Constituição e Poder

A (des)qualificação da política e o Direito Eleitoral

Autor

24 de setembro de 2012, 13h38

Spacca
Nos últimos dias, fomos informados pela imprensa de que o único candidato a prefeito de uma pequena cidade do interior deste imenso Brasil teve seu registro indeferido pela Justiça com base na chamada Lei da Ficha Limpa. O caso não deve ser único, pois, há alguns meses li reportagem que dava notícia de uma série de municípios nos quais, por força da nova legislação e da jurisprudência mais restritiva, confirmando as piores previsões, com a desistência de um sem-número de candidatos a prefeito dispostos a enfrentar a disputa eleitoral, os eleitores teriam que se satisfazer com uma única opção. Portanto, suponho que nessas cidades não será incomum, com a rigidez que impuseram ao Direito Eleitoral, repetir-se o fenômeno de os únicos candidatos a cargo majoritário serem — como dizem os portugueses — chumbados pela Justiça Eleitoral.

Todavia, pelo menos em tese, os eleitores de municípios sem candidatos não correm o risco de ficar sem prefeito, já que, caso confirmada a decisão judicial de indeferimento de candidatura, o partido poderá indicar substituto. A solução, em situações que tais, contudo, não costuma ser a melhor, pois, como lideranças políticas não nascem em árvores, de regra, os candidatos são substituídos por quem, por assim dizer, esteja mais à mão e, além disso, seja “confiável” (portanto, nem sempre os mais preparados).

Por incrível que pareça, assim que saiu a notícia de municípios com apenas um candidato a prefeito, os moralistas de plantão (sempre eles) vieram saudar a novidade como “conquista” da assim chamada Lei da Ficha Limpa. A existência de municípios com candidatura única, contudo, ao contrário do que pensam os entusiastas da Lei da Ficha Limpa, não é uma boa notícia, mas uma deturpação do sistema eleitoral, pois, em eleição, como em qualquer sistema em que se institui a disputa como método de seleção, é a presença de um maior número de competidores que tende a garantir a qualidade do resultado.

No caso, não precisa ser gênio para entender que, numa eleição, quanto maior for a oferta de projetos em disputa, maior é a possibilidade de se assegurar ao eleitor a oportunidade de qualificar suas escolhas. A ausência de disputa, concretizada em candidaturas únicas, subtrai do eleitor a escolha, pois, em tais casos, ou é o candidato “x”, ou… é o candidato “x”. A escolha em tais casos não existe, mas sim pura imposição de uma única candidatura e de um único projeto político ao eleitor.

A pergunta que os idealizadores e entusiastas da Lei da Ficha Limpa devem se fazer é a de saber se um resultado assim tão heterodoxo era mesmo o que pretendiam. De minha parte, estudando Direito Eleitoral e sistemas eleitorais há alguns anos, acredito que a existência de leis infensas a candidaturas, aliadas a uma jurisprudência ainda mais restritiva, fará diminuir acentuadamente a disposição dos brasileiros de se lançarem candidatos. Aliás, como, no Brasil, o impossível é mesmo apenas uma alternativa, o sonho dos moralistas parece estar se realizando, e a julgar pelo número crescente de municípios que estão encontrando dificuldade no lançamento de aspirantes a cargos públicos, com a possibilidade real de que mesmo esses não credenciem juridicamente os registros de suas candidaturas, logo, logo, teremos que imaginar como promover eleições sem candidatos.

Há algum tempo o professor Marcelo Neves, em seu maravilhoso texto sobre a constitucionalização simbólica, advertia que era preciso distinguir entre eficácia e efetividade da norma. A eficácia refere-se ao programa condicional da norma, de tal maneira que, “se” verificadas as condições e fatos hipoteticamente previstos na norma, “então” devem se seguir as suas consequências jurídicas. Já a efetividadediz com a finalidade do ato normativo (programa finalístico), de tal ordem que a norma só será efetiva, neste sentido, se, mesmo obedecida, a finalidade que orientou a sua criação alcançar ao final concretizar-se[1].

No exemplo do grande professor, uma legislação anti-inflacionária, isto é, que tenha sido gerada com o específico propósito de vencer a inflação, pode ser eficaz, mas não se mostrará efetiva se, apesar de aplicada, não conseguir a redução da inflação. Essa legislação será eficaz, mas não efetiva. Aliás, além de inefetiva, quando, apesar de observada, não provocar qualquer alteração no quadro inflacionário, a lei poderá, inclusive, como experimentamos no Brasil, num passado não tão remoto, em muitos planos anti-inflacionários, mostrar-se anti-efetiva, quando, sendo observada, provocar efeitos contrários àqueles originalmente pretendidos. Como exemplo, são referidas situações nada incomuns, em que a legislação anti-inflacionária, por exemplo, além de não refrear a inflação, acaba provocando o aumento de preços[2].

Pois bem, suspeito que qualquer legislação “ficha limpa”, sobretudo, quando se mostre muito intensa e profunda em sua intervenção no processo eleitoral, além de inefetiva poderá revelar-se anti-efetiva, isto é, além de não purificar moralmente o ambiente político, como era a boa intenção de seus idealizadores, poderá, ao contrário, deformar a sua natureza, rebaixando tanto a qualidade moral dos candidatos como também sua capacidade intelectual. As razões para isso não são difíceis de compreender: é que de, de um lado, a legislação “ficha limpa”, ao tutelar o eleitor, rouba do processo eleitoral um de seus aspectos mais importantes, que é, precisamente, sua capacidade pedagógica (como tudo na vida, uma das mais eficazes formas de aprendizado é precisamente através do erro); de outro lado, a legislação “ficha limpa” cria, de forma indiscutível, na sociedade, a falsa e terrível impressão de que o processo eleitoral e a esfera política são ambientes necessariamente frequentados por pessoas moralmente pervertidas, afugentando os jovens de seu domínio e, com isso, eliminando as mais qualificadas vocações de homens públicos. Como professor de Direito, observo com preocupação o fato de que, num futuro não tão distante, o Brasil poderá passar por uma séria escassez de recursos humanos em seus quadros políticos, já que entre meus alunos passou a ser ofensa grave supor que algum deles possa se converter para a política.

O nefasto resultado dessa ordem de coisas é fácil de prever: o processo eleitoral e a esfera política da sociedade ficarão cada vez mais a mercê de pessoas pouco recomendáveis moralmente e pouco vocacionadas para a política. Quando imaginamos que, desde os gregos e em todo o pensamento que transpassou a filosofia política do passado e do presente, nunca houve uma função mais dignificante do que a do homem político, há muito quem tem responsabilidade em nosso país deveria deixar de lado os preconceitos que inspiraram o moralismo da tal Lei do Ficha Limpa e começar a preocupar-se com os seus já evidentes resultados.

Não obstante o terrível diagnóstico, nada parece, contudo, indicar que aqueles que criaram a Lei Complementar 135 (a chamada Lei do Ficha Limpa) e, sobretudo, aqueles que têm o difícil múnus de aplicá-la estejam adequadamente preocupados com as suas consequências de fato (e não as idealmente pretendidas). Pelo contrário, ao que se ouve e se presencia, a notícia da diminuição de candidaturas parece mesmo concretizar as melhores expectativas daqueles que saudaram o projeto que se converteu na Lei Complementar 135 de 2010 (Ficha Limpa), ou seja, o sonho de presenciarem cada vez mais eleições com um número sempre menor de candidatos. A alguns parece mesmo ocorrer a ideia de que o mundo ideal, paradoxalmente, seria aquele em que as eleições pudessem existir sem políticos e sem candidatos.

O fato é que, para quem parte do preconceito de que o que corrompe e estraga a eleição é o político, a legislação ficha limpa, sem surpresa, vem confirmando as suas mais auspiciosas profecias e afastando da competição eleitoral uma série de lideranças tradicionais. Contudo, em substituição, ao invés de qualificar a disputa, tal legislação apenas impõe aos eleitores candidatos de ocasião, pois, os partidos, sem opção, substituem as lideranças afastadas por pessoa confiáveis, normalmente, parentes dos políticos afastados, com o quê, além de entregar o governo a pessoas despreparadas, não se opera qualquer modificação no quadro ético da política nacional.

Só resta mesmo rezar para que pelo menos um dos resultados positivos que nos foram prometidos acabe por se concretizar, isto é, que pelo menos aqueles que sejam eleitos, ainda que por temor da severa legislação, acabem se convencendo de que não vale a pena agir contra o direito e a moralidade no exercício de cargo público. Infelizmente, nada na experiência humana próxima ou distante nos faz otimistas de que essa é uma promessa que uma tal legislação poderá cumprir junto aos eleitores. Onde os costumes humanos, políticos ou não, se alteraram, as causas foram historicamente muito mais a educação e a disputa livre de ideias do que a imposição e a restrição legislativa de comportamento. É esperar pra ver.


[1]Marcelo Neves. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, 47-49.

[2] Marcelo Neves. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, 47-49.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!