Direito ambiental

Nova ordem biocentrista transforma regra em dogma

Autor

  • Antonio Fernando Pinheiro Pedro

    é advogado e consultor ambiental formado pela USP sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados membro do Comitê de Energia e Sustentabilidade da Câmara de Comércio Internacional e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros). Foi consultor do Dnit (Departamento Nacional de Infra-Estrutura dos Transportes) integrando o Centran (Centro de Excelência de Engenharia de Transportes do Exército Brasileiro — Fundação Trompowsky EB.

3 de abril de 2013, 7h42

Autoridades recém-nomeadas para a gestão ambiental constatam a paralisia que acomete a burocracia nos órgãos ambientais.

Autuações arbitrárias, defesas desconsideradas, licenças ambientais atoladas no pântano das indefinições técnico-jurídicas (algumas aguardando literalmente que o empreendedor morra sem ver sua atividade autorizada) e Termos de Ajuste de Conduta que não conduzem à solução dos conflitos, apontam, ao final do túnel da tortura burocrática, para uma obscura judicialização dos conflitos ambientais.

O pavor de decidir, o temor de assinar e o medo de assumir, estampado nos corações e mentes de um corpo funcional com crise de identidade, é o triste quadro encontrado por secretários e diretores das novas gestões ambientais.

Como resolver, questionam os preocupados gestores.

Ideologia
Necessário ir à raiz da questão: O que gerou tudo isso?

O uso indiscriminado, por parcela significativa de representantes do Ministério Público, da Ação de Improbidade Administrativa e seus mecanismos preparatórios, é a principal causa dessa distrofia administrativa.

Há uma deformação cultural ainda não corrigida pelo Poder Judiciário, a qual permite não um efetivo controle de legalidade, mas, sim, desvio de finalidade no manejo do procedimento — como forma de impor a vontade ocasional do promotor sobre administradores e técnicos responsáveis pela gestão na Administração Pública Ambiental.

Quando editada, a lei de improbidade administrativa foi muito festejada por todos que lidavam com a causa pública —incluso eu, que na ocasião estava à frente da Subcomissão de Meio Ambiente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional São Paulo.

Trata-se de importante instrumento de combate à corrupção e à desonestidade administrativa, e não há dúvida quanto a isso.

No entanto, a estrutura do Ministério Público brasileiro, a partir da Constituição Federal de 1988, foi adaptada para atender às novas demandas antes não atendidas pela instituição. Isso fraturou a estrutura hierárquica e disciplinar do órgão.

Teses de natureza civil, trabalhista, tributária, ambiental, administrativa, várias com tinturas ideológicas, doutrinas libertárias, ativismos e ecologismos, proliferaram entre promotores e procuradores como costumam proliferar no meio advocatício. No entanto, o Ministério Público não possui a mesma natureza orgânica e muito menos o dinamismo e a liberdade doutrinária inerente ao ministério privado dos advogados.

A possibilidade de se por à prova teses variadas, sem uma maturação interna vinculada à responsabilidade institucional da direção do órgão ministerial, conflita com o exercício funcional e absolutamente conservador da fiscalização da lei e gera insegurança.

Nesse quadro, operadores surgem para se apropriar de instrumentos como o da improbidade, interessados em fazer valer sua orientação doutrinária e ideológica, acima dos parâmetros da razoabilidade na aplicação da norma na Administração Pública.

O exemplo disso é a “urbanização” do Código Florestal (da qual, reconheço, fui coparticipe entusiasmado, imbuído das melhores intenções na proteção ambiental, juntamente com grandes amigos promotores de então).

Com efeito, à época —entre os anos 80 e 90 do século passado, havia um desprezo corrente na administração pública quanto à aplicabilidade do Código Florestal na área urbana.

Cursos d’água eram canalizados indiscriminadamente, quando não tamponados para permitir empreendimentos imobiliários. A tolerância com a ocupação de encostas e áreas de risco por moradias populares era ainda pior que a de agora. As autorizações para desmate, supressão de vegetação, geravam verdadeiros desertos de concreto armado que chegavam a alterar os microclimas das cidades.

A luta contra isso parecia inglória aos que lutavam pela causa ambiental de então, incluindo o Ministério Público. A jurisprudência era pacífica no sentido de tolerar a discricionariedade para com a supressão dos recursos florestais na administração do solo das cidades. A própria introdução do dispositivo legal que permitia à legislação urbana tratar de forma diferente áreas de proteção permanente, porém “dentro dos limites deste código”, era recente, pois que este veio a ser alterado no final da década de 80 face à nova Constituição e ainda não havia sido assimilado nem pela Administração Pública, muito menos pelo Judiciário.

Foi aí que tivemos todos os que lidavam com o nascente “Direito Ecológico” a brilhante ideia de fazer uso das chamadas Recomendações do Ministério Público aos administradores, acenando no horizonte com a aplicação da lei de improbidade administrativa, caso insistissem aqueles no entendimento de não se aplicar o Código Florestal nas cidades.

O resultado da ideia, executada com as melhores intenções, foi tão eficaz quanto desastroso.

O que deveria ser exceção passou a virar regra. Milhares de bons profissionais, pessoas sérias, indivíduos probos, honestos, gente com mestrado, doutorado na área ambiental, técnicos com carreira imaculada, passaram a ser confundidos com gente corrupta e desonesta e jogados na vala comum da improbidade administrativa, apenados pela lei por simplesmente discordarem, em termos técnicos e conceituais, do que lhes havia sido “recomendado” pelo digno promotor de Justiça de plantão.

Aparelhamento do MP
O Ministério Público mudou sua essência em pouco mais de vinte anos.

O chamado “princípio do promotor natural” —complexo para um órgão que deve seguir organicamente a unicidade (na verdade uma reação a desmandos, não uma ação positiva estrutural), favoreceu a ação de jovens idealistas, preocupados com mudanças. Contra isso, foram vencidos os mais conservadores dentro dos organismos ministeriais, que anteviam os problemas institucionais que adviriam desse fato. Na verdade, o Ministério Público assumiu o rosto das hordas de novos promotores, chamados à carreira para atender a uma crescente demanda, decorrente do crescimento econômico e consequente aumento da complexidade dos conflitos sociais e institucionais ocorrentes no Estado brasileiro.

O controle ideológico dessa massa de novos militantes foi imposto gradualmente às estruturas dos Ministérios Públicos. Acordos e Resoluções estabelecidos nas organizações ministeriais por meio de encontros e seminários, subscrição de cartas e outros manifestos ou mesmo portarias internas, passaram então, paradoxalmente, a engessar a conduta dos promotores de Justiça “naturais”, vinculados à resolução dos conflitos de aplicabilidade da norma ambiental no caso concreto.

Militância passou a ser confundida com especialização, não raro ocorrendo do militante ser efetivamente muito bem formado e especializado, facilitando a assunção de perfis ideológicos e o consequente “aparelhamento” da instituição.

Exemplo do fenômeno está no efeito contraditório ocorrido com a introdução na Lei Orgânica do Ministério Público da possibilidade do Termo de Ajustamento de Conduta vir a ser submetido a uma instância superior dentro do próprio organismo. O mecanismo, que a princípio serviria para conferir certo controle hierárquico e institucional, acabou por fortalecer corpos intermediários de controle especializado, não raro aparelhados, como “Centros de Apoio”, “Coordenadorias” e grupos de atuação setorial, que passaram a opinar nos casos submetidos aos Conselhos Superiores daqueles órgãos.

Isso passou a gerar verdadeiro engessamento procedimental, retirando as opções do promotor natural quanto a aplicabilidade razoável da norma legal ambiental.

A chamada “nova ordem” biocentrista se instala em meio a esse engessamento, propiciando a desumanização da norma ambiental e a elevação de regras à categoria de dogmas, condicionando a conduta de persecutores e dos funcionários públicos à vontade daqueles (pelo medo de discordar).

Retirou-se dos operadores a capacidade de raciocinar livremente, interpretar a norma de acordo com a realidade concreta e fazer bom uso da lei ambiental para permitir o desenvolvimento econômico do país.

Ditadura da caneta
Seguindo o mesmo nível de aparelhamento do Ministério Público, a carreira jurídica nos organismos estatais passou a ter um valor desproporcional em relação às carreiras técnicas, facilitando o controle ideológico provindo da advocacia pública, principalmente por competir a esta, por meio de pareceres, análise e redação de portarias, instrução de procedimentos administrativos os mais variados, o uso de uma arma perigosíssima e, contudo, não tutelada por nossa legislação de controle e desarmamento: a caneta.

Não é raro hoje em dia procedimentos usuais ficarem paralisados nos escaninhos da Administração, instruídos com pareceres que nada solucionam, por não ter quem decida, face ao temor da Ação Civil Pública por improbidade administrativa.

Trata-se de verdadeira simbiose: o controle externo da atividade administrativa por meio do medo, pelo Ministério Público, alimenta a assunção do controle (e pretendido monopólio) ideológico das carreiras jurídicas no interior dos órgãos ambientais —engessando duplamente o administrador, temeroso de adotar uma decisão sem necessariamente obter um aval do procurador de plantão.

Para além do analista jurídico, diria o psicanalista que o caso em tela é sintomático de um desejo irrefreável que alguns indivíduos possuem de controlar a vida dos outros. Desejo esse simbioticamente acoplado à inação daqueles vencidos pelo temor ou simplesmente interessados em fazer do impasse um bom negócio.

A conclusão é que o artigo 37 da Constituição Federal foi revogado pelo “politicamente correto”, “princípio” elástico e transcendente prestigiado pela covardia institucional, que, a pretexto de perseguir a moralidade, rasga a razoabilidade, a proporcionalidade e a eficiência em nome de uma legalidade sem causa absolutamente descasada com a realidade.

A grande vítima é o Estado Democrático de Direito, razão de ser de nossa Constituição, e sem o qual não existe desenvolvimento sustentável.

O mais funesto é que, no impasse, não raro a corrupção vigora.

Portanto, a solução envolve coragem para por fim à ditadura da caneta, para permitir o resgate da técnica, da engenharia e da Administração Pública, sob pena do Estado Brasileiro sucumbir no mar da covardia prestigiada e da corrupção tolerada, tudo em nome de uma “militância” biocentrista, disfarçada de pretensa e exagerada legalidade.

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