Proteção do inocente

A racionalidade do sistema recursal e o Habeas Corpus

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado criminalista mestre e doutor em Direito Penal pela USP ex-diretor do Conselho Federal da OAB; ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (95/96); membro fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e professor de Processo Penal da Faap.

22 de setembro de 2012, 16h30

Tornaram-se comuns no processo penal as referências à necessidade de racionalização do sistema recursal e à banalização do manejo do Habeas Corpus. O Superior Tribunal de Justiça, em alguns julgados, chegou a proclamar que o writ não pode se substituir ao Recurso Especial. Eloquente a propósito o decidido no HC 201.483, relatado pelo ministro Gilson Dipp. Agora, mais recentemente, também para racionalizar o sistema recursal e se impedir o manejo indiscriminado do writ, noticiou-se que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal não vai mais conhecer Habeas Corpus originário, mas tão somente Recursos Ordinários Constitucionais (RHC). 

Ao menos desde 1941, dualidade recursal não é algo estranho ao processo penal. A negativa de fiança, por exemplo, pode ser atacada tanto pela via do Recurso em Sentido Estrito como pelo HC. Ademais, a instrumentalidade das formas e meios de atuação tem eficácia de modo que “perde relevo a inadmissibilidade do RE da defesa, por falta de prequestionamento e outros vícios formais, se, não obstante – evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de Habeas Corpus de ofício (v.g., RE 273.363, 1ª Turma, Sepúlveda Pertence, DJ 20.10.2000)”[1] . Daí porque é princípio sedimentado na jurisprudência brasileira que a recorribilidade da decisão ou a efetiva pendência de recurso contra eles não inibe a admissibilidade paralela do Habeas Corpus (STF, HC 82.968/SP, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ 20.06.2003), No ponto, a jurisprudência mais recente do STF é precisa: “O eventual cabimento de recurso especial não constitui óbice à impetração de Habeas Corpus, desde que o direito-fim se identifique direta e imediatamente com a liberdade de locomoção física do paciente” (HC 110.118, relator para o acórdão, ministro Joaquim Barbosa, DJe 8/8/12). Aliás, em outros tempos, o próprio ministro Dipp assim dizia: “A existência de recurso próprio ou de ação adequada à análise do pedido não obsta a apreciação das questões na via do HC, tendo em vista sua celeridade e a possibilidade de reconhecimento de flagrante ilegalidade no ato recorrido, sempre que se achar em jogo a liberdade do réu”[2]

Para se comprovar o raciocínio, vejamos um caso recente que ilustra a tese aqui defendida. No HC 132.450, relatado pela ministra Maria Thereza, a ordem foi concedida nos seguintes termos:

“HABEAS CORPUS. ARTIGO 351, PARÁGRAFO 3º, DO CÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO. APELAÇÃO JULGADA. RECURSO ESPECIAL NÃO ADMITIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO CONHECIDO. WRIT POSTERIOR AO TRÂNSITO EM JULGADO. INVIABILIDADE. VIA INADEQUADA. DOSIMETRIA DA PENA. ILEGALIDADE FLAGRANTE. PENA-BASE EXCESSIVA. REGIME PRISIONAL NÃO FUNDAMENTADO. REDUÇÃO DA REPRIMENDA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. ORDEM CONCEDIDA”.

“1. É imperiosa a necessidade de racionalização do Habeas Corpus, a bem de se prestigiar a lógica do sistema recursal. As hipóteses de cabimento do writ são restritas, não se admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso cabível, vale dizer, o especial.

2. Para o enfrentamento de teses jurídicas na via restrita, imprescindível que haja ilegalidade manifesta, relativa a matéria de direito, cuja constatação seja evidente e independa de qualquer análise probatória.

3. Hipótese em que há manifesta ilegalidade no tocante à pena-base, fixada no triplo do mínimo legal em razão de uma circunstância judicial desfavorável, o que se mostra desproporcional. O regime prisional também deve ser abrandado, embora as consequências do delito justifiquem a imposição do semiaberto” (Dje 5/9/12).

Havia ilegalidade manifesta na fixação da pena, mas o Recurso Especial não fora admitido e o Agravo improvido. A prevalecer o raciocínio mais estreito, como tantas vezes se vê em relação à aplicação da Súmula 691 do STF, o habeas não caberia porque o recurso previsto é o Especial. Com isso a injustiça campearia e a ilegalidade sobreviveria. 

Francamente, o formalismo não pode imperar em matéria que atina com a liberdade e a própria dignidade humana. Repito o que disse o ministro Celso de Mello no voto que proferiu no HC 110.118: “Tenho para mim que a decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça, da lavra do eminente ministro Gilson Dipp, mostra-se extremamente restritiva quanto à utilização do “Habeas Corpus”, culminando por frustrar a aplicabilidade e a eficácia de um dos remédios constitucionais mais caros à preservação do regime de tutela e amparo à liberdade de locomoção física das pessoas”.

Em resumo: “Na apreciação de HC, o órgão investido do oficio judicante não está vinculado a causa de pedir e ao pedido formulados. Exsurgindo das peças dos autos a convicção sobre a existência de ato ilegal não veiculado pelo impetrante, cumpre-lhe afastá-lo, ainda que isto implique concessão de ordem em sentido diverso do pleiteado. Esta conclusão decorre da norma inserta no parágrafo 2º do artigo 654 do Código de Processo Penal, no que disciplina a atuação judicante em tal campo independentemente da impetração do Habeas Corpus. Precedentes: HC 69.237 e HC 68.172, relatados pelos ministros Carlos Velloso e Marco Aurélio, julgados pela 2ª Turma em 8 e 16 de junho de 1992, respectivamente”[3] .

Na prática, a frustração da aplicabilidade do HC, não apenas permitirá a sobrevivência de inúmeras ilegalidades, como fortalecerá os tiranetes que vez por outra aparecem na Justiça Brasil afora. É isso que se pretende para o século XXI como padrão de Justiça? É de se pensar como teriam ficado os famigerados casos em que os advogados não conseguiram ver autos de inquéritos policiais com seus clientes presos nas operações desencadeadas pela Polícia Federal. 

Enfim, não faz sentido a dita “racionalização”, que mal esconde a existência de uma “jurisprudência defensiva”, consistente na criação de “pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos”[4], como denunciou o saudoso ex-presidente do STJ, ministro Humberto Gomes de Barros. Além do mais, o esforço de se barrar as impetrações originárias, compromete a assim chamada “instrumentalidade das formas”, aliás, sempre invocada para flexibilizar os direitos e garantias dos acusados. 

Para concluir esse primeiro tópico, é sempre bom reavivar o que disse o ministro Gilmar Mendes no HC 91.514-1, ao conceder a ordem no caso da Operação Navalha para revogar a prisão preventiva de um dos investigados, quando advertiu que “a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole autoritária”. Em outra passagem, realça que a escorreita aplicação das garantias constitucionais “é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie[5].

No que diz com a inadmissibilidade do HC substitutivo, os julgados da 1ª Turma do STF (HCs 104.045 e 109.956), cujos acórdãos ainda não foram publicados, só se pode dizer que chega a ser espantosa mudança da jurisprudência. Explica-se.

Sob a ditadura de 1964, o Habeas Corpus só veio a ser estreitado em 1968 com a promulgação do Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968. O artigo 10 desse diploma determinou: “Fica suspensa a garantia do Habeas Corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. De fato, apesar da clara disposição legal, só mesmo nos crimes políticos, ofensivos à segurança nacional, é que se restringiu o emprego do HC. Nos demais casos, desde que não houvesse repercussão à segurança nacional, o Habeas tinha trânsito regular.

Mas foi com o AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, que se mudou o cotidiano do Habeas no que diz com o seu processamento. Das decisões denegatórias proferidas em HC pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pelo Tribunal Federal de Recursos (lembremo-nos que os regionais federais só vieram com a Constituição Federal de 1988) era perfeitamente possível impetrar-se Habeas Corpus originário substitutivo do Recurso Ordinário Constitucional (RHC). Com isso ganhava-se em termos de celeridade. Todavia, com o AI-6 introduziu-se um complemento ao disposto no artigo 114, II, a, da Constituição Federal, de tal modo que o dispositivo passou a ter a seguinte redação:

"Artigo 114. Compete ao Supremo Tribunal Federal:

II- Julgar, em recurso ordinário:

a) Os Habeas Corpus decididos, em única ou última instancia, pelos tribunais locais ou federais quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário."

Com a vedação da utilização do Habeas substitutivo do RHC a tramitação do remédio heroico passou a ser mais lenta, pois interposto o recurso no Tribunal de origem, haveria de se aguardar as contrarrazões do Ministério Público e a remessa dos autos à Capital Federal, coisas ainda hoje comumente demoradas. Vale destacar que, por meio do AI-6, nos termos da redação proposta para o artigo 113 da Constituição Federal, o STF voltou a ter somente onze ministros.

O regramento constitucional em vigor, estabelecido pela Constituição de 1988, ressalva as transgressões disciplinares do cabimento do habeas corpus e o estatui assim no artigo 5º, inciso LXVIII: “Conceder-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Depois, ao tratar da competência do STF, estabelece no artigo 102, I, d, quando for paciente o presidente da República, o vice, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-Geral da República". Mais à frente, no mesmo inciso, mas na alínea "i", firma-se também a competência da Suprema Corte “quando o coator ou paciente for tribunal superior ou quando o coator ou paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se trate de crime sujeito à mesma jurisdição em uma única instância”. É no inciso II, letra "a" que o recurso ordinário vem regulado, sem, porém, a restrição imposta pelo AI-6. 

A restrição que o AI-6 impunha renasce agora sob a duvidosa interpretação que o RHC vem previsto no artigo 103, II, a, da Constituição Federal. Sim, vem mesmo, mas não há nada que iniba o originário. Ou será que vamos aplicar a fórmula lusitana do “pra que resolver agora se é possível resolver depois?”. Ou será que, doravante, deveremos interpor o lento RHC e concomitantemente uma cautelar inominada para que eventual ilegalidade não sobreviva? Enquanto isso os réus ficarão presos nas prisões super lotadas?

O Habeas Corpus, entre nós, tem sido historicamente o grande instrumento que resguarda o cidadão de abusos praticados por agentes do sistema penal, de policiais a juízes, passando por membros do Ministério Público e até agentes do sistema penitenciário. Se, como adverte Frederico Stella no seu “Justiça e modernidade: a proteção do inocente e a tutela das vítimas”[6], há uma dupla dimensão na exigência de segurança, isto é, de um lado, como proteção contra agressão de terceiros, o que, grosso modo, chamaríamos de proteção contra a criminalidade e, de outro, contra a agressão dos agentes estatais, não é concebível que se iniba o manejo do Habeas Corpus originário. Não é apenas a liberdade e a dignidade humana que ficarão comprometidas, mas é a própria concepção de justiça que ficará abalada. Por isso, com Gustavo Badaró, é bom lembrar: justice must not only be done, it must also be seen to be done[7].

 


[1] STF, Agravo de Instrumento n.º 516429 QO/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 17.8.07.

[2] RHC n.º 20624/MG, DJ 19.03.2007. No mesmo sentido, entre muitos outros: HC n.º 77858/AM, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 12.02.1999; RTJ 108/590, Rel. Min. Oscar Corrêa.

[3] STF, 2ª T., HC n. 69.421, Min. Marco Aurélio, un., DJ 28.8.92. Ementa publicada também na Revista Brasileira de Ciências Criminais, ed. Revista dos Tribunais, n. de lançamento, p. 256/7.

[4] Superior Tribunal de Justiça versus segurança jurídica: a crise dos 20 anos. Revista do Advogado, ano XXIX, maio de 2009, p. 60.

[5] STF; 2ª T.; j. em 11/3/08; DJe 15/5/08.

[6] Giustizia e modernitá: La protezione dell’inocente e la tutela delle vitime; Milão, ed. Giuffrè, 2002, p. 7.

[7] Processo penal. Rio de Janeiro, ed. Elsevier, 2012, p. 12..

 

 

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