Observatório Constitucional

A jurisdição constitucional em contextos interculturais

Autor

  • Pedro Grández Castro

    é professor da Universidad Nacional Mayor de San Marcos e da Escuela de Posgrado da Pontificia Universidad Católica do Peru. Diretor-Geral da Academia da Magistratura do Peru. Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (IDP).

29 de setembro de 2012, 8h00

O constitucionalismo reabre em nossos países latinoamericanos velhas discussões latentes e não resolvidas durante o período de nossas repúblicas. Sua implementação — ainda que tardia, mas progressiva e esperançosa (quiçá sem retorno) — enfatiza a garantia dos direitos universais contra todo tipo de interferências, incluídas as que eventualmente provenham da legislação ou da atuação dos poderes fáticos, como o mercado ou as grandes empresas. Nesse sentido e, em termos gerais, relativo a todos os países da América Latina, nos é comum o problema das minorias originárias e suas reivindicações pendentes, não apenas quanto ao seu território, mas também quanto ao respeito de sua identidade cultural e ao acesso a condições básicas para a igualação de seus direitos.

Desse modo, constitui um objetivo para o constitucionalismo de nossos dias o compromisso de levar a sério — não somente desde o discurso da igualdade, mas também no marco do respeito ao pluralismo cultural —, a inclusão desses temas na agenda pendente. O constitucionalismo não pode se limitar a assegurar um marco de liberdades econômicas para atrair investimentos internacionais (como parece terem imaginado os constituintes do fujimorismo, para o caso da Constituição peruana de 1993). Creio que, fundamentalmente, o constitucionalismo de nossos dias deve ser capaz de atrair as esperanças dos cidadãos, tantas vezes esquecidas pelo Estado de Direito e suas instituições. Deve ser capaz de reverter essa vocação de se reinventar todo a cada curto espaço de tempo, que é a atitude que nos acompanhou ao largo da República.

Isso passa, entre outras questões, por tornar partícipes desse processo as comunidades originárias, reivindicando seus direitos que tantas vezes foram negados. Trata-se, em boa medida, de saldar uma dívida histórica da República com as comunidades. Como José Carlos Mariátegui denunciou para o caso peruano no começo do século XX, nesse assunto, “El Virreinato aparece menos culpable que la República. La República ha pauperizado al indio, ha agravado su depresión y ha exasperado su miseria. La República ha significado para los indios la ascensión de una nueva clase dominante que se ha apropiado sistemáticamente de sus tierras.” (JCM, 1928, “El Problema del Indio”).

Para que isso seja possível, o primeiro direito que deve ser destacado, certamente, é o que torna possível aos povos originários a participação em igualdade de condições nas deliberações da democracia. Aqui existe um primeiro obstáculo, porque as comunidades andinas ou da inóspita selva sempre viram os processos políticos como formas de manipulação das expectativas do povo. Sua aproximação a formas convencionais de participação política pode ter sido, em mais de uma oportunidade, a constatação de suas suspeitas: a política está impregnada de oportunistas. Além disso, a obrigação de votar sob ameaça de multa pela omissão forjou, ao longo dos anos, uma atitude pouco comprometida com a “festa democrática”, como se costuma denominar de forma chamativa os processos eleitorais.

As cotas obrigatórias para representantes de comunidades nos partidos e no parlamento tampouco deram resultados. Em muitos casos, se constatou como os partidos tradicionais procuram incluir em suas listas pessoas com sobrenomes originários, para assim cumprir com o requisito formal da representação plural. Em outros casos, quando se trata de líderes de comunidades que logram uma cadeira no parlamento, foi possível constatar atos e atitudes de intolerância que mostram na prática um caminho ainda em construção e nada fácil para a inclusão na vida política das comunidades quechuas ou aymaras, apenas para citar as duas comunidades mais visíveis de nosso país. Isso pode ser notado, em nosso país, quando a então Presidente do Congresso lhes impediu de intervir em uma sessão. A isso se soma a tendenciosa forma com que os meios de comunicação costumam transmitir as intervenções dos representantes das comunidades, o que desgasta sua liderança no interior de sua própria comunidade e, o que é pior, se converte em objeto de burla dos programas de humor e de sátira política, ampliando os problemas de discriminação nos espaços públicos.

Em um contexto assim, sem renunciar à educação e à formação de lideranças e organizações políticas próprias, as comunidades não podem renunciar aos direitos e garantias formais que a Constituição lhes reconhece. Neste ponto, não se deve olvidar que o constitucionalismo contemporâneo não é apenas um conjunto de procedimentos para a formação da vontade política, mas também, e às vezes de forma especialmente relevante, deve ser enaltecido e defendido como um conjunto de garantias jurídicas para preservação das liberdades básicas. Isso pode ser considerado para o caso das comunidades originárias; não como o último, mas como o primeiro mecanismo de participação cidadã na defesa de seus direitos.

Desse modo, a judicialização das reivindicações históricas das comunidades originárias, expressadas nos últimos anos através de demandas judiciais, pode também ser assumida como uma aproximação ao modelo do Estado democrático, que tantas vezes não soube dar-lhes uma resposta satisfatória, mas ao mesmo tempo representa também uma maneira, talvez mais efetiva, de participação na vida pública. Como enfatizou Owen Fiss (El Derecho como razón pública, 2007), os processos judiciais não são mecanismos para resolver conflitos intersubjetivos de duas ou mais partes a respeito de situações concretas; em sua essência e no marco do Estado constitucional, os processos judiciais são uma verdadeira forma de definir o conteúdo da vida pública, uma maneira de dar conteúdo às instituições da democracia, na qual os direitos exercem um papel preponderante. Em boa medida, parece que, desse modo, as comunidades participam em melhores condições na vida democrática do país.

Pode-se afirmar, inclusive, ao menos para o caso peruano, que as comunidades originárias, que não tiveram possibilidade de participar no último processo constituinte, somente lograram participação efetiva a partir de suas demandas ante os órgãos judiciais na defesa de seus direitos. Trata-se, ademais, de demandas que têm a ver com sua vida e desenvolvimento nos próximos anos e que devem ser assumidas no âmbito de outras expectativas que a Constituição também protege, como é a exploração razoável dos recursos naturais, para o bem da própria comunidade e do desenvolvimento do país. Se o raciocínio se faz em perspectiva histórica, não se trata de um conflito novo ou diferente desde o ponto de vista da comunidade, na medida em que também hoje existem aqueles que adentram a comunidade com a ânsia de extrair os bens naturais que nela se encontram, gerando danos e destruição em seu habitat e em sua descendência. Talvez a questão diferente radique no fato de que a comunidade pode agora apelar a um árbitro, do qual pode exigir que seja imparcial ao resolver suas demandas; e também no fato de que não será mais o Padre Valverde que, apelando à “misericórdia”, vem a defender ao “bom selvagem”que tem alma e pode se salvar se implora ao “Todo Poderoso”. Trata-se, agora, de titulares de direitos; cidadãos da aldeia, mas também do mundo, que podem questionar o próprio Estado nacional ante um Tribunal mais alto em San José de Costa Rica.

Algumas das questões de maior atualidade, discutidas recentemente no âmbito da jurisdição constitucional, estão relacionadas com o direito à consulta das comunidades no marco do Convênio 169 da OIT, vigente no Peru desde o ano de 1995. A Jurisprudência do Tribunal Constitucional peruano sobre o desenvolvimento do direito à consulta como direito básico para a defesa dos demais direitos da comunidade, porém, não tem sido auspiciosa, podendo-se afirmar, inclusive, que em mais de um caso, logo após constatar a manifesta violação ao direito de consulta, o tribunal não foi capaz de remediar o dano produzido (por exemplo, no caso AIDESEP, Expediente 6316-2008-AA/TC; e no caso Tuanama I, Expediente 0022-2009-PI, no qual o Tribunal deixa fora do conteúdo do direito à consulta a possibilidade de veto das comunidades aos projetos de investimento).

De toda forma, o certo é que a jurisdição constitucional pode se converter em janela de participação das comunidades que foram relegadas pelo processo democrático tradicional através da ação política direta. Isso, não obstante, requer um constitucionalismo “militante” praticado pelo Tribunal Constitucional. Se a política está mais influenciada pelos interesses dos grandes grupos econômicos, as instituições judiciais têm o dever de imparcialidade, que devem vigiar com especial zelo. Em um âmbito de conflito entre investimento de capitais e vida interna das comunidades, as decisões do Tribunal Constitucional se movem sempre entre essas duas opções. Se isso é levado em conta, a jurisprudência do Tribunal Constitucional mostra uma séria deficiência, a qual repercute diretamente nos interesses das comunidades. Observada desde a perspectiva das comunidades e suas garantias e direitos, a jurisprudência peruana assumiu um constitucionalismo tênue ou débil.

“Constitucionalismo débil” significa constitucionalismo frágil em relação às garantias fundamentais, um constitucionalismo incapaz de se colocar a frente das expectativas históricas das comunidades originárias. Um constitucionalismo débil, que apela a argumentos como o da “dignidade democrática da lei”, o da “presunção de constitucionalidade das leis” ou da exigência de “self restraint” por parte dos juízes, pode significar, em nosso contexto, um modelo desprovido de garantias e, o que é pior, um modelo que exclui boa parte dos cidadãos dos benefícios da própria democracia. De tal maneira que o tantas vezes denominado “poder contramajoritário”, com o qual se qualifica a jurisdição constitucional, seria incapaz de controlar e fazer frente a todos os poderes históricos acumulados que conspiram contra as expectativas das comunidades.

Ademais, a dicotomia conceitual entre constitucionalismo débil e constitucionalismo forte é enganosa e está contaminada de preconceitos. Talvez o preconceito mais condenável seja o preconceito contextual, que se encontra na falta de compreensão dos problemas que estão fora da órbita das democracias consolidadas, que não têm (ou não tiveram na mesma intensidade) os problemas de desigualdade e dissociação tão profundos como os que são gerados nesta parte do mundo, desde a invasão ocidental do século XVI. Em contextos como o nosso, a atuação da jurisdição constitucional no controle dos excessos e correção dos desvios da política não significam um risco para a democracia. As intervenções da jurisdição constitucional não podem ser vistas como ameaças contramajoritárias. Ao contrário, a história que não fez justiça com essas comunidades talvez seja a ameaça contramajoritária mais flagrante que já conhecemos.

Necessitamos, portanto, de um constitucionalismo forte, no sentido de que seja comprometido com a concretização dos valores e direitos que o constitucionalismo contemporâneo escreveu nos documentos internacionais e nas Constituições nacionais; um constitucionalismo afirmativo que seja urgente na implementação das ações afirmativas que também devem ser promovidas por meio da atuação judicial, que permitam nivelar em forma progressiva as distâncias que foram geradas nos últimos séculos de injustiças impostas às comunidades. Enfim, um constitucionalismo que encontre nas instituições judiciais o espaço para tornar possível o reencontro de nossas comunidades originárias com o destino que queremos traçar como república democrática.

Este artigo resume a palestra de seu autor no XV Congresso Brasiliense de Direito Constitucional, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), no último dia 21 de setembro. O autor expressa seu agradecimento aos organizadores do evento e, de maneira especial, ao colega e amigo André Rufino, que tornou possível a tradução ao português do presente artigo.

"Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio)."

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  • é professor da Universidad Nacional Mayor de San Marcos e da Escuela de Posgrado da Pontificia Universidad Católica do Peru. Diretor-Geral da Academia da Magistratura do Peru. Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (IDP).

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