Andando em círculos

A quem interessa a morosidade da justiça?

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19 de setembro de 2012, 8h00

Quando se fala em Poder Judiciário é quase impossível não fazer relação com a morosidade dos processos. Está arraigada no senso comum a ideia de que a Justiça é lenta, burocrática e ineficiente. Infelizmente, essa é uma pecha com a qual temos que conviver e reconheço que existem razões de sobra para a população pensar dessa maneira. Quem já precisou do serviço da Justiça sabe o martírio que é enfrentar uma batalha por longos anos para ver o seu direito reconhecido. Aliás, em muitos casos, o cidadão prefere ficar no prejuízo a enfrentar o desgaste de uma ação judicial.

De quem é a culpa? Existe uma conjugação de fatores: legislação arcaica, intermináveis recursos e incidentes processuais, cultura formalista dos operadores do direito, litigiosidade excessiva, custas processuais irrisórias, rotinas burocráticas, enfim, uma infinidade de coisas.

Ao longo dos últimos anos, várias medidas foram adotadas para a modernização do Judiciário. Em 1995, foi promulgada a Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais, com a promessa de um procedimento mais ágil, simplificado e informal em causas de até 40 salários mínimos, permitindo o acesso sem advogado em casos de até 20 salários mínimos. Havia uma enorme demanda reprimida. Aquelas pessoas que simplesmente se conformavam com o prejuízo, – porque não compensava o custo-benefício de um processo judicial por causa do pagamento de despesas processuais e advogado -, passaram a ingressar na Justiça. Até aí, nada contra. Ponto para a cidadania! O resultado, entretanto, não foi o esperado. Em razão do volume excessivo, o que deveria ser rápido e eficiente se tornou lento e burocrático, tal como o procedimento na Justiça comum. Hoje, quem vai a um Juizado não espera menos de 2 anos para obter uma decisão de 1ª instância. Depois, cabe recurso e sabe Deus quanto tempo mais vai demorar. Na prática, seja na Justiça comum ou nos Juizados, quem não consegue uma liminar está fadado a amargar longa espera para efetivar seu direito.

Na Justiça Federal, a coisa é ainda mais absurda. A lei 10.259/01, que instituiu os JEFs, previu uma quantidade de recursos absolutamente incompatível com o procedimento sumaríssimo. Existe recurso contra a decisão que deferir ou indeferir liminar (tutela antecipada ou cautelar – artigo 5º); recurso contra a sentença que acolher ou rejeitar o pedido (sentenças definitivas); incidente de uniformização quando houver divergência entre turmas da mesma região (TRUJEF – artigo 14, §1º); incidente de uniformização contra decisões divergentes de turmas de regiões diferentes, assim como aquelas que contrariarem súmula ou jurisprudência dominante do STJ (TNU – artigo 14 § 2º), Reclamação quando a decisão da turma de uniformização contrariar jurisprudência dominante ou súmula do STJ (artigo 14, §4º), recurso extraordinário (artigo 15); agravo contra a decisão do presidente da turma que negar seguimento ao extraordinário (artigo 544 CPC) e agravo regimental contra as decisões monocráticas de relatores em todos esses órgãos colegiados.

Acrescente-se que existe a possibilidade de interposição de embargos de declaração contra qualquer dessas decisões, sentenças e acórdãos, inclusive, aqueles que julgarem os embargos de declaração anteriormente interpostos (embargos de embargos). Além desses recursos expressamente previstos, ainda existe TR que admite recurso contra sentença terminativa (sem resolução de mérito), agravo de instrumento, mandado de segurança e até correição parcial[1]. Eu suma: um verdadeiro pandemônio!

Ora, para admitir mandado de segurança (artigo 3º, §1º, I, da Lei 10 259/01) e recursos expressamente vedados por lei (artigos 4º e 5º da Lei 10259/01), seria imprescindível que o colegiado proclamasse a inconstitucionalidade do dispositivo, sob pena de violação à súmula vinculante 10 do STF: “viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.” Nesse caso, acrescenta-se ao procedimento já conturbado mais um incidente processual: reclamação perante o STF.

Acontece que já existe julgamento proferido em sede de repercussão geral pelo STF no seguinte sentido:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. DECISÃO LIMINAR NOS JUIZADOS ESPECIAIS. LEI N. 9.099/95. ART. 5º, LV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. 1. Não cabe mandado de segurança das decisões interlocutórias exaradas em processos submetidos ao rito da Lei 9.099/95. 2. A Lei 9.099/95 está voltada à promoção de celeridade no processamento e julgamento de causas cíveis de complexidade menor. Daí ter consagrado a regra da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, inarredável. 3. Não cabe, nos casos por ela abrangidos, aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, sob a forma do agravo de instrumento, ou o uso do instituto do mandado de segurança. 4. Não há afronta ao princípio constitucional da ampla defesa (artigo 5º, LV da CB), vez que decisões interlocutórias podem ser impugnadas quando da interposição de recurso inominado. Recurso extraordinário a que se nega provimento (RE 576847, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 20/05/2009, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-148 PUBLIC 07-08-2009).

No entanto, em relação aos JEFs, o próprio STF já admitiu o manejo de mandado de segurança como sucedâneo de recurso:

Ementa: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. COMPETÊNCIA PARA O EXAME DE MANDADO DE SEGURANÇA UTILIZADO COMO SUBSTITUTIVO RECURSAL CONTRA DECISÃO DE JUIZ FEDERAL NO EXERCÍCIO DE JURISDIÇÃO DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL. TURMA RECURSAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. I – As Turmas Recursais são órgãos recursais ordinários de última instância relativamente às decisões dos Juizados Especiais, de forma que os juízes dos Juizados Especiais estão a elas vinculados no que concerne ao reexame de seus julgados. II – Competente a Turma Recursal para processar e julgar recursos contra decisões de primeiro grau, também o é para processar e julgar o mandado de segurança substitutivo de recurso. III – Primazia da simplificação do processo judicial e do princípio da razoável duração do processo. IV – Recurso extraordinário desprovido. (RE 586789, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 16/11/2011, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-039 DIVULG 24-02-2012 PUBLIC 27-02-2012).

O mais impressionante é que o precedente fala em “primazia da simplificação do processo judicial e do princípio da razoável duração do processo”. Na verdade, o próprio STF violou sua súmula vinculante 10!

Diante dessa celeuma, a conclusão lamentável a que se chega é que ainda compensa violar o direito alheio neste País. Entre milhões de pessoas lesadas, um contingente mínimo acorre ao Judiciário. Depois de todo o sofrimento com os percalços do processo, alguns desses poucos idealistas conseguem uma indenização de 2 ou 3 mil reais, coisa absolutamente insignificante perante o poderio econômico de instituições financeiras, planos de saúde e empresas de telefonia. Resumo: é mais fácil e mais barato apostar na desinformação da população e na ineficiência do Judiciário do que investir na melhoria da prestação dos serviços. Para as empresas, vale a pena o custo-benefício.

O sistema está invertido, de cabeça para baixo. Hoje, quem viola o direito é beneficiado e a vítima é que suporta o ônus de aguardar indefinidamente a reparação na Justiça. É preciso virar esse jogo e colocar as coisas no seu devido lugar.

Nesse contexto, para além de proclamar o princípio da razoável duração do processo em uma emenda constitucional (art. 5º LXXVIII, da CF – emenda 45), como se fosse uma panaceia para todos os males do Judiciário, seria imprescindível a adoção de medidas concretas, efetivas e até drásticas.

Considerando que existe a necessidade de modernizar a legislação e acabar com essa infinidade de recursos e incidentes processuais, vou lançar aqui algumas sugestões:

I – Atuação do Poder Executivo nas demandas de massa. Agências reguladoras, Banco Central, Cade, Procon e demais instituições de controle e fiscalização devem exercer suas funções, invés de se omitirem, empurrando o problema para o Judiciário. Existe um manancial de instrumentos para coibir o abuso de empresas prestadoras de serviços e fornecedoras de produtos, cujas sanções podem variar desde uma simples advertência, suspensões, multas pesadas até a interdição de estabelecimentos, em decorrência do exercício do poder de polícia administrativa. Nesse caso, quem violou a ordem jurídica deveria ser severamente punido, amargando a demora judicial caso resolvesse impugnar a sanção administrativa.

II – Tutela coletiva de direitos – Em vez de milhares de ações repetitivas, uma única ação em foro nacional com efeitos vinculantes para todos que se encontrarem na mesma situação, independentemente de anuência dos destinatários. Ex: reajuste de tarifas, Revisões de benefícios previdenciários, correções de caderneta de poupança e FGTS, etc. Hoje, o artigo 104 do CDC ainda permite que se prossiga com ação individual.

III – Irrecorribilidade de decisões interlocutórias – A Justiça do Trabalho convive há anos com o princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias e funciona muito bem assim. No que diz respeito aos Juizados Especiais, o STF já decidiu em repercussão geral que não há afronta ao direto de defesa[2].

IV – Execução imediata das decisões de 1ª instância – Salvo as entidades regidas pelo sistema de precatórios (artigo 100 CF), os recursos deveriam ser recebidos apenas no efeito devolutivo. Assim, quem violou o direito alheio e teve contra si uma decisão desfavorável deve suportar os ônus pela demora do processo. O causador do dano sentiria de imediato o desfalque em seu patrimônio e pensaria duas vezes antes de cometer outra conduta ilegal. A cada violação de direito, uma decisão, uma penhora e uma redução no patrimônio. Mesmo que a liberação do dinheiro aguardasse o trânsito em julgado, quem violou a ordem jurídica não ficaria confortavelmente dispondo de seus bens e desdenhando da vítima.

Situações extremas reclamam medidas drásticas. Ou adotamos essas soluções ou continuaremos andando em círculo.


[1] “Trata-se de pedido da parte autora para requerer a Correição Parcial em face do Acórdão prolatado em 16.08.2011. Com razão a parte autora, pelo quê anulo o Acórdão proferido em 16.08.2011.” (Processo 03135561320054036301, JUIZ(A) FEDERAL ANDRÉ WASILEWSKI DUSZCZAK, TRSP – 2ª Turma Recursal – SP, DJF3 DATA: 06/12/2011.)

[2] "Não cabe, nos casos por ela abrangidos [Lei 9.099/95], aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, sob a forma do agravo de instrumento, ou o uso do instituto do mandado de segurança. Não há afronta ao princípio constitucional da ampla defesa (art. 5º, LV da CB), vez que decisões interlocutórias podem ser impugnadas quando da interposição de recurso inominado." (RE 576847, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 20/05/2009, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-148 DIVULG 06-08-2009 PUBLIC 07-08-2009 RTJ VOL-00211- PP-00558 EMENT VOL-02368-10 PP-02068 LEXSTF v. 31, n. 368, 2009, p. 310-314).

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