Senso Incomum

O Direito AM-DM (antes e depois do mensalão)

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27 de setembro de 2012, 8h00

Spacca
Dura tarefa da crítica
A Coluna desta quinta-feira está sendo uma das mais difíceis de escrever. Tão difícil como a da semana passada. Em um país em que a doutrina jurídica tem se caracterizado por “seguir a jurisprudência” (e, às vezes, seguir, ad hoc, julgados isolados), é árdua — para não dizer antipática — a tarefa de fazer crítica do Direito. Não falo da crítica espetacularizada feita por alguns juristas que, por exemplo, no Direito Penal falam em terra arrasada, algo do tipo “é proibido proibir”, como se quisessem repristinar uma espécie de Woodstock do Direito em tempos de Estado Democrático (para muitos, sonegar tributos é menos grave que furtar). Também não estou me referindo às análises feitas por alguns juristas do estilo neopentecostal, que “descobriram” que existem princípios (e, por isso, caem na farra do panprincipiologismo) e que as palavras da lei são “vagas e ambíguas”. Refiro-me, aqui, à crítica com base em matrizes teóricas consistentes, que revolvem o chão linguístico em que está assentada a tradição (ou as tradições) do Direito.

A ConJur escreve, em notícia do dia 15 de setembro — tratando do lançamento de livro sobre lavagem de dinheiro, em que estiveram presentes advogados, magistrados, ministros e ex-ministros do STF e da Justiça — “Que o STF avançou alguns pontos além de sua jurisprudência e é hora de os doutrinadores correrem atrás. O mensalão é um fenômeno que pede alguns anos para ser decifrado. Os atuais ministros (ou os futuros), poderão explicar (ou discordar).”

Sinto-me, pois, à vontade e, por que não, no dever de também me manifestar sobre isso. A própria ConJur faz um desafio a que se fale sobre o que acontecerá daqui para frente em terrae brasilis (como referido, “é hora dos doutrinadores correrem atrás”). Lembro-me de ter dito, aqui neste espaço, que havia algo de novo no ar, para além dos aviões apertados e desconfortáveis da GOL e da TAM.

Contradições discursivas
Então.

O que mais me incomoda no Direito — além, é claro, dos livros “simplificadores” — são as contradições discursivas. Por exemplo, alguém diz que “tudo é relativo” e esquece que o que ele disse também é relativo. Bingo. Caiu em contradição. Outro discurso recorrente acentua que “não há verdades”, mas que, no caso que está tratando, a verdade é X… Ah, bom. É como falar em “guerreiros da paz”, incapazes de se dar conta de que paz e guerra não coexistem. É como luz e escuridão! Som e silêncio. Se um existe, o outro some, de forma que os tais “guerreiros” jamais sairão vitoriosos, a não ser que deixem de sê-los.

Mas a contradição mais grave — e repetida diariamente em petições, sentenças, salas de aula, acórdãos — é a que tem ecoado pelos corredores do STF e vem sendo estampada nas páginas dos jornais sem que a grande massa (que, nesse caso, engloba leigos e doutos) se dê conta da algaravia conceitual que se formou no seio da comunidade jurídica. Refiro-me ao jargão “livre convencimento motivado”, que vem ocupando lugar de destaque na fala de alguns ministros do Supremo (aliás, esse enunciado performativo é comumente utilizado pela maioria dos tribunais pátrios). Em verdade, o enunciado representa retrocesso inqualificável, além de demonstrar nossa precária compreensão constitucional e uma espécie de “ode ao sincretismo teorético”.

Vejamos o tema da moda: o julgamento do mensalão. É bem sabido que o processo de transição paradigmática representado pela CF/88 ainda não se deu de forma plena, havendo, ainda, pegadas frescas de alguns conceitos do ancien régime. Não é fácil olhar o novo com os olhos do novo. Prova disso é a firmeza da grande parte da doutrina e quase toda a jurisprudência ao afirmar — claro que apenas implicitamente — que estamos em face de um “sistema processual misto”, onde a fase inquisitorial/pré-processual ainda guarda(ria) natureza inquisitiva, de modo que somente após o recebimento da denúncia valeriam as regras do sistema acusatório (sic).

Evidente que, no plano do discurso, todos são adeptos do “acusatório”; na prática, vale o inquisitivismo; basta que se observe que o artigo 212 do CPP não vingou![1] Por exemplo, um dos processualistas que sustenta que o sistema é misto, Guilherme Nucci,[2] é, coincidentemente (ou não) um dos mais citados nos votos do mensalão. Tanto os que absolvem como os que condenam o citam. Vejamos o que ele diz: “Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal, poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas etc.) é redigido por Código específico, que data de 1941, elaborada em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo).”

Minha perplexidade: Quer dizer que há uma nítida separação entre CPP e Constituição? Quer dizer que o CPP pode valer mais do que a Constituição? O que o autor quer dizer com “fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal”? Será que é possível, nessa quadra da História, admitir-se a possibilidade da coexistência, em um sistema normativo, de um texto legal e da Constituição, havendo desconformidade do primeiro em relação à segunda? Depois nos queixamos quando, em determinado momento, um ministro do STF fala em heterodoxia processual…

Livre convencimento?
Mas, sigamos. Meu posicionamento quanto à lógica autoritária vigorante num modelo inquisitorial foi devidamente registrado em O que é isto As garantias processuais penais? (Livraria do Advogado, 2012, em coautoria com Rafael Tomaz de Oliveira), onde está demonstrada a problemática filosófica que subsiste no sistema inquisitório. Sei que isso é complexo, mas precisamos nos acostumar com a ideia de que o Direito é um fenômeno complexo.[3] Fosse fácil e o Direito seria outra coisa (não vou repetir, aqui, uma blague que fiz em outra coluna). Não dá para escrever de forma “simplificada” (permito-me insistir nisso). Por isso, é preciso compreender que o sistema inquisitivo está sustentado em um paradigma filosófico ultrapassado, no qual o “sujeito” assujeita o “objeto” (isso falando grosso modo, porque a doutrina em geral, quando fala nesse assunto, faz uma vulgata da filosofia da consciência, misturando-a com a metafísica clássica — o resultado é um mix de idealismo com subjetivismo). Como explicarei na sequência, é graças à (vulgata) (d)esse ultrapassado paradigma que o jurista diz que possui “livre convencimento” ou que pode “apreciar livremente a prova” (e, assim, colher prova ex officio).

Isso se transformou em um mantra, repetido em vários votos no julgamento do mensalão. Não caberia aqui repetir as mesmas linhas, mas interessa uma conclusão que nem mesmo os que se apegam ao velho paradigma defendiam com a veemência o que ora fazem alguns ministros. De forma acadêmica, analiso, brevemente, alguns pronunciamentos feitos na Ação Penal 470, nome científico para o processo do mensalão:
“A prova há de ser considerada no julgamento criminal, sem dúvida, quando realizada sob o contraditório, conforme estabelecido expressamente no art. 155 do CPP. Isso não significa, porém, que o juiz não possa considerar para a formação de sua livre convicção, elementos informativos colhidos na fase de inquérito” (ministra Rosa Weber).

Observe-se como os resquícios do inquisitivismo se misturam com a “formação da livre convicção do juiz”. Na verdade, inquisitivismo e livre convicção são irmãos siameses. Vê-se, aqui, nitidamente, uma contradição insolúvel no enunciado da ministra… Se, primeiro, afirma que o artigo 155 diz “X”, não pode, na sequência, falar que o mesmo dispositivo diz “não X”. O contexto em que utiliza a sintaxe e a semântica é o mesmo; logo, explicitadas as condições de uso das palavras, não se pode alterar o seu significado no interior do mesmo enunciado e da mesma situação hermenêutica.

Mas, vamos adiante:
Essa função persuasiva da prova é a que mais bem se coaduna com o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, previsto no art. 155 do CPP e no art. 93, IX, da Carta Magna, pelo qual o magistrado avalia livremente os elementos probatórios colhidos na instrução, mas tem a obrigação de fundamentar sua decisão, indicando expressamente suas razões de decidir.” (ministro Luiz Fux).

Pronto! Aqui já não é a “livre convicção”, e, sim, o “livre convencimento” (mas, que, no fundo, dá no mesmo).

Mas, o que diz o artigo 155 do CPP? “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”

E, atenção processualistas-penais que lidam também com a Constituição (como vimos, nem todo o mundo faz isso, certo?): A presente redação é da reforma de 2008, substituindo texto originalmente de 1941, elaborado à luz do “Estado Novo varguista”, refletindo um ambiente pouco propício às aspirações democráticas. O dispositivo anterior dizia “secamente” que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação” da prova. Já o de agora, não! Não é o ideal, mas melhorou.

Sendo mais claro: a Constituição não fala em livre convencimento ou livre convicção. E nem dá pistas disso. Quem fala — e mal — em livre apreciação da prova produzida em juízo é o CPP. O termo “livre convencimento” aparece no artigo 200, ao falar da confissão: Art. 200. A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto. Esse dispositivo é de uma contradição hermenêutica insolúvel. O “livre convencimento” é utilizado como uma espécie de “pedra filosofal da hermenêutica” (ou o santo graal da interpretação). Isto porque, por ele — o livre convencimento — pode-se fazer (e afirmar) qualquer coisa… O acusado se retrata e, mesmo assim, o que ele disse pode ser utilizado… porque, afinal, o princípio (sic) do “livre convencimento” é a possibilidade da permanência daquilo que foi dito e depois desdito…

Resumo: a comunidade jurídica não pode se queixar do uso do “livre convencimento”. Contra ele pouco tem sido feito. Talvez porque a comunidade jurídica tenha “livre convencimento” sobre o assunto… Aliás, gostaria de conhecer a doutrina processual penal que a rechaça com veemência. Cartas para a redação desta Coluna hebdomadária.

O contraditório
Volto. Se o contraditório é um princípio — e, definitivamente, é —, então possui densidade normativa. É, pois, deontológico e vinculante. Logo, de que modo uma prova produzida sem respeitá-lo pode estar apta a servir de subsídios para condenar? Se as decisões devem ser fundamentadas, como conjugar isso com o tal “livre convencimento”?! Há uma questão óbvia aqui: se o convencimento é livre (sic), a eventual motivação não é mais que uma capa de sentido posta para escamotear sua concepção realizada livremente, de forma que perderá relevância o fato de se observar ou não a imposição de due process of law.

Atenção: Historicamente, isso remete a três questões. A primeira delas ao movimento “Direito Livre”, que nasce em contraposição ao paleojuspositivismo ou positivismo exegético (cada país europeu teve a sua tese e a sua antítese nessa evolução da razão para a vontade). Livre ali não era o Direito, mas os juízes, que não mais estavam acorrentados à lei (que se pressupunha já conter os juízos pré-estabelecidos). Substituiu-se o “juiz boca da lei” pelo juiz que se “apropriou da lei”. Disso já falei muito aqui nas Colunas.

A segunda é o sistema de provas tarifadas, que remonta ao tempo em que cada modo probatório tinha um valor previamente estipulado (confissão valia X, testemunha Y, perícia Z e assim por diante). Tem-se, também aí, uma externalização do positivismo primitivo, que insistia em entificar os juízos e reduzi-los de antemão, na ilusão de responder perguntas antes mesmo de elas serem feitas. Mas, o contrário disso não deixa de ser positivista, embora por outro viés. Dizer que não há hierarquia entre as provas não significa que possa haver discricionariedade (ou liberdade “cognitiva”) em sua apreciação. Parece elementar, pois não?

Já a terceira diz respeito à (grave) contaminação do processo penal pelo processo civil, mormente naquilo que se chama, desde Bülow, de protagonismo judicial (ler o artigo A juristocracia no novo código de processo civil).

Exemplifico: a palavra da vítima, nos crimes sexuais, adquire valor diferenciado. Correto. E se o momento do suposto crime tiver sido filmado, verificando-se que os fatos ocorreram de maneira completamente diversa do afirmado pela vítima? Que valor terá esse depoimento? Ou seja, dizer que a palavra da vítima nos crimes sexuais é de fundamental importância pode estar correto, mas pode não ser verdadeiro em um dado caso concreto (nesse sentido, ver acórdão 70000193532-TJRS, problemática que trabalho em Hermenêutica Jurídica Em Crise). Há sempre, pois, uma diferença entre o que é “correto” em abstrato e aquilo que é verdadeiro em concreto (na applicatio). Se o convencimento e a apreciação da prova se dá de maneira “livre” (sic) — aliás, essa tese é impossível de provar filosoficamente — pode o magistrado condenar nessas circunstâncias, dando prevalência à palavra da suposta vítima? Claro que não! Portanto, há que se ter muito cuidado com jargões e lendas urbanas.

Decidir e depois fundamentar?
O que importa referir é que, independentemente da raiz histórica, nada justifica que parte da comunidade jurídica ainda se apegue a tais concepções, a não ser a insistência em manter um modelo incompatível com a República e que se torna autorreferencial. Fundamenta-se em si próprio, mesmo que de forma flagrantemente inautêntica. Nessa linha, registro que, em um dos votos, argumentou-se em prol da utilização de elementos de prova colhidos sem o crivo do contraditório em jurisprudência que se valia do “principio (sic) do livre convencimento”. Verbis:
Indícios e presunções, analisados à luz do princípio do livre convencimento, quando fortes, seguros, indutivos e não contrariados por contraindícios ou por prova direta, podem autorizar o juízo de culpa do agente” (AP 481, Relator: Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 08/09/2011).

Permito-me afirmar: Um processo penal constitucional se pauta em um Ministério Público responsável por perseguir provas e acusar quando cabível for, uma defesa plena e com paridade de meios, e um magistrado independente e imparcial que se limite a decidir com base nas provas produzidas sob o crivo do contraditório e amarrado à necessidade de fundamentar cada uma de suas decisões, nos termos da Constituição. É esse seu compromisso e seu dever político de decidir conforme o Direito. Por que estou dizendo isso? É porque, no fundo, corremos o risco, no futuro — pela importância real e simbólica que tem a Suprema Corte —, de os juízes passarem a aproveitar provas colhidas sem contraditório, além de se sacramentar algo que nem está no CPP: O tal do livre convencimento (motivado). Alguém dirá: Mas está na doutrina… Mas a doutrina pode estar tão atrasada? Se a doutrina insiste na existência do livre convencimento ou na livre apreciação da prova, então é porque ela mesma é, por assim dizer, “inconstitucional”… No mínimo, é a-paradigmática. Depois não venham os doutrinadores se queixarem de heterodoxias…[4]

Há uma lógica na discussão da “questão da prova”. Se o sistema é inquisitório, então o juiz é inquisitivista. Trata-se, queiramos ou não, de um “presidencialismo processual”. Nele, o juiz busca provas de ofício, inquire as testemunhas do seu modo (sem obedecer aos ditames claros do artigo 212 do CPP) e coloca a sua subjetividade no lugar das próprias provas. Afinal, se ele “sente” que o réu é culpado, poderá dizer que o conjunto probatório induz a uma conclusão (essa espécie de “método indutivo” pode ser lida no voto do ministro Dias Toffoli, na AP 481, que, paradoxalmente, volta-se contra a própria posição do ministro na apreciação do case mensalão).

Mais. Filosoficamente, não tem qualquer sentido dizer que o livre convencimento, por ser “motivado”, torna-se compatível com a Constituição. Desde quando a motivação-fundamentação supre algo que lhe é condição de possibilidade?

Explico. Se tenho “livre convencimento”, então não tenho compromisso com a efetiva prova dos autos (sou “o sujeito” que “assujeita” o objeto, a coisa, o processo… isso na filosofia tem nome!). Afinal, “minha convicção é livre”. Então, o que estaria por trás disso? Simples: o fato de que “primeiro eu decido e, só depois, vou buscar o fundamento”. Só que isso transforma a sentença em um ato teleológico e não deontológico. Sentença não vem de sentire (desafio alguém, em 2012, a me demonstrar o contrário). Sentença não é escolha. Sentença é um ato de responsabilidade política, como diz Dworkin. Impossível, no plano filosófico, dizer que primeiro se decide para depois fundamentar… É como se fosse possível atravessar o “abismo gnosiológico” do conhecimento e, depois, retornar para construir a ponte pela qual já se passou… Ou, simplesmente, alguém atravessar de uma montanha a outra e, depois, retornar para construir a ponte pela qual já passou. Se alguém decide e depois fundamenta, faz, na verdade, uma teleologia, colocando-se fora do paradigma da intersubjetividade. Portanto, fora da democracia. Lamento informar.

Acreditar no livre convencimento é igualar a decisão ao que Hans Kelsen, no oitavo capítulo de sua TPD, destinava para a decisão jurídica: um ato de mera política jurídica (como se sabe, Kelsen não dava importância ao ato de decidir… para ele, isso não era ciência jurídica). Só que ele era um pessimista moral. Por isso, a sua Ciência do Direito era uma metalinguagem sobre a linguagem objeto… Mas, infelizmente, isso parece ser muito complexo para uma parte da comunidade jurídica.

Portanto, falar em livre convencimento (motivado ou não) é uma contradição performativa. Isso vale também para o processo civil. O que acontece é que a doutrina processual — parcela considerável dela — não ultrapassou os marcos da filosofia da consciência (na verdade, de sua vulgata).

Portanto, para resumir, não posso concordar — com a máxima das máximas vênias — com a seguinte enunciação ocorrida durante a discussão do mensalão, verbis:
O ministro Celso de Mello sustentou que o voto do relator, Joaquim Barbosa, demonstrou com clareza a existência de provas que revelam a presença dos elementos e das circunstâncias que constituem os tipos penais. Mas fez uma ressalva quanto à natureza das provas colhidas em fase pré-processual, que, na sua posição, não podem ser usadas, unicamente, para basear condenações penais. Contudo, afirmou, nada impede que esses elementos quer sejam colhidos no inquérito policial ou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito possam influir no livre convencimento do juiz, desde que não exclusivamente.

Respeitosamente, permito-me discordar e perguntar (não apenas em relação ao mensalão, mas também em relação a qualquer processo e ações penais que tramitem na República): Se as provas (colhidas na fase pré-processual) não podem ser usadas, unicamente, para basear condenações penais, de que modo é possível que essas mesmas provas (agora já com aspas) possam influir no livre convencimento do juiz, mesmo que a frase venha acompanhada com a expressão “desde que não exclusivamente”? O que é que se quer dizer com “desde que não exclusivamente”? Ou elas influem ou não influem. Não é possível X e não X.

Por isso, há que deixar clara a diferença entre o que se entende por “pré-compreensão” — Vorverständnis (de que fala Gadamer) com aquilo que se entende por preconceitos e subjetividades. Mas isso já foi assunto de outra coluna. E será mote para muitas outras. De todo modo, repito o que já disse alhures: parcela considerável da comunidade jurídica foi pega de surpresa com o julgamento do mensalão.

Crise e Krisis
Numa palavra: Que não se acuse o STF de nada. A culpa — ou a responsabilidade disso — não é dele. Nem de longe. O réu, aqui, é a dogmática jurídica, um queijo suíço que insiste em construir concepções ad hoc, a partir de um senso comum teórico que repete e reforça lendas urbanas como “livre convencimento”, “livre apreciação”, etc. Os juristas — (aqueles) inseridos no senso comum teórico — não podem se queixar de nada. E nem alegar surpresas ou heterodoxias, para usar uma expressão utilizada recentemente. Há, pois, uma história institucional que aponta para essa fenomenologia. A propósito, lembro de um folclore que corre em torno de Picasso. Conta-se que um oficial alemão, diante do quadro Guernica, perguntou-lhe se havia sido ele quem tinha feito aquilo. O pintor, então, teria respondido: "Não, foram vocês!". Eu apenas pintei!

O que é preciso lembrar é que a dogmática jurídica dominante é tão frágil, tão estandardizada, que, com ela e a partir dela, é possível sustentar sempre múltiplas respostas sobre qualquer assunto…Sempre há um discurso prêt-à-portêr a disposição do utente. A dogmática jurídica (no modo como é ensinada nas escolas de direito e praticada cotidianamente) é, mesmo, decisionista. Essa é a palavra adequada. Tempos “pós-modernos”… São tempos de relativismo.

Efetivamente, o Direito brasileiro será AM-DM (antes do mensalão-depois do mensalão). Há, pois, uma luta entre mudança e permanência (Wandel und Bestand). Ninguém será ou ficará indiferente ao que será decidido. Crise também pode significar criação. Afinal, ao contrário do que o senso comum imagina, “crise” não quer dizer impasse. Vem do grego krisis e significa mudança! Pois então, vamos lá. Comecemos hoje mesmo na sala de aula…! Viva(mos) a Krisis. Já!


[1] Aliás, registre-se: o artigo 212, que encarna o sistema acusatório desde 2008, simplesmente não vingou porque não teve apoio da doutrina processual penal. Na verdade, a doutrina que mais influenciou para o não cumprimento do art. 212 foi/é a Guilherme de Souza Nucci e Luiz Flávio Gomes, citados, aliás, no leading case do STJ que sepultou a eficácia do aludido dispositivo (6ª Turma, HC 121.215). Deixo anotado isso principalmente em face do contundente artigo escrito por Luiz Flávio (clique aqui para ler), apontando a possibilidade de “anulação do julgamento do mensalão” (sic) por descumprimento de garantias processuais. Claro que a possibilidade disso vir a ocorrer é zero. Mas não é disso que quero falar. Deixo, entretanto, uma pergunta e um lhano repto: Todos os dias os juízes e tribunais da República descumprem o princípio acusatório previsto no art. 212 do CP (com fundamento nos dois doutrinadores). Será que a Corte Interamericana poderia ser chamada à colação para esse cotidiano descumprimento? Poderíamos anular os processos nos quais o juiz, ao invés de somente fazer perguntas complementares (nos exatos termos do art. 212), tomou para si a inquirição? Isso não é inquisitivismo contra legem? Deixo a palavra com o Professor Luiz Flávio Gomes.

[2] Cf. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 122.

[3] Peço que me entendam bem. Trabalho o direito em dois níveis, embora saiba da incindibilidade desses patamares. A la Kelsen, trabalho com uma espécie de metalinguagem (crítica). Ou seja, há o direito realmente existente e o direito como deve(ria) ser. No primeiro, a teorização sofre de forte discriminação, em face da dicotomia senso comum “teoria-prática” (sempre tem alguém para dizer que “ah, em teoria, é assim…, mas, na prática…”). Já no segundo tem-se o direito como um fenômeno complexo. Muito complexo. Nessa “nesga teórica”, trabalha-se o direito a partir de princípios e não de políticas; com respeito à integridade e à coerência; sentença é decisão e não escolha. E assim por diante.

[4] Não resisto em dizer que, quem mais perdeu nesse processo do mensalão, foi a dogmática jurídica. Ela terá que se reciclar. Se, por um lado, não é adequado que os juízes se utilizem do livre convencimento ou livre apreciação e de teses que beiram a algo do tipo  “álibi não provado, réu culpado”, também é verdade que, no próprio mensalão, alguns advogados apostaram em uma “hermenêutica da acomodação” e de um “imaginário relativista”, pensando que bastaria berrar aos quatro ventos que “a acusação era falsa” e que “fatos não há; só há interpretações…”… Ora, se fatos não existem, então é possível negar tudo… até o holocausto. É possível até mesmo sustentar a tese de que a Corte Interamericana pode vir a anular o julgamento…! Nietzscheanamente, tudo é possível…! Talvez a frase relativista de Nietzsche deva ser (re)lida, no direito, hoje, do seguinte modo: só há interpretações porque há fatos (veja-se que foi exatamente isso que fez o Ministro-relator; contrariando ao que disse a defesa, ele foi juntando indícios e “pequenos fatos”, interpretando-os; ou seja, só há interpretações porque há fatos!).

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