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Monteiro Lobato no Supremo, no banco dos réus

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26 de setembro de 2012, 13h56

Spacca
Há vinhos que envelhecem mal. E isso não é um gancho para falar de políticos como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pendurou o traje de estadista para se travestir em âncora de programa partidário da “Rádio 13”, ao lado de Celina e Luciano, na campanha por seu ungido Fernando Haddad. Na atração dessa propaganda política, Lula apela para o linguajar popularesco e ordena ao disc-jóquei: “Pau na máquina, DJ”, ou "Solta a música do Haddad para dar pressão no programa!”. Celina e Luciano fazem o coro grego dessa bobagem, e o apagado Haddad mais parece o Pilatos no Credo. Mas isso fica para outro horário.

Voltemos aos vinhos, pois estava era pensando em escritores. Por acaso nos grandes Graça Aranha (1868-1931) e Coelho Neto (1864-1934), dois dos maiorais de seu tempo, fundadores da Academia Brasileira de Letras e de quem hoje ninguém ouve falar, mesmo o segundo tendo sido eleito “príncipe dos prosadores brasileiros” pela famosa revista O Malho (1902-1954).

A sorte desses escritores não coube a Monteiro Lobato (1882-1948). Não só não teve acesso à Academia fundada com o concurso deles, como não se elegeu príncipe, como Olavo Bilac (“príncipe dos poetas”) ou Coelho Neto, como já se disse. Mas Monteiro foi um dos escritores brasileiros mais lidos de sua época, aqui e lá fora, sobretudo nos países vizinhos. Teve muitas obras editadas em Portugal, França, Inglaterra, Alemanha, Síria, Líbia, União Soviética, Japão, Estados Unidos, Espanha e Argentina.

Em seu livro A Biblioteca à Noite, o argentino Alberto Manguel cita, entre seus livros de “tamanho normal”, os contos completos de Grimm e Andersen e os romances juvenis de Monteiro Lobato — bela companhia! A pesquisadora uruguaia Rosalba Oxandabarat é outra entusiasta das leituras de infância, destacando os dois volumes de Os Doze Trabalhos de Hércules entre suas melhores experiências de estudo de história, levada pelas mãos de Pedrinho, Emília e o Visconde. Rosalba escreveu um belo artigo sobre Lobato publicado por mim anos atrás na revista Diálogos&Debates.

A obra de Lobato é imensa. Reinações de Narizinho, Viagem ao Céu, O Saci, Caçadas de Pedrinho, As Aventuras de Hans Staden, História do Mundo para as Crianças, Memórias da Emília, Emília no País da Gramática, Aritmética da Emília, Geografia de Dona Benta, entre uma dezena de outros. Escritor prolífero, esses títulos dedicados ao público infanto-juvenil constituem quase metade de sua produção. Contista, ensaísta, tradutor, ele escreveu ainda contos (reunidos em Urupês, uma de suas melhores obras para adultos), artigos, crônicas, críticas, tendo dois livros destacados, O Escândalo do Petróleo (1936) e o Presidente Negro, ou o Choque das Raças (1926), ficção científica com visão meio profética (faz lembrar Barack Obama). Paulista de Taubaté, formado em Direito, Lobato foi promotor público, terminando como fazendeiro e editor. Engajado, gostava de se meter em encrencas, como a polêmica com a obra de Anita Malfatti, num artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo com o título de “Paranóia ou Mistificação — a propósito da Exposição Malfatti” (20 de dezembro de 1917).

“Tudo Bem Quanto Termina Bem”, diz o título de uma obra de Shakespeare. Mas não é o que acontece hoje com Lobato. Um mestrando da Universidade de Brasilia, Antonio Gomes da Costa Neto, pesquisador das relações raciais nas práticas religiosas, deu o alarma de que o Caçadas de Pedrinho, de Lobato, continha textos racistas. Seu alerta foi encampado pelo movimento negro — que entrou com o pedido de que a obra fosse excluída do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e de outros programas do governo para a compra de livros e distribuição a estudantes e bibliotecas. O Conselho Nacional de Educação concordou com o pedido e recomendou ao MEC que não adquirisse mais o livro. Um trecho da obra, por exemplo, diz que Tia Nastácia “trepou, que nem uma macaca de carvão, pelo mastro acima”. Em outro, a boneca Emília diz que Tia Nastácia tem “carne preta”. A Academia Brasileira de Letras criticou a atuação do conselho: “A Academia, na linha das suas convicções democráticas, rejeita qualquer tipo de censura. E entendeu a manifestação do conselho como uma forma de censura”.

Isso levou o professor de Literatura Brasileira, Welington Andrade, titular da Faculdade Cásper Líbero, a lembrar de outros fatos, na conversa que tivemos no início desta semana. Um deles é a música Minha Nega da Janela, de Doca e Germano Mathias, gravada em 1974 por Gilberto Gil (e facilmente localizável no YouTube). Diz a letra:

Não sou de briga
Mas estou com a razão
Ainda ontem bateram na janela
Do meu barracão
Saltei de banda
Peguei da navalha e disse
Pula muleque abusado
Deixa de alegria pro meu lado
Minha nega na janela
Diz que está tirando linha
Êta nega tu é feia
Que parece macaquinha
Olhei pra ela e disse
Vai já pra cozinha
Dei um murro nela
E joguei ela dentro da pia
Quem foi que disse
Que essa nega não cabia?

Gilberto Gil, intelectual respeitado, ex-ministro da Cultura, não teve pruridos de racismo ao gravar uma canção de que gostou. E está lá: “Êta nega tu é feia/Que parece macaquinha/Olhei pra ela e disse/Vai já pra cozinha/Dei um murro nela/E joguei ela dentro da pia/Quem foi que disse/Que essa nega não cabia?”

Gil é negro e não se sentiu ofendido com a letra, que poderia ter sido entendida como racista nesse sentido obtuso do politicamente correto que campeia atualmente. Minha Nega da Janela é, sim, uma pérola racista, no sentido apreendido pelo pesquisador Antonio Gomes da Costa Neto. Mas não consta que a afrobaianidade do compositor de Domingo no Parque tenha saído chamuscada com esse atrevimento. Nem se queimaram bandeiras ou apelaram para o Supremo Tribunal Federal para uma audiência de conciliação, como no caso levantado pelo mestrando Antonio Gomes da Costa Neto.

Outro fato: a Editora Hedra lançou há quatro anos as Cartas em Favor da Escravidão, de José de Alencar. A intenção desses textos — panfletos endereçados, na forma de cartas públicas, ao imperador dom Pedro II, que vinha aos poucos aderindo à idéia da causa abolicionista — era defender o trabalho escravo, fator crucial da economia cafeeira de então. São artigos escritos entre 1867 e 1868 nas Novas Cartas Políticas. O Brasil era então o único país independente da América que ainda mantinha essa mancha em sua história. Mas daí a concluir por isso que Alencar foi apenas um autor medíocre, como alguns querem, é de um reducionismo atroz.

Cinquenta anos antes, um dos pais da pátria, José Bonifácio, tinha posição radicalmente oposta: era contra a escravidão e contra o comércio negreiro. Seria o contraponto de um iluminado politicamente correto? Nada disso: o Andrada entendia que a vinda de mais escravos (e por volta de 1820 a população negra era majoritária no país, se comparada com o Censo de 1872) acabaria tornando o Brasil uma terra de afrodescendentes. Era preciso investir na migração de alemães, italianos, eslavos, para branquear a população, pensava Bonifácio. O que não aconteceu: ele foi voto vencido, a proclamação da independência trouxe liberdade apenas para os brancos. Mas ninguém previa o aumento de mulatos, a miscigenação detectada no primeiro Censo do Império, o de 1872. Somos um país mulato.

Trago ainda outra história, ouvida por Welington Andrade nas aulas de Alfredo Bosi. O eminente helenista Jean Pierre Vernant (1914-2007), professor no começo da década de 1970 no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo (de suas muitas obras sobre os clássicos helenistas, foi publicada aqui As Origens do Pensamento Grego. Difel, 1986). Pois Vernant foi dar um curso de estudos culturais nos Estados Unidos abordando os trágicos gregos. Durante uma das palestras, a sala foi tomada por um grupo de feministas exaltadas que encaminhavam a ele um manifesto pedindo sua intervenção para que as próximas edições francesas das obras de Eurípides fossem expurgadas de passagens consideradas misóginas. Vernant se opôs, pois seria impossível macular a obra de um clássico para atender a especificidades históricas.

O discurso da literatura, segundo Welington Andrade, mesmo sendo de alto sentido humanista e humanitário, não tem o compromisso com o registro histórico. Lobato escrevia no contexto de seu tempo, utilizando alguns conceitos até numa visão folclórica, e sem com isso encampar ideias autoritárias ou propositadamente racistas.

Este é um ponto fundamental — o combate ao racismo não se faz com a proibição de livros ou com corte de alguns de seus trechos. Mesmo porque nenhum autor vive ou produz à margem das circunstâncias e contradições de seu tempo.

Caçadas de Pedrinho, de 1933, reflete o racismo da época e também a luta pela afirmação do brasileiro, num esforço de levar leitura às salas de aula. E Lobato —mesmo com ideias racistas — foi um batalhador. Pior seria se a Tia Anastácia tivesse a pele branca — ou fosse uma frau alemã, ao gosto de Bonifácio. No entanto, também não cabe excesso de panos quentes. Como provou o professor Juremir Machado da Silva, Lobato em suas cartas se mostrou mesmo racista. Basta ler este trecho escrito por Lobato para seu amigo Godofredo Rangel, e publicado por Juremir em seu blog: Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível —amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. […] Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança!" (em A barca de Gleyre. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).

A expressão “aquela coisa residual” é mesmo de doer.

Daí o mérito da audiência de conciliação iniciada no Supremo Tribunal Federal dia 11 de setembro sobre a questão, e que prosseguirá no próximo dia 25 de outubro: a obra de Lobato pode ser um instrumento pedagógico para a discussão do racismo em sala de aula e instrumento de luta contra ele. Mas para isso, além dos livros, é preciso formar professores preparados para discutir o tema com os alunos. Esconder o livro é que não resolve nada.

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