Bancos e Justiça

Financiamento de arbitragem deverá chegar ao Brasil

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23 de setembro de 2012, 11h26

Uma figura oculta e potencialmente ameaçadora dos procedimentos arbitrais, o financiador, foi um dos temas que o XI Congresso Internacional de Arbitragem, em Porto Alegre, discutiu na semana passada. Em muitos casos, quem aparece como financiador arbitral é um banco que, às vezes, compra o crédito e, em outras, joga o direito que está sendo discutido no litígio em um fundo de investimento.

António Pinto Leite, árbitro e advogado em Portugal, explicou que o financiamento de partes em litígio por terceiros teve início nos anos 80 na Austrália. Hoje, já é uma ‘‘indústria financeira’’ muito forte nos Estados Unidos, Reino Unido, Inglaterra, Áustria, Suíça e Alemanha, com potencial de mercado de US$ 80 a US$ 100 bilhões.

Embora desconhecida no Brasil, esta prática deve chegar por aqui no curto prazo, em função da globalização dos negócios, previu o árbitro português, que defende uma regulamentação desta prática. ‘‘Um dos aspectos que se discute é se a parte que está sendo financiada não teria o dever de revelar o fato. Às vezes, ela não pode cumprir com a obrigação de revelar, já que os contratos de financiamento trazem uma cláusula de confidencialidade’’, emendou.

Para Pinto Leite, a arbitragem tem que se defender deste tipo de projeto financeiro, porque um terceiro passa a ter o controle do contencioso, comprometendo o due process (devido processo legal) e a imparcialidade. Afinal, na pratica, o financiador tem o poder de nomear o advogado, escolher o árbitro, decidir se vai haver acordo ou não, definir a estrategia de prova – enfim, se ‘‘adonar’’ do processo arbitral.

Outro problema grave, segundo o especialista, é quando o financiador arbitral abusa do direito de ação. Como ele pode estar oculto, é difícil identificá-lo, o que inviabiliza sua responsabilização na esfera cível. Pinto alertou, por fim, que o financiador arbitral pode levar a um flagrante desequilíbrio processual entre o autor da ação e o requerido. Tanto isso é verdade que esta mesma indústria de derivativos chega a oferecer produtos financeiros para os defenders – a parte requerida num processo arbitral – para equilibrar a relação.

Participaram das discussões a deste painel José Emílio Nunes Pinto, árbitro, advogado em São Paulo e vice-presidente da Corte Internacional de Arbitragem da CCI; John Rooney, advogado em Miami; e Leandro Rennó, professor da PUC-MG. No final dos trabalhos, o diretor do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), advogado e árbitro Luciano Timm, um dos formuladores da pauta do Congresso, uma entrevista exclusiva para a revista Consultor Jurídico.

Leia a entrevista

ConJur – O que se discute sobre os aspectos econômicos neste XI Congresso Internacional de Arbitragem?
Luciano Timm – A ideia é juntar Direito e Economia no que diz respeito à arbitragem. O ponto é: qual é o papel do Direito para o desenvolvimento de um país? O que muitos estudos apontam, e a prática vem mostrando isso, é que um país não precisa só de estrutura física, mas de infraestrutura legal, para receber investimentos. E qual é a preocupação dos executivos de multinacionais – muitas brasileiras – e do Banco Mundial? Dotar países como Angola e Moçambique, dentre outros, de infraestrutura jurídica mínima para receber investimentos. É preciso uma Constituição, um Código Civil, de cortes minimamente independentes, para resolver toda uma série de litígios que deriva destas relações comerciais. A Vale, recentemente, enfrentou uma rebelião numa das minas que explora na África. Esta contenda poderia ter sido resolvida num tribunal do trabalho, se houvesse na região. Como não tem, houve um confronto de força. A arbitragem faz parte desta estrutura legal, para se habilitar a receber investimentos.

ConJur — E por que esse imperativo?
Luciano Timm – Porque ela é vista pelo estrangeiro como foro neutro. Digamos que uma empresa americana vá fazer um contrato com uma empresa brasileira. Se as controvérsias deste contrato fossem parar no Judiciário brasileiro, os americanos iriam se sentir desconfortáveis, porque o juiz é brasileiro. Ora, se nem em jogo de futebol a gente quer que o árbitro seja da nacionalidade de um dos times em campo, não se espera que ele seja inclinado para um das partes, mas deve-se observar a máxima de César (imperador romano): tem de ser honesto e parecer honesto. O foco do programa do Congresso é discutir se a arbitragem tem um papel na geração de investimentos e de valor econômico. E tudo está se encaminhando para se entender que a arbitragem tem, sim, um valor econômico para as partes. 

ConJur – As demandas de empresas, por envolver informações estratégicas, sairão totalmente da esfera judiciária estatal, com o passar do tempo? É uma tendência no Brasil?
Luciano Timm – Sim, e isto já aconteceu nos Estados Unidos. Lá, houve uma grande diminuição de precedentes judiciais por conta dos assuntos não irem a público. É uma prova de que quem tem mais interesse em resolver o litígio são os próprios litigantes. É importante ter em conta que, quando um litígio vai a julgamento no Judiciário, quem paga a conta é a população, por meio dos tributos arrecadados pelo estado. Agora vem a questão: o quê toda a população tem a ver com aquele litígio privado? Então, se a gente vive num momento de escassez —faltam presídios, atendimento à saúde etc —, acho escandaloso esse custo com o sistema Judiciário. A máquina judiciária estatal consome 7% da tributação. A saúde e a educação não ganham isso. Uma sociedade não vive sem saúde e sem educação. Litígios que não precisam ir para o Judiciário, e que a sociedade tem pouco interesse, devem ser resolvidos pela arbitragem. Então, estes estão achando um caminho fora do sistema público.

ConJur – Há um cálculo sobre os custos dos julgamentos? O que determina que algumas demandas sigam para arbitragem e outras para o Judiciário? Dá para calcular isso?
Luciano Timm – Este cálculo pode ser feito, sim. A cláusula arbitral diz que, de certa maneira, a parte renuncia à jurisdição estatal. É como o hino do Flamengo – ‘‘uma vez Flamengo, Flamengo até morrer’’. Ou seja, não dá para se arrepender. Então, se eu fizer mil contratos com cláusula arbitral, significa mil processos a menos no Poder Judiciário. Simples. Hoje, as empresas usam uma espécie de ‘‘piso’’ para decidir quando uma determinada demanda deve ir para a arbitragem ou o ‘‘teto’’ para o Poder Judiciário. Em algumas empresas, este valor fica em R$ 300 mil – acima, vai para arbitragem, e abaixo fica no Judiciário. Outras empresas fixam o limite em R$ 500 mil.

ConJur – É um valor significativo, não?
Luciano Timm – Qualquer contrato comercial hoje em dia – franquia, distribuição, agência, licenças – é superior a estes valores. Então, de certa maneira, é um retorno ao passado. O Brasil, antigamente, possuía tribunais mercantis, que foram unificados no Império. Na verdade, talvez tenha sido uma má ideia unificar a jurisdição. Talvez o comércio exija uma jurisdição diferente. Houve épocas em que os advogados eram proibidos de atuar em tribunais mercantis, porque os comerciantes achavam que eles atrapalhavam demais a solução da controvérsia.

ConJur – Por quê?
Luciano Timm – Os advogados tendem a se enamorar das formas, das regras, e esquecem de resolver o problema. Esquecem do custo.

ConJur – É possível estender os conceitos do Law and Economics — a Análise Econômica do Direito — para a resolução de conflitos de massa, como relações de consumo, por exemplo?
Luciano Timm – A Análise Econômica do Direito trata de utilizar ferramentas da ciência econômica para observar problemas jurídicos (…). O grande problema do jurista é que ele estuda o texto legal, e não a realidade. O jurista não tem nem mecanismos de observação da realidade. O economista e o sociólogo têm, porque fazem pesquisa de campo. Os doutorados em Direito não são empíricos, não têm questionário. Atuam sobre a forma, sobre o que diz a Constituição, como esta se relaciona com o Código de Defesa do Consumidor (CDC) etc.

ConJur – Então, o advogado atua fora da realidade?
Luciano Timm – Fora da realidade. Há um certo descolamento, no Brasil, das Faculdades de Direito da realidade.

ConJur – E o curso de Economia é novo no Brasil…
Luciano Timm – Os cursos de Economia se consolidaram no Brasil após a década de 50. Aliás, o primeiro economista foi o escocês Adam Smith (1723 -1790), que era professor da Faculdade de Direito. Antigamente, a Economia era ensinada nos cursos jurídicos. As duas primeiras Faculdades do Brasil (em São Paulo e Olinda-PE) foram de Direito. Os juristas ensinavam Economia Política. San Tiago Dantas, um grande ministro da Fazenda de Getúlio Vargas, era jurista. Então, a economia se consolida depois. Por isso é que há esta colisão entre o ‘‘país dos bachareis’’ e o ‘‘país dos economistas’’.

ConJur – Hoje, esta reaproximação acaba ajudando os negócios e o desenvolvimento?
Luciano Timm – No mundo tão complexo de hoje, é muito difícil tratar as coisas separadamente, porque elas andam juntas.

ConJur – Voltando um pouco: há excesso de processos no Judiciário porque o gaúcho é muito brigão?
Luciano Timm – Pesquisa universitária, feita com o apoio do Conselho Nacional de Justiça, diz que esta ideia não é correta. Não foi o que encontramos na pesquisa. Através da Análise Econômica do Direito, encontramos quatro motivações que o leva a litigar. A principal motivação, se é que posso dizer isso, é o baixo custo de acesso. Todo mundo entra. Como não tem custo, não custa litigar. Alguns juízes dizem que há uma indústria do dano moral, por exemplo, mas isso não é tão correto. Na verdade, a própria jurisprudência estimula isso. E quem fixa a Assistência Judiciária Gratuita (AJG), que permite ao autor da ação litigar de graça, é o Judiciário. Então, no Brasil, se culpa muito as leis. Mas o que interfere, mesmo, é como se interpreta as leis – e quem faz isto é o Judiciário, e não o legislador.

ConJur – Teria outros exemplos? Em outros países também é assim?
Luciano Timm – Temos que pensar também no custo dos direitos, e não só no Brasil. Por exemplo: será que o desemprego da Espanha não tem relação com a legislação trabalhista? Não fiz esta pesquisa, mas apostaria que sim. Se o empresário tem dificuldade de demitir não contrata tanto. Por isso, o desemprego é menor em países anglo-saxônicos, pela maior flexibilidade da lei. Outro exemplo são os direitos constitucionais. Quando se garante uma série de direitos, como acontece na Grécia, e há não dinheiro para pagá-los, como se faz? Então, o jurista tem que acordar, porque é preciso pensar quem vai pagar a conta destes direitos. Resumindo: direito tem custos, e não dá em árvores.

ConJur – Quais são os níveis de liberdade e de segurança jurídica no Brasil?
Luciano Timm – No Brasil, a liberdade é razoável, mas o grau de burocracia exagerado, impondo custos quase que inaceitáveis. O custo da nossa burocracia torna nossa indústria pouco competitiva em alguns setores. A indústria tem de procurar uma eficiência muito grande para poder compensar a ineficiência causada pela burocracia ou de infraestrutura. Somos muito eficientes para plantar e colher a soja, mas não para colocá-la no porto. O Chile, por exemplo, tem mais negócios, justamente porque sua burocracia é mais eficiente e menos corrupta. Temos de ter em mente que, no sistema capitalista, quem gera riqueza são as empresas e os indivíduos. O estado, no máximo, redistribui a riqueza. Logo, insuficiência de empresas pode significar pobreza. Tem uma economista marxista que diz: ‘‘pior que ser explorado pelo capitalismo é não ter tido a oportunidade de ser explorado’’. A África, por exemplo, agora está começando a ser explorada pelo capitalismo. E aí, é preciso um estado mínimo. E que garanta a propriedade e respeite os contratos.

ConJur – O mundo dos negócios tem toda uma ética própria, seja no Brasil, Estados Unidos ou num país da Ásia. Com a globalização, este ‘‘clima institucional’’ vai se impor sobre a legislação das nações?
Luciano Timm – A literatura fala muita em lex mercatoria, Direito que é fruto das relações do comércio internacional. A economia é o campo da sociedade que produz riquezas. Não há dúvida que ela conduz. Basta observar, por exemplo, o que mudou, nos âmbitos jurídico e social, com a entrada da mulher no mercado de trabalho. Isso foi uma exigência econômica, e não pura e simplesmente luta feminista. Em camadas sociais mais pobres, os dois trabalham. Então, não se pode dizer que a mulher se ‘‘independentizou’’ na periferia. Ela simplesmente precisa trabalhar para pagar as contas. Na classe mais rica, as mulheres ficam na academia de ginástica o dia inteiro, pois tem o mínimo garantido em casa. Não haveria a Lei do Divórcio se a mulher não conquistasse sua independência econômica. Então, a economia vai abrindo, por si, um sistema gerador de riquezas e satisfação de necessidades. E a sociedade vai abrindo exigências e colocando novas demandas que, depois, o Direito vai atender.

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