Contratações públicas

Vigência do RDC está limitada no tempo

Autor

  • Augusto dal Pozzo

    é advogado vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji) e professor de Direito Administrativo e Fundamentos de Direito Público na PUC-SP.

26 de setembro de 2012, 7h00

Em sessão ocorrida no último dia 13 de setembro, o plenário do Senado Federal aprovou, por meio do Projeto de Lei de Conversão 16, a Medida Provisória 570, que em sua redação original dispunha acerca de alteração da Lei 10.836, de 9 de janeiro de 2004 (diploma legal que criou o Programa Bolsa Família) e a respeito da ampliação dos investimentos no setor da educação.

Por força de uma inclusão realizada pelo relator do aludido projeto de lei, foi aprovada, no texto, uma alteração da Lei 12.462/2011, que disciplina o chamado Regime Diferenciado de Contratações, incluindo uma nova hipótese de utilização desse sistema de contratações: a “realização de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino”.

Não se trata de analisar a aludida inclusão sob o prisma político ou social, já que sob essa perspectiva, não resta dúvida que a construção de novas escolas ou a manutenção das antigas é de importância transcendente.

O que se deve perscrutar, nesse passo, é a questão sob o viés jurídico, especialmente em relação ao tema da vigência da lei no tempo, perspectiva que pouco se tem abordado nos escritos que, de alguma forma, se debruçam sob a temática.

A doutrina desde há muito tempo assevera que, para cessar a vigência de uma lei ou de um dispositivo, não é necessário que nova lei formal revogue a anterior. O preceito que faz cessar sua força obrigatória pode estar implícito na própria lei, bastando, para sua constatação, uma visão sistemática de suas emanações.

Nesse sentido, algumas hipóteses podem ser encarecidas, consoante entendimento doutrinário de Vicente Ráo, registrado em sua reconhecida obra “O Direito e a Vida dos Direitos”: (i) a lei, de maneira expressa, já limita o tempo de sua vigência; (ii) a lei, por sua própria natureza, já possui uma temporariedade, como é o caso das leis orçamentárias que disciplinam um exercício financeiro específico; (iii) a lei, por se destinar a fim certo e determinado, esgota-se quando seu conteúdo é atingido, como o caso da lei que manda pagar uma subvenção e, finalmente, (iv) a lei rege uma situação passageira ou um estado de coisas não permanente, verbi gratia, quando a lei prevê situações de emergência resultantes de calamidades, situações temporárias, dentre outras.

Quando a obrigatoriedade de uma lei cessa por força de outra lei, ocorre a chamada revogação, que pode ser total (ab-rogação) ou parcial (derrogação), devendo, em princípio, o preceito revogatório ou derrogatório advir do mesmo nível hierárquico que editou a norma que se revoga ou que se derroga parcialmente. Dessa maneira, a lei se revoga (ou se derroga) por outra lei; o decreto, por outro decreto e assim sucessivamente.

O Regime Diferenciado de Contratações, em sua redação original, tinha vigência determinada no tempo, uma vez que condicionada à realização dos eventos esportivos que acontecerão no Brasil até o ano de 2016: essa é a interpretação que se depreende, sem maiores esforços exegéticos, do disposto no artigo 1º do Regime Diferenciado de Contratações, desconsiderando, nesse momento, qualquer alteração posterior a sua vigência originária.

Trata-se de lei, como vimos acima, que se caracteriza por trazer em suas próprias emanações, o preceito que faz cessar a sua força obrigatória, de maneira a estabelecer um fim certo e determinado e de maneira explícita, diga-se de passagem.

Não é por outro motivo que a doutrina mais abalizada, como aquela defendida por Maurício Zockun, sustenta que o aludido Regime Diferenciado de Contratações é uma lei especial que veicula norma especial, já que se encontra restrito (i) apenas às relações jurídicas patrimoniais necessárias, direta ou indiretamente, à realização dos já mencionados eventos esportivos; (ii) cuja observância é obrigatória pelos entes públicos que pretendam travar relações patrimoniais volvidas a esses específicos propósitos; (iii) razão porque expressamente afastou o regime geral da Lei Federal 8.666/1993; e (iv) fixou-lhe vigência determinada no tempo, qual seja, até a realização daqueles eventos.

Não se trata aqui de examinar a inconstitucionalidade do RDC por afronta ao disposto no artigo 22, XXVI da Constituição Federal, mas salientar essa especial característica: sua vigência encontra-se limitada no tempo.

O regime foi concebido e estruturado para reger uma situação passageira e, por consequência, com data certa para encerrar sua eficácia. A despeito dessa incontroversa limitação temporal, a Lei 12.688/2012 alterou o RDC para incluir uma nova hipótese de incidência, que transcende a ocorrência dos aludidos eventos esportivos: trata-se de sua extensão para ações integrantes do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), sem data certa para se encerrar.

Como se isso não bastasse, vem agora essa nova proposta,contida no Projeto de Lei de Conversão 16, já aprovada pelo Congresso Nacional, buscando ampliar ainda mais o lapso temporal de sua utilização, para fazê-la incidir na consecução de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino, ou seja, para sempre.

Ora, essas sucessivas inclusões no texto legal acabam conferindo àquele Regime Diferenciado, que serviria a um propósito específico e que detinha uma vigência limitada no tempo, uma inconsistente e indesejada ultra- atividade.

A interpretação que melhor se amolda ao caso, conquanto não seja a ideal, mas que procura superar os entraves de sua inconstitucionalidade, é a de que essas licitações para obras e serviços utilizando o sistema somente poderão ocorrer até o advento das Olímpiadas em 2016: decorrido esse período determinado, suas emanações devem ser imediatamente cessadas.

Não resta dúvida que a Lei de Licitações está a merecer uma reforma, principalmente pela existência de uma série de situações hodiernamente não albergadas por ela. Todavia, é fundamental que tais alterações sejam realizadas da maneira mais democrática e sistemática possíveis, e não com inclusões sucessivas, desordenadas e casuísticas (no caso, até mesmo demagógica, poder-se-ia dizer), que somente têm o condão de conferir perenidade para algo que já nasceu com data certa para se extinguir.

Essa questão traz consigo uma reflexão fundamental —encerrado o prazo de vigência do RDC, poderá ele sobreviver pela mera referência à sua aplicação em casos diversos dos originalmente previstos? Ou será aplicável apenas enquanto mantiver sua eficácia original?

Por todos esses questionamentos é que mais uma vez se confirma a imperiosidade do processo legislativo formal, que certamente elaborado com mais detença inovará na ordem jurídica sem que ocorram os paradoxos apontados, que geram total insegurança jurídica e abalam o Estado de Direito. Mormente quando verdadeiros remendos legislativos são realizados por sucessivas conversões de medidas provisórias, que, pela sua própria característica constitucional, servem para disciplinar situações de relevância e urgência.

Parece-me realmente equivocada a convivência de dois regimes “gerais” de contratações públicas, que não encontram respaldo constitucional para coexistirem. O RDC não pode —pelos mecanismos legislativos utilizados— ressurgir continuamente das próprias cinzas.

Autores

  • Brave

    é advogado, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji) e professor de Direito Administrativo e Fundamentos de Direito Público na PUC-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!