, grandes centros de pesquisa. Ensino desvinculado da pesquisa será sempre precário e ineficiente. O caminho para uma melhora de nossa estrutura de ensino jurídico passa por um aperfeiçoamento da pesquisa, e não pela sua flexibilização. Seja no público, seja no privado!


[1] Cf. Folha de S.Paulo. Caderno Cotidiano 1, pág. C1, quinta-feira, 18.04.2013.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!