Tribunal qualificado

Conselheiros do Carf são alvos de ações populistas

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11 de abril de 2013, 17h47

A famosa metáfora “gritando fogo num teatro lotado” é de autoria do juiz Oliver Holmes, no caso Schenck vs. United States decidido pela Suprema Corte Americana em 1919, em que se discutiu a extensão do direito de liberdade de expressão na Constituição americana: até que ponto o pânico causado pela informação do “fogo!” no teatro pode inibir o direito à livre expressão de um fato? Pode a autoridade pública proibir que se divulgue que há fogo no teatro (leia-se divulgar suas informações internas), em nome do pânico que sua divulgação poderia causar? Em recente artigo, o prêmio Nobel Joseph Stiglitz[1], notável estudioso da Economia da Informação, retoma o argumento de Holmes para defender que na metáfora “gritar fogo em um teatro lotado”, a questão central não é “disponibilizar ou não” a informação, mas “como disponibilizá-la”: como avisar as pessoas que há fogo para que possam evacuar o teatro de modo ordenado.

Nesse sentido, importa destacar que o problema aqui analisado não está apenas no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), mas aparece no Carf, porque é a única instância transparente e, por isso, a mais democrática no processo de formação do crédito tributário. A patologia está na cultura do segredo da Receita Federal, que implica a falta de transparência: (i) das consultas fiscais, (ii) dos autos de infração e (iii) das decisões de 1ª instância das Delegacias Regionais de Julgamento.

Portanto, há fogo na Secretaria da Receita Federal, mas a fumaça aparece no Carf porque é a única instância transparente no processo de formação do crédito tributário na esfera federal. O fogo decorre da má qualidade dos autos de infração e da cega crença numa ideologia que confunde a presunção de validade emprestada provisoriamente aos autos de infração com a efetiva legalidade que se constitui através de atos de aplicação dos direitos aplicados em ambientes públicos e democráticos, sujeitos a controle social, como é o caso do órgão.

Instituições para quê?
São as instituições que ditam o grau de evolução e os limites em que os atores de uma sociedade operam, tornando inteligível a interconexão entre as regras do jogo e o comportamento dos diversos atores sociais. São as instituições políticas, econômicas e, principalmente as jurídicas, que, construídas pelo homem e garantidas pela segurança jurídica, alicerçam a democracia e alavancam o desenvolvimento econômico e social. Sem segurança jurídica e sem respeito às decisões definitivas — do Carf, por exemplo —, o Brasil está fadado ao fracasso: uma história que já conhecemos. A realidade é cruel e confirma que o sucesso de uma nação está estritamente vinculado à formação de uma economia institucional marcada pelo respeito à segurança jurídica: situação que cria ambiente atraente de negócios, encoraja investimentos e induz desenvolvimento.

A Administração Tributária é instituição estratégica do sistema tributário nacional, responsável pela aplicação, interpretação da legislação, fiscalização e cobrança dos créditos. Modificar a lei ou a Constituição não é suficiente para melhorar nosso sistema tributário: é preciso alterar também a forma de interpretá-las ou aplicá-las. A legalidade não se constrói apenas com leis, mas com atos de aplicação do Direito, que, por sua vez, são praticados por instituições de Estado. Daí a importância do Carf, orgão de julgamento que tem a última palavra da legalidade concreta na esfera administrativa pelo olhar inteligente e prático de experts que enxergam o Direito em íntima conexão com a realidade.

O Carf, com o apoio de Otacílio Cartaxo no período em que foi secretário da Receita Federal e durante sua gestão como presidente do conselho, deu passos importantes na sua história institucional e transparência como, por exemplo: (i) a edição do novo Regimento Interno do órgão, (ii) a instituição do Comitê de Seleção de Conselheiros e (iii) a implatação do processo administrativo fiscal eletrônico, o “e-Processo”, sistema que possibilita acesso permanente e imediato aos autos dos processos, reduzindo desperdícios com tempo e recursos.

Pesquisa do Núcleo de Estudos Fiscais/Direito GV confirma os inegáveis avanços institucionais do Carf: aponta, mediante entrevistas com players que lidam diretamente com o órgão, como advogados, empresas e autoridades públicas, que suas decisões são primordialmente técnicas e não políticas. Trata-se de órgão respeitável porque delibera sobre critérios jurídicos, solucionando tecnicamente conflitos tributários entre o Fisco e o contribuinte. Nessa lógica, o Carf não atua contra ou a favor da Receita Federal ou do contribuinte. O Carf é composto por experts justamente para encontrar e corrigir os excessos de poder perpetrados nos atos individuais de aplicação do Direito — no caso, os autos de infração. Atua como órgão diretivo e de controle da ação dos auditores da Receita Federal, realizando inestimável serviço público ao cidadão-contribuinte porque aclara imprecisões, resolve indeterminações e elimina contradições normativas, de modo a reduzir a contenciosidade do sistema.

Conclusões
O Ministério da Fazenda não pode decidir pela insubsistência do auto de infração em um momento (via Carf/Procuradoria Geral da Fazenda Nacional) e, na sequência, questionar sua própria decisão no Judiciário (via PGFN). Trata-se de situação institucional bipolar que revela confusão entre aplicar a legalidade do sistema ou apegar-se à precária presunção de legalidade do auto de infração. Com efeito, é absolutamente equívoca a percepção de que quando o Carf decide desfavoravelmente aos precários autos de infração está agindo contra a Receita Federal. Quando isso acontece é sinal de que o Carf está assumindo e cumprindo sua derradeira missão institucional: colaborar com a Receita Federal, estancando problemas com critérios técnicos, reduzindo a indústria do contencioso e tornando o Fisco mais célere e eficiente. Afinal, 96% da arrecadação Federal é espontânea.

A tese de lesão ao patrimônico público por omissão arrecadatória da União Federal, após julgamento do Carf que absolveu o contribuinte, não tem fundamento. É argumento que pretende suplantar o entendimento construído legitimamente pelo órgão, nos estritos limites de sua competência, ao tentar emplacar duvidoso “interesse público”. O entendimento institucional do Carf é patrimônio público maior da sociedade. Por isso, a autora das ações populares carece de interesse processual: não há dano ao patrimônio público, apenas miopia. O Código Tributário Nacional prescreve que o crédito tributário é extinto pela decisão administrativa irreformável. Portanto, o ovo da serpente das ações populares não está em sua juridicidade, mas na violência simbólica de coagir nossos conselheiros do Carf, difundindo o medo e a insegurança de exercer seus legítimos deveres (sem garantias) de árbitros imparciais perante a lei. É votar sempre pela Fazenda ou ser processado: caminho da mediocridande e do não Direito!

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal confirma o entendimento de que o controle judicial dos órgãos atípicos de julgamento pressupõe a existência de alguma nulidade, não incidindo nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal. Não é lícito ao Judiciário ou a quem quer que seja cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da lei. As decisões do Carf, quando o processo é finalizado, tornam-se definitivas. A PGFN, ao deixar de se opôr ao prosseguimento das ações, causa uma contradição que enfraquece a segurança jurídica, o Carf e coloca em questão sua própria existência.

É inacreditável que exista 33 dispositivos (seis artigos e 27 incisos) no Regimento Interno do Carf tratando dos deveres dos conselheiros (exercer a função com dignidade, ser imparcial, julgar com celeridade, não opinar publicamente, não exercer função incompatível, observar o devido processo legal etc), mas que, contudo, não haja qualquer alusão a direitos e garantias dos conselheiros. Não falta importância, estatura, história institucional ao Carf, nem falta expertise à “Tropa de Elite” dos conselheiros — o mais técnico e qualificado tribunal em matéria fiscal do Brasil. O Carf é frágil e está sendo afetado por essas 59 ações “populistas” porque falta maior respeito e garantias ao nobre exercício da função dos conselheiros.

Retomando a famosa metáfora que abre esse estudo, “gritando fogo num teatro lotado” de Oliver Holmes, aplicada por Joseph Stiglitz, pretendemos demostrar que a questão das 59 ações populares é apenas um reflexo do grau de transparência e democracia que o Carf alcançou.

Com efeito, não se trata de problema do autor das ações populares, nem do Carf, nem de seus conselheiros. Trata-se apenas do reflexo de um problema maior: a obsessão pelo sigilo na constituição do crédito nas instâncias inferiores da Receita Federal (decisões das DRJs) combinada com a importância do Carf em contraste com sua fragilidade institucional. Órgão destinado a resolver conflitos normativos que envolvem cifras bilionárias, mas que, ao mesmo tempo, é incapaz de amparar e oferecer as mínimas garantias para que seus conselheiros realizem sua missão, objetivos e visão de futuro.


[1] On Liberty, the Right to Know, and Public Discourse: The Role of Transparency in Public Life, Joseph E. Stiglitz, Senior Vice President and Chief Economist, The World Bank, Oxford Amnesty Lecture, Oxford, U.K., January 27, 1999, p. 19.

Autores

  • Brave

    é mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, professor da Direito GV e coordenador da especialização em Direito Tributário da GVlaw e do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF/Direito GV).

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    é bacharel em Direito pela UFPR, mestrando na Direito GV e pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas (NEF/Direito GV).

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