O atoleiro hipotecário

Segurança jurídica exige bom sistema de registro público

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19 de setembro de 2012, 13h32

Historicamente, a segurança jurídica tem sido fator indispensável à criação de ambiente propício ao desenvolvimento econômico e social das nações. A premissa fundamental é que a atividade econômica — leia-se, segurança do comércio — exige regras sólidas, que estabeleçam e esclareçam, por exemplo, os direitos de propriedade e reduzam o custo da resolução de disputas; que aumentem a previsibilidade das interações econômicas e proporcionem aos parceiros contratuais a principal proteção contra abusos. O objetivo é que as regulamentações sejam concebidas para serem simples, de implementação eficiente e acessíveis a todos que delas precisam fazer uso.

As instituições desempenham um importante papel no desenvolvimento do setor privado. Tribunais, entidades de registro, órgãos do fisco e agências de informação de crédito são essenciais para o funcionamento dos mercados. A eficiência e a transparência dessas instituições são de grande importância para a manutenção de ambiente favorável aos negócios e na circulação de riqueza.

Por sua vez, é função da propriedade privada estimular os investimentos a longo prazo e conferir eficiência à atribuição de recursos, para o que depende de um sistema jurídico que não apenas reconheça o direito de propriedade e, além disso, forneça instrumentos jurídicos que permitam que tal direito possa cumprir sua função.

Dado que compete ao Estado especificar a estrutura dos direitos de propriedade, conclui-se que pode existir Estado sem propriedade privada, mas não o contrário.

Desde a modernidade que resulta o Estado de um acordo institucional através do qual fornece proteção e administração de Justiça aos cidadãos, tomando para si, por exemplo, a definição e a aplicação dos direitos de propriedade sobre os bens, os recursos e a concessão de direitos para a transmissão desses ativos, e em troca recolhendo tributos.

Sem dúvida, o melhor sistema é o que concilie segurança jurídica com segurança do comércio, equilibrando interesses naturalmente antagônicos. Paralelamente pode-se dizer que a sociedade pós-moderna gravita em torno de uma era de incertezas, própria de uma situação de transição em que, num jogo de redistribuição de poder, o Estado tem sido banalizado justamente pela perda da especificidade daquilo que é público, vale dizer, interesses e valores do bem comum encobertos e miscigenados pelo privado.

O crescente movimento de privatização do espaço público com a criação de registros privados, concorrentes dos públicos, em que o principal mote é a “simplificação” vem surgindo sorrateiramente nos últimos anos, inclusive no Brasil.

Todavia, até que ponto a obsessão pela simplificação a qualquer custo é benéfica ao Estado e à população em geral? A resposta pode ser encontrada em exemplo colhido da experiência dos EUA com a criação do denominado Mortgage Registration System (Mers), ou simplesmente, “registro automático”, concebido e largamente utilizado, sem modificar-se a lei, e propalado como um “sistema inovador que simplifica o modo de criar, vender e registrar a propriedade sobre uma hipoteca e sua gestão” (sic). Essa paisagem foi conformada pelos anseios da poderosa indústria financeira, a pretexto de exigências de tempo e gastos (=simplificação), mas com flagrante repercussão na insegurança jurídica.

Por diferentes razões, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, o crescimento do mercado secundário hipotecário, no âmbito nacional dos EUA, emitiu sinais cada vez mais consistentes de que o Sistema de Registro da Propriedade (Land Recording), não proporcionava um nível de segurança jurídica uniforme, sucedendo a criação de um mecanismo paliativo que consistia na exigência de uma apólice de seguro para o prestamista, permitindo a venda ou cessão de hipotecas que, na origem, apresentavam diferentes níveis de segurança.

O forte desenvolvimento e propagação desse mercado secundário de títulos tornou rapidamente obsoleto o Sistema de Registro da Propriedade até então manual (=tinta e caneta), cujo perfil ostentava já profunda assimetria cunhada pelas notáveis diferenças que afloravam das diferentes legislações estaduais, nos diversos condados. Como agravante, esse registro eletrônico ficou desvinculado do condado do prestatário, base material de um sistema de publicidade registral imobiliária que se preste a conferir segurança jurídica.

Por seu meio o empréstimo hipotecário pode transferir-se dezenas de vezes entre os vários bancos daquele país, dado que no decorrer dos anos a indústria financeira desenvolveu tal processo de transferências ou cessões eletrônicas de créditos hipotecários de forma a evitar os registros nas repartições registrais dos diferentes condados (=simplificação).

O Mers permitiu a securitização das hipotecas e a ocultação dos credores sob um manto de opacidade. Como registro privado de prestamistas, dificilmente será imparcial. E, de concreto mesmo, incrementou os custos das transações, ao invés de reduzi-los, como divulgado, diante da insegurança e incerteza que semeou no sistema. Trata-se de um registro privado, e como tal, não é dado ao devedor conhecer-lhe o conteúdo. Em outras palavras, elaborado com o propósito de evitar as exigências de documentação e registro das cessões de crédito imobiliário.

Pode ter sido o precursor da “nuvem” (i cloud) admirada nos computadores ou smartphones pessoais ou corporativos de última geração, mas com uma faceta perversa, cuja extensão é ainda desconhecida da generalidade dos incautos.

Esse atoleiro da sociedade pós-moderna, traduzido sobretudo na crise das mortgages (relação bilateral) e dos deed of trust (relação trilateral) — sejam subprimes, mas abarcando até mesmo os créditos ditos primes —, cujo início se deu em 2007, acarretando a bancarrota do banco de investimentos Lehman Brothers, no dia 15 de setembro de 2008, ao que consta, acha-se ainda longe de uma solução definitiva.

Em geral, antes mesmo da criação do Mers, o registro dos direitos de propriedade nos EUA já eram mais inseguros, decorrendo a constatação de três aspectos principais: a) vigência da regra da reivindicabilidade ilimitada; b) sistema de registro de documentos (e não de direitos), como tal desprovido da fé pública registral; c) existência de companhias de seguros de títulos. Agora, com a crise das execuções hipotecárias, demonstra-se que tal sistema, além de inseguro, é fraco.

Os problemas começam quando os devedores deixam de pagar e os credores querem executar suas “hipotecas”. Daí resulta que a causa da dificuldade, senão da impossibilidade, de execução das hipotecas administradas pelo Mers, resulta exatamente desse milagroso “processo inovador de simplificação” ao extremo, potencializador da prática de empréstimos hipotecários predatórios e da bolha de títulos de créditos hipotecários, dado que administra 65 milhões de hipotecas, cerca de metade das que vigoram nos EUA.

Por tal revolucionário registro privado restou fulminada a transparência que deve nortear todo o processo de tráfico hipotecário, impedindo ainda o devedor de saber, a cada momento, quem é o seu credor. Lado outro, por meio dos registros públicos não se tem com segurança como definir quem é o credor hipotecário, dado que, em muitos casos, o Mers não passa de um simples nominee, ou seja, um encarregado pelo legítimo credor como beneficiário de eventuais direitos de cessão hipotecária futura. Significa dizer, rompe-se a cadeia de títulos com total desconsideração ao princípio da trato sucessivo, apoio sobre o qual repousa a confiança que a população deposita no sistema de publicidade registral.

Contudo, o estrago não termina nisso. Pressionado, o Mers recorreu aos notarial services os quais emprestaram seus funcionários àquele com o fito de assinarem declarações autenticadas — affidavits — com o propósito de fazer prova diante dos tribunais declarando que a promissory note que confirma a titularidade do empréstimo se extraviou e que o prestamista tem legitimidade para executar o empréstimo hipotecário que eles administravam. Sucede que quando interrogados na Corte, muitos desses certificadores privados confessaram que nunca leram as declarações autenticadas que assinaram. Alguns disseram que chegaram a assinar, nessas circunstâncias, cerca de 24 mil affidavits mensais. E, muitas vezes, antedataram esses títulos de cessões em branco depois de iniciado o processo de execução — foreclosure — o que, em tese, configura o crime de perjúrio.

Por meio de decisões judiciais de todo o país constatou-se que uma grande financeira (GMAC) procedeu à falsificação de assinaturas — robosigning — de cessões de créditos hipotecários. Disso resulta, em acréscimo, que proprietários de casas que não foram hipotecadas, ou que nunca contraíram empréstimo, ou, que o tendo contraído, mantém os pagamentos em dia, têm sido notificados do início de foreclosure contra eles.

Entidades de prestígio como o Bank of America, JP Morgan Chase e Citigroup, entre outras, têm sido forçadas a se desculparem formalmente por erros dessa natureza. Difícil entender como, no Brasil, por alguns ou muitos, ainda se defenda um sistema como esse.

Não por acaso, Rui Barbosa já alertava que "Toda a restrição à publicidade importa, logo, em embaraço de circulação. Dela depende inteiramente a higiene dos povos e o saneamento dos governos." A segurança jurídica não prescinde de um confiável e transparente sistema de registro público das transações, até para que se saiba com precisão quem é o verdadeiro proprietário do direito e, uma vez cedido o crédito, promova-se a publicidade contínua e atualizada da situação jurídica do imóvel, base sólida da garantia real.

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