Segunda Leitura

A passagem de Eliana Calmon pela Corregedoria do CNJ

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de setembro de 2012, 8h00

Spacca
Terminou no dia 9 passado o mandato da ministra Eliana Calmon junto à Corregedoria Nacional de Justiça. O cargo, por si só, é de grande relevância. No entanto, a personalidade forte da magistrada deu-lhe colorido especial. Foram dois anos de atividade intensa, com notícias quase diárias, parte delas bombásticas.

Juíza federal de carreira, Eliana Calmon tomou posse em 1979 em Salvador (BA) e em 1989 foi promovida ao então criado TRF da 1ª Região, com sede no Distrito Federal. Em 1999 foi nomeada ministra do STJ e, à época, não hesitou em dizer que entre seus padrinhos políticos estava Antonio Carlos Magalhães, polêmico líder baiano. Quis ela deixar bem claro que essas nomeações são políticas, rompendo com a hipocrisia dos que sabem ser assim mas se negam a reconhecer publicamente.

No STJ a ministra deparou-se com ações penais da competência originária daquela Corte, muitas delas contra desembargadores de Tribunais Estaduais, Federais ou do Trabalho. Impressionada com o fato, verdadeira perda da inocência, ao assumir na Corregedoria Nacional disse alto e em bom som que sua gestão teria como meta principal combater a corrupção.

Registre-se, porém, que antes dela o ministro Gilson Dipp já havia tomado medidas rigorosas, que geraram o afastamento de vários magistrados, inclusive um do STJ. Portanto, o rigor seria a tônica, não como inovação, mas sim como continuidade. A diferença era só de estilo.

Ocorre que, setores mais conservadores da magistratura, desgostosos com as investigações e, mais do que tudo, pela divulgação dos fatos, ensaiaram oposição às iniciativas mais radicais da corregedora nacional. E como forma de diminuir sua força, passaram a sustentar a tese de que a Corregedoria Nacional só poderia agir supletivamente à ação das Corregedorias locais. Em outras palavras, primeiro a Corregedoria a quem estivesse subordinado o juiz investigaria e só depois, se ela fosse omissa ou benevolente, entraria a Nacional.

Os autores desta tese, porém, nunca deixaram claro que os desembargadores não se sujeitam às Corregedorias de seus tribunais. Esta, por força de lei, só investiga juízes de primeira instância. Por isso, desembargadores ficavam fora de qualquer investigação, exceto se, excepcionalmente, um presidente de tribunal, em ato de coragem e independência, levasse ao Plenário ou Órgão Especial um pedido de abertura de sindicância.

Óbvio que isto sempre foi e sempre será raro. A tradição era convidar o suspeito para uma conversa particular e recomendar-lhe que pedisse a aposentadoria. Mas isto só dava resultados no passado, quiçá até os anos 1980, quando o pudor era mais acentuado entre os detentores de cargo público. A sugestão de aposentadoria, de uns anos para cá, não era apenas desatendida, era repelida com veemência. A vergonha ou o medo de uma sanção administrativa deixaram de existir.

E assim iniciou-se uma luta titânica. A ministra Eliana Calmon, vendo o risco de ver a Corregedoria perder no STF seu direito de investigar concomitantemente com as Corregedorias locais, socorreu-se da mídia. Com frases de efeito, atraiu a atenção de todo o país. Tornou-se popular, querida e respeitada. E o STF, na linha do anseio da sociedade, acabou adotando esta tese.

Tudo isto, narrado com simplicidade, talvez não dê a dimensão do que se passou. O embate foi de meses, incluindo dezenas de entrevistas, declarações bombásticas (v.g., bandidos de toga), vazamento de sigilo em processos administrativos e representação criminal de associações de magistrados contra a corregedora. Mas o STF manteve a autonomia da Corregedoria para investigar e do CNJ para processar, direta e autonomamente, qualquer um dos 16.000 magistrados brasileiros, exceto os 11 ministros do STF, que a ele não se sujeitam.

Isto foi bom. Mas como tudo na vida, teve o seu preço. O desgaste da imagem do Judiciário foi enorme, quiçá o maior de sua história, desde a proclamação da Independência. O descrédito gerou desilusão. Excelentes magistrados, com muito a dar pelo Brasil, contam ansiosos os dias que faltam para a aposentadoria. Jovens bem formados procuram outros concursos públicos. Outras carreiras ostentam direitos que aos juízes são negados, aumentando a insatisfação (p. ex., membros do MP recebem mais um terço quando acumulam funções, mas juízes nada recebem ao responder por duas varas).

Mas, será tudo isto culpa de Eliana Calmon? A resposta é não. A culpa foi de todos aqueles praticaram ou que deixaram o mal alastrar-se por seus tribunais. Os que fecharam os olhos diante de desonestidades, favorecimentos ou desídia. Estes é que devem ser apontados como os grandes culpados. Eliana Calmon foi apenas a pessoa que exteriorizou o que estava acontecendo. Se exagerou nas entrevistas, nas comparações, é um outro problema. Talvez fosse a única forma de chamar a atenção. Mas — repito — errado foi o que fizeram tantos magistrados em seus tribunais, alguns no exercício da Presidência ou da Corregedoria.

Além disto, há uma face dos dois anos da corregedora Calmon que passaram despercebidos à população. Não tiveram o merecido realce porque o que interessava era noticiar as discussões, as polêmicas, as frases fortes. Mas foram importantíssimos. Iniciativas dela e dos magistrados e servidores que a auxiliaram no período. Vejamos algumas.

a) Desmanche e retirada de aviões dos aeroportos, terminando com dezenas de anos de burocracia e inércia;

b) Projeto ‘Justiça para Todos’, através do qual muitos processos complexos, sem andamento ou tumultuados, foram julgados;

c) Regularização do pagamento dos débitos das Fazendas Públicas por precatórios em vários tribunais, rompendo com um sistema que mesclava corrupção ou incompetência na gestão administrativa;

d) Inspeção em vários tribunais, apontando formas de agilizar a prestação jurisdicional, além, evidentemente, de medidas disciplinares;

e) Mutirão no TRF da 3ª Região, com julgamento de 80.360 processos e alteração de formas de trabalho anacrônicas. Para ficarmos em apenas um exemplo, vários processos de usucapião aguardavam há cerca de 10 anos um despacho: “Vista ao MPF”. Ora, isto pode ser feito de ofício pelo setor de distribuição, mediante simples portaria da Presidência do tribunal. Hoje a situação do TRF-3 está bem melhor. Igual medida foi tomada no TRF da 1ª Região, também com bons resultados;

f) Elaboração de Manual de Apreensão de Bens, editado pela Infraero e colocado à disposição dos magistrados de todo o Brasil em CDs, tudo para minorar o grave problema de bens que apodrecem nos porões dos Fóruns Brasil afora.

Em suma, no balanço de sua gestão, muito fez a ministra Eliana Calmon pelo Judiciário brasileiro, mesmo sendo certo que disto tenha resultado forte abalo no conceito da magistratura brasileira. Agora é olhar para a frente com otimismo e resgatar o Judiciário a boa fama que sempre gozou na sociedade brasileira. E neste particular com a vantagem do STF estar se conduzindo de forma exemplar na Ação Penal 470, passando à sociedade a imagem de respeito e independência que dele se espera.

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