Embargos Culturais

Os Custos dos Direitos, parte 2

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

14 de abril de 2013, 8h02

Stephen Holmes e Cass Sunstein iniciam a primeira parte do importante livro The Cost of Rigths — Why Liberty Depend on Taxes (Os Custos dos Direitos — Por que a Liberdade Depende dos Tributos)[1] problematizando a divisão entre direitos negativos e direitos a prestações positivas[2]. Essa dicotomia é geralmente aceita no contexto norte-americano. Aqueles primeiros, direitos negativos, imunizariam as pessoas em relação à atuação estatal, especialmente quando abusiva. Estes últimos, direitos a prestações positivas, pelo contrário, exigiriam presença ostensiva do Estado, em favor da pretensão do cidadão.

Holmes e Sunstein argumentam que essa divisão possa ser falaciosa. Todos os direitos exigiriam prestações positivas, porquanto direitos somente são postulados e exercidos mediante provocação de tribunais e de agências públicas custeadas por dinheiro do contribuinte[3]. Todos os direitos, quer redundem em abstenção ou em ação do Estado, exigem, sempre, alocação de recursos[4].

A discussão é ilustrada por Holmes e Sunstein com o complicado problema do aborto, também no contexto do direito norte-americano. Os autores fazem referência ao caso Roe versus Wade [5], julgado pela Suprema Corte norte-americana, em 1973. Na origem, lei do estado do Texas, discutida nos Estados Unidos à luz do direito a privacidade. Os defensores da autorização para o aborto argumentavam que o direito à privacidade é que justificaria a opção da mãe, no sentido de não se levar a gravidez até o fim. A Suprema Corte decidiu, em 1973, com base na tese do direito a privacidade, que mulheres norte-americanas tinham o direito de abortar, com algumas limitações, que a decisão bem explicitava.

Por outro lado, no caso Maher versus Roe[6], questionou-se se a Constituição também determinava que recursos públicos pudessem ser utilizados para subvencionar intervenções abortivas. Perguntam Holmes e Sunstein, se o direito ao aborto significaria também, e necessariamente, o direito ao uso de recursos públicos para a realização de prerrogativa que a Suprema Corte havia sufragado[7].

Neste último caso estava em pauta se definir se o governo deveria reembolsar custos de abortos não terapêuticos. A Suprema Corte respondeu negativamente a esta questão. Entendeu-se que a recusa de auxílio governamental não seria obstáculo para que se abortasse. De modo ríspido até, definiu-se que o governo não seria responsável pela penúria de quem não tivesse recursos para abortar. Na mesma decisão, continuam Holmes e Sunstein, definiu-se que lei estadual que vedasse o ressarcimento de gastos com abortos não estaria, necessariamente, afrontando decisão da Suprema Corte, que permitia que se abortasse, com base no direito de privacidade[8]. A interessada tinha o reconhecimento do direito de abortar; mas não podia contar com financiamento público para a intervenção médica que necessitava. Detinha direitos, porém não contava com meios para realizá-los.

Segundo Holmes e Sunstein, deve-se atentar para diferença essencial que há entre interferência estatal direta e fomento estatal com vistas a incentivar atividade ou proteger comportamento. Quase que paradoxalmente, argumentam Holmes e Sunstein, a Suprema Corte afirmaria que o indivíduo tem direito de não ser importunado pela indevida interferência do Estado e que, ao mesmo tempo, não tem direito a que o Estado subvencione o efetivo exercício desse direito de não interferência[9]. O interessado ganha, mas não leva.

Os autores norte-americanos aqui estudados insistem que haveria distinções entre liberdade e subsídio; isto é, não se poderia confundir proteção contra a presença do Estado com a titularidade a uma prestação, a ser realizada pelo Estado. Holmes e Sunstein apontam, assim, para premissa conceitual que julgam não escrita e nem dita: a imunidade contra invasão de privacidade por parte do Estado não significaria imediata outorga de titularidade em relação a prestação estatal[10].

Holmes e Sunstein problematizam percepção que é típica na cultura norte-americana. Direitos seriam fundamentalmente constituídos por um escudo contra a intervenção estatal. Essa concepção tradicional insistiria em discutir a proteção de pessoas vulneráveis contra prisões arbitrárias, desapropriações e outras formas de abuso governamental. Trata-se de arraigada ideia norte-americana, no sentido de que a proteção da liberdade pessoal exigiria tão somente a limitação da ação estatal. Holmes e Sunstein ironicamente se referem a essa percepção, lembrando que não se exigiria atuação do governo, mas sim complacência governamental[11].

Essa noção tradicional entenderia que um governo de atuação limitada proporcionaria espaço para que as pessoas pudessem organizar adequadamente suas próprias vidas. Para Holmes e Sunstein há quem confunda o constitucionalismo com a proteção que se possa ter contra o governo. Do ponto de vista da leitura dos arranjos institucionais à luz dos custos dos direitos, a falta de ação governamental nada custaria ao contribuinte[12]. Mas mesmo assim, sustentam Holmes e Sunstein, há custos para o Estado.

Essa é a dicotomia contra a qual Holmes e Sunstein se insurgem: direitos negativos, centrados na proibição da intervenção estatal na autonomia das pessoas, e direitos a prestações negativas, realizados pela efetiva participação do Estado. Direitos negativos significariam um não fazer por parte do Estado; pelo contrário, direitos positivos representariam um fazer, o que exigiria financiamento público.

Holmes e Sunstein argumentam que essa dicotomia é inconsistente, ainda que essa distinção entre direitos positivos (discutidos no caso Mahler versus Roe) e direitos negativos (discutidos no caso Roe versus Wade) seja familiar ao estudioso norte-americano (Isaiah Berlin, por exemplo, tratara do assunto em seus Quatro Ensaios sobre a Liberdade, lembram-nos Holmes e Sunstein)[13].

Distinção entre direitos negativos e direitos a prestações positivas, prosseguem Holmes e Sunstein, não são encontradas na ação dos framers — criadores do modelo institucional norte-americano —, nem no texto da Constituição daquele país. Holmes e Sunstein sustentam que esquema simplificado fora pacientemente construído, com o objetivo de se elencar e se disciplinar vários direitos de titularidade dos cidadãos norte-americanos[14].

Holmes e Sunstein apresentaram longa lista de direitos, indagando se estes, na taxionomia tradicional, seriam positivos (exigindo ação estatal) ou positivos (demandando distanciamento do Estado)[15]. Tento, em seguida, e com o objetivo de ilustrar direitos que há no modelo norte-americano, reproduzir a lista de Holmes e Sunstein, em tradução livre minha, e com várias adaptações para melhor compreensão do leitor brasileiro.

Os autores indicam, assim, direito à greve, à liberdade de consciência, de romper um contrato, de processar jornalistas por calúnia, de proteção às relações de consumo, de obter sursis, a suspensão condicional da pena, de ser protegido por buscas policiais não razoáveis. Holmes e Sunstein citam também o direito ao voto, à herança, à autodefesa, a liberdade de imprensa, o direito ao aborto, o direito de se exercer profissão. No mesmo conjunto, direitos de paternidade, o direito de apelar de decisão judicial, o direito de testemunhar na Justiça. Mencionam também o direito de não se auto incriminar, os direitos autorais, direitos de inquilinos e de proprietários, o direito de se discutir no judiciário questões administrativas[16].

A lista continua com os direitos de iniciativa legislativa, de não se sentir preterido por preferência de gênero, de retorno ao trabalho após a licença maternidade, de viajar entre os vários estados norte-americanos. Referem-se também aos direitos de informar as autoridades a respeito de algum ilícito, de caça e pesca, de portar e usar armas. Há ainda os direitos minerais, de aposentadoria, o de se fazer caridade livre de qualquer imposição tributária, o direito de cobrar dívidas e o de disputar eleições[17].

O rol é imenso. Holmes e Sunstein continuam mencionando os direitos de se invocar arbitragem extrajudicial, de se visitar os presos, de se dispor livremente sobre a própria propriedade, de contar com advogado num interrogatório, de casamento, de divórcio, de emigrar, de ser aconselhado sobre controle de natalidade, de usar anticoncepcionais[18].

Nesse contexto exemplificativo de direitos, Holmes e Sunstein não veem propósitos na divisão dos direitos entre direitos negativos e direitos a prestações positivas. Argumentam que esse inventário provisório que indicaram sugere a amplitude de tarefa de classificação. Essa dicotomia, direitos negativos e direitos a prestações positivas, segundo Holmes e Sunstein, pouco ou nada valeriam na vida real[19].

Essa dicotomia seria falaciosa. Direitos negativos sugeririam a exclusão da ação governamental, a paralisação da atuação de servidores públicos, maior proteção do valor liberdade, a defesa intransigente da vida privada, a definição de escudo protetor contra o governo, a afirmação absoluta de direitos de propriedade e de contrato. Direitos positivos exigiriam a inclusão do governo na vida de todos, a permanente intervenção afirmativa, a promoção realista da igualdade, a realocação de recursos obtidos do contribuinte, uma política caridosa e distributiva, a garantia da real entrega de serviços governamentais, subsídios para moradia[20].

No âmago da discussão a clivagem entre conservadores e liberais e, no fundo também, entre republicanos e democratas. Para os conservadores, afirmam Holmes e Sunstein, direitos positivos infantilizam o cidadão. Direitos liberais clássicos seriam exercidos de modo automático, por indivíduos autossuficientes[21].

Continuam Holmes e Sunstein lembrando que os críticos de direitos de prestações positivas interpretariam essa dicotomia à luz de narrativa histórica simplificada que daria conta de traição que revelaria o declínio histórico das aspirações liberais. Direitos negativos representariam uma primeira onda de direitos, fixada pelos construtores da Constituição norte-americana. Direitos de prestações positivas teriam sido posteriormente acrescentados, especialmente por Franklyn Delano Roosevelt (ao longo do New Deal) e pela Corte de Warren[22].

A expectativa de direitos de prestações positivas nos tornaria dependentes do Estado. Holmes e Sunstein afirmam que conservadores denunciam que haveria erosão de liberdade real, como resultado de confisco injusto de bens privados — decorrentes da tributação excessiva —, bem como se chegaria a imprudente enfraquecimento da autossuficiência dos mais necessitados. Teria havido, por parte de líderes como Franklyn Roosevelt e Lyndon Johnson, a criação de imenso grupo de pessoas necessitadas, absolutamente dependente do governo[23].

Por outro lado, lembram Holmes e Sunstein, para os progressistas a ampliação de direitos de prestação positiva indicaria e comprovaria progressiva melhora e crescimento moral, das pessoas e das instituições. Conservadores lamentam a pletora de direitos sociais patrocinados pelos contribuintes. Liberais aplaudem as garantias que se tenta implementar, interpretando-as como símbolo de aprendizado político combinado com compreensão adequada de exigência de Justiça[24].

Não haveria inocência no conflito entre postura que contempla a associação entre direitos de propriedade e de contrato como indicativos de egoísmo moral, em face de compreensão de que liberdades privadas qualificariam genuína autonomia também moral. Por outro lado, argumentam Holmes e Sunstein, essa dicotomia possibilita linguagem comum, dividida por liberais e conservadores, ainda que discordem, o tempo todo. Há necessidade de que as pessoas sejam protegidas do governo e também que sejam protegidas pelo governo[25].

No núcleo do problema, intervenção judicial e custos decorrentes da atuação do Judiciário. Holmes e Sunstein recorrem à máxima que indica que a todo direito corresponde uma ação que o assegure. Observam, no entanto, que não se pode falar em direitos que não sejam judicialmente exigidos. Direitos seriam caros, porque remédios judiciais demandam recursos e orçamento. A cada direito deve corresponder uma obrigação; obrigações somente são levadas a sério quando seu descumprimento seja punido pelo poder público, que é sustentado com recursos do contribuinte[26].

Para Holmes e Sunstein não há direitos se seus titulares não tenham como garanti-los. Liberdades pessoais não podem ser garantidas apenas mediante a limitação da atuação do Estado. Todo direito é o resultado e a razão direta de um pedido que se faz ao Estado. Segundo os autores, se direitos fossem apenas instâncias de imunidade de interferência de ação estatal, virtuosos seriam os governos paralisados[27].

Holmes e Sunstein insistem que todos os direitos custam porque todos os direitos pressupõem a ação do Estado. A supervisão, o monitoramento e a aplicação da lei são providências que custam ao contribuinte[28].

De acordo com eles, a noção de que direitos seriam escudos e muros de proteção contra o Estado se baseia em confusas crenças de que o Judiciário não seria ramo do governo, de que juízes não sejam funcionários públicos que vivem de salários pagos pelos contribuintes, que tribunais não façam parte do aparelho de Estado, que a Justiça seja estipendiada por dinheiro público. O Judiciário não é financeiramente independente, afirmam Holmes e Sunstein; cortes de justiça não conseguem trabalhar no vácuo orçamentário. O Judiciário não é autossustentável. Isto é, não são custas, mas sim impostos que custeiam o Judiciário[29].

A litigância é financiada por dinheiro público. Holmes e Sunstein se referiram a passagem de Hans Kelsen, para quem a titularidade de um direito enquadra o poder de se atuar como autor ou réu. A negativa de um direito, segundo Holmes e Sunstein, pode se dar inclusive indiretamente, mediante a limitação do acesso à Justiça[30]

A negativa de acesso à Justiça é efetivamente a negativa de um direito. Holmes e Sunstein ilustram a premissa com a questão imigratória norte-americana. Argumentam que as autoridades imigratórias daquele país eventualmente teriam agido com alguma imaginária discriminação, com base em opinião política ou origem nacional. E como aos imigrantes que chegam nos Estados Unidos não se garante o acesso ao Judiciário, nega-se o remédio pretendido, e que é custeado com dinheiro público[31].

Concluem os autores que direitos dependem prioritariamente de recursos públicos, sejam positivos ou negativos, isto é, dependam ou não da atuação do Estado. Quem paga a conta, sempre, é o contribuinte. Por isso, o gasto público é o indício mais significativo de uma boa administração.


[1] Holmes, Stephen, Sunstein, Cass, The Cost of Rigthts- Why Liberty Depends on Taxes, New York and London: W. W. Norton & Company, 1999. Na coluna da semana passada comentei a parte introdutória do livro.[2]
O tema das várias eras de direitos é explorado em Bobbio, Norberto, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2004. Tradução de Carlos Nelson Coutinho.
[3] Holmes, Stephen, Sunstein, Cass, op. cit., p. 48.
[4] Essa imaginária dicotomia é também tema de eventual dissenso entre justiça e bem-estar, com base na eficiência. Conferir, por todos, Kaplow, Louis e Shavell, Steven, Fairness versus Welfare, Cambridge: Harvard University Press, 2002.
[5] Roe v. Wade, 410 U. S. 113 (1973).
[6] Maher v. Roe, 432 U. S. 464 (1977).
[7] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 35.
[8] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[9] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[10] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 36.
[11] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[12] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[13] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 37.
[14] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[15] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[16] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[17] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[18] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[19] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 39.
[20] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 40.
[21] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[22] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 41.
[23] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[24] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 42.
[25] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 43.
[26] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[27] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 44.
[28] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[29] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 45.
[30] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., loc. cit.
[31] Cf. Holmes, Stephen, Sunstein,Cass, op. cit., p. 46.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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