Consultor Tributário

Mais uma polêmica relacionada ao Confaz

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10 de abril de 2013, 8h01

Já foram merecedoras de destaque nesta coluna algumas discussões relativas à guerra fiscal: em 18 de janeiro 2012, Igor Mauler Santiago discorreu sobre a ilegalidade da glosa de créditos praticada por alguns estados; em 14 de novembro de 2012, tratei de medidas tomadas para evitar a Guerra dos Portos; mais recentemente, em 30 de janeiro de 2013, Heleno Torres publicou artigo em que aborda questões relativas à guerra fiscal no que diz respeito à cobrança do ISS.

Desta vez, voltarei ao tema para examinar outra polêmica relacionada à matéria: a possibilidade de o estado, unilateralmente, dilatar ou encurtar os limites estabelecidos pelo Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária) para a criação de benefício fiscal de ICMS.

Foi o que ocorreu, por exemplo, quando o estado do Rio de Janeiro, alguns meses após incorporar as disposições do Convênio 58/1999[1] à legislação estadual, determinou que o benefício de redução de base de cálculo previsto em tal norma não seria aplicável às importações realizadas entre empresas “coligadas, controladas ou interdependentes” (restrição essa inexistente no Convênio)[2] e, mais recentemente, quando o estado de Mato Grosso, ao incluir no Regulamento do ICMS os benefícios fiscais para a Copa do Mundo, determinou que o contribuinte estornasse os respectivos créditos, apesar de essa exigência não estar prevista no Convênio que regulou o benefício (Convênio 142/2011).

Note-se que não estarei, pelo menos nesta oportunidade, tratando da polêmica discussão sobre a possibilidade de os convênios serem classificados em impositivos ou autorizativos.

Estarei cuidando de situação em que, como nos exemplos acima, a unidade da federação aceita o benefício fiscal criado pelo Confaz, incorpora-o à sua legislação, mas o modifica por meio do estabelecimento de pré-requisitos e/ou limites que, apesar de não contemplados na redação original do convênio, passam a ter que ser observados pelo contribuinte que queira fazer uso dele.  

Como sabemos, a Constituição Federal delega à lei complementar competência para regular a forma como, mediante deliberação dos estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos ou revogados (artigo 155, parágrafo 2°, inciso XII, alínea "g").

Havia dispositivo semelhante na Constituição anterior (artigo 19, parágrafo 2°) e, com fundamento nele, foi editada a Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, que dispôs sobre a edição de convênios celebrados pelos estados para a concessão ou revogação de incentivos fiscais concernentes à incidência do ICMS.

Por ser com ela plenamente compatível, essa LC foi recepcionada pela Constituição de 1988, nos termos do artigo 34, parágrafo 5°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

Segundo suas disposições, isenções, reduções de base de cálculo, devoluções totais ou parciais do tributo, concessão de créditos presumidos e quaisquer outros incentivos ou favores fiscais, ou financeiro-fiscais, relativos ao ICMS dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus, são concedidos ou revogados nos termos de convênios celebrados em reuniões no Confaz. Para essas reuniões, que são presididas pelo Governo Federal, são convocados representantes de todas as Unidades da Federação. A criação de benefícios fiscais depende da aprovação da unanimidade dos Estados representados, e a sua revogação, total ou parcial, de quatro quintos dos presentes. É exigida, ainda, a ratificação expressa ou tácita de todos os estados.

A inobservância dessa regra (previsão em convênio dos benefícios fiscais concedidos) acarreta cumulativamente: (a) a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria (matéria essa muito bem tratada por Igor Mauler Santiago no artigo a que me referi acima), e (b) a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e (c) a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente (artigo 8° da LC 24/1975).

A razão de ser da centralização do poder decisório relativo à criação e definição do escopo dos benefícios relativos ao ICMS repousa, basicamente, em dois pressupostos: evitar a guerra fiscal, pela qual os estados, por meio de benefícios fiscais, buscam atrair novos investimentos para os seus territórios, com todas as consequências sociais e econômicas daí decorrentes, e promover o equilíbrio das relações de fornecimento e consumo que se estabelecem entre as várias regiões de um País de dimensões continentais como o nosso.

Em decorrência disso, é fundamental que os benefícios fiscais no âmbito do ICMS sejam pensados nacionalmente e delineados de forma a garantir que deles não decorra qualquer anomalia que possa influenciar negativamente o desempenho da economia nacional e/ou comprometer o pacto federativo.

Daí as regras constitucionais acima examinadas, que retiram dos estados o poder que lhes seria inerente, consistente em dimensionar as isenções e demais benefícios fiscais relacionados a tributo cuja cobrança lhe cabe.

Note-se que, também em relação ao ISS, de competência dos municípios, os pressupostos acima comentados (evitar a guerra fiscal e promover o equilíbrio das relações de fornecimento e consumo nas diversas regiões do País, sem deixar de observar as suas peculiaridades) justificam com igual força a necessidade de unificação do procedimento de instituição e revogação de benefícios fiscais relativos aos serviços por ele tributados.

E não foi por outra razão que, por meio da Emenda Constitucional 3/1993, determinou-se, no âmbito de incidência desse imposto, regra muito semelhante às aplicáveis ao ICMS: a de que cabe à lei complementar “regular a forma e as condições como isenções e benefícios fiscais serão concedidos e revogados” (artigo 156, parágrafo 3º, inciso III).

E mais: por meio da EC 37/2002, inseriu-se regra no ADCT no sentido de que, enquanto  lei  complementar  não  disciplinar  a matéria acima, deverá ser observada alíquota mínima de 2%, e o ISS não poderá ser objeto de concessão de  isenções, incentivos e benefícios fiscais, de que resulte, direta ou indiretamente, redução do limite mínimo acima referido (artigo 88).

Tudo isso em prol (a) de um ambiente em que não se tenha que conviver com os efeitos maléficos da guerra fiscal e (b) da preservação da unicidade das regras relativas à incidência do ISS, principalmente as relativas a benefícios fiscais, que podem influenciar o equilíbrio socioeconômico que se pretenda estabelecer.

Daí é que, agora voltando ao ICMS, os benefícios fiscais concedidos pelo Confaz só podem existir nos exatos limites definidos em convênio. Os estados não estão autorizados a alterar o escopo de benefício fiscal outorgado pelo órgão que legitimamente o criou.

Repita-se: a controvérsia sobre a natureza dos convênios editados pelo Confaz (se impositivos ou autorizativos) é absolutamente irrelevante para o exame dessa questão, uma vez que ela pressupõe norma interna do estado que incorpora o benefício. O que se quer estressar neste estudo é que a referida norma estadual, ainda que necessária à validade do benefício fiscal, não pode ampliar ou restringir o alcance do que está previsto no convênio.

O estado não é obrigado a ratificá-lo, mas, se o faz, não pode, através de norma posterior (lei ou decreto), alterar os seus termos, o que só seria possível mediante a edição de novo convênio, procedida na forma determinada pela LC 24/1975.

De fato, conforme lição de Alcides Jorge Costa, os estados “só podem aceitar ou rejeitar os convênios, mas jamais alterá-los. Neste sentido, houve uma transferência de poderes legislativos para os Executivos que são os que propõem e discutem as isenções e suas revogações” (ICM na Constituição e na Lei Complementar, ed. Resenha Tributária, São Paulo, 1978, página 126).

No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres, segundo o qual “as isenções concedidas por convênio, ainda que autorizativo, só se revogam por outro convênio, eis que no ato de conceder o benefício se esgota a autorização coletiva” (Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, Volume IV, Editora Renova, 2007, p. 297).

E também o entendimento adotado pelo STF (em sessão plenária) ao examinar a matéria, como se depreende da ementa abaixo transcrita:

"(…) as isenções sobre as operações sujeitas ao ICM estão subordinadas a convênios celebrados e ratificados pelos estados, segundo o disposto em lei complementar (artigo 23, parágrafo 6, da Constituição da República). A lei impugnada contém restrições relativas aos contribuintes, sem que tenha havido modificação introduzida por novo convenio. Afronta aos artigos 23, parágrafo 6, e 153, parágrafo 1, da Lei Magna. Procedência da representação." (Representação nº 1.364-2, relator min. Djaci Falcão, sessão plenária, unânime, em 7 de abril de 1988).

Destaco a seguinte afirmativa constante do voto do ministro relator Rafael Mayer, proferido nesse acórdão: “só mediante novo convênio é possível modificar a isenção concedida em convênio anterior”.

Transcrevo, também, breves trechos de parecer exarado pela Procuradoria-Geral da República sobre a matéria em exame, apresentado nos autos do RE 101.480-6 (1ª Turma, DJ de 24 de fevereiro de 1989), que também concluiu que os benefícios fiscais previstos em convênio não podem ser restringidos por norma interna dos estados:

"O Convênio AE – 08/74 firmado pelos Secretários de Fazenda dos Estados Membros e do Distrito Federal concedeu isenção de ICM nas saídas de máquinas, aparelhos e equipamentos industriais (…) O regulamento do ICM editado pelo Estado veio restringir esta isenção. E regulamento é norma, in casu, de hierarquia inferior ao convênio e não pode restringir o que este não limita. (…) Não pode, assim, o legislador de hierarquia inferior restringir-lhe o alcance ou criar finalidade para o uso do produto” (parecer publicado no Recurso Extraordinário  101.480-6, Primeira Turma, DJ. de 24 de fevereiro 1989).

Em suma, limitações inseridas unilateralmente pelas unidades da federação representam revogação (ainda que parcial) do benefício fiscal inicialmente instituído, e, por conseguinte, configuram afronta à LC 24/1975, pela qual as isenções do ICMS somente "serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal".

Pelo menos em tese, a LC 24/1975 é instrumento apto a reduzir, ou até mesmo eliminar, os efeitos da guerra fiscal, bem como a garantir o equilíbrio das relações de fornecimento e consumo que se estabelecem entre as várias regiões do país.  Se não cessar essa constante e insistente iniciativa dos estados em desrespeitá-la (seja em situações como a ora examinada, ou pela simples criação de benefícios fiscais não previamente aprovados pelo Confaz), aqueles objetivos jamais serão alcançados e o pacto federativo restará comprometido.

Se essa alteração de comportamento por parte dos estados não for viável, volto a bater na minha tecla habitual de que o que corrigiria grande parte das deficiências do sistema tributário nacional seria a criação de um IVA federal que substituísse os cinco tributos indiretos que oneram demasiadamente o fornecimento de mercadorias e serviços neste país. Essa iniciativa, além de reduzir o número e a complexidade de normas tributárias que devem ser observadas pelos contribuintes, viabilizaria a ampla utilização de créditos nas exportações, ainda que precedidas de operações interestaduais, e, o que importa para o presente estudo, eliminaria a guerra fiscal e os problemas dela decorrentes.


[1] Tal convênio permite que as unidades federadas reduzam a base de cálculo do ICMS incidente na importação de bens submetidos a regime especial de admissão temporária, de tal forma que a carga tributária seja equivalente à cobrança proporcional dos tributos federais.
[2] Essa restrição foi recentemente revogada pela legislação interna do Rio de Janeiro.

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