Direito Comparado

Dilemas na regulação legal brasileira da transgenia

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

19 de setembro de 2012, 11h48

Uma grande multinacional do setor de agricultura e de biotecnologia veiculou um anúncio institucional em que se enalteciam as qualidades da soja transgênica e do respectivo herbicida como um agente de proteção ambiental e capaz de aumentar a produtividade e a qualidade da lavoura. O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública por considerar que a publicidade era enganosa. Induzia os consumidores a supor que os produtos eram destituídos de potencial lesivo à saúde, dada a persistência de incerteza de caráter científico sobre seus reais efeitos.

A ação civil pública teve seus pedidos julgados improcedentes em primeiro grau. Em apelação, o caso foi revertido no Tribunal Federal da 4ª Região, em processo relatado pelo desembargador federal Jorge Antonio Maurique (um dos grandes nomes da magistratura brasileira).[1] Segundo o voto condutor, “a propaganda foi lançada num momento bem específico no país, ou seja, antes da aprovação da Lei 11.105/05, que autorizou a produção e comercialização de soja geneticamente modificada tolerante ao glifosato e o registro do respectivo agrotóxico (08 de dezembro de 2004), quando o cultivo e comercialização já acontecia com sementes contrabandeadas da Argentina”.

Abstraindo as questões ligadas aos riscos do uso de transgênicos, o relator entendeu que as qualidades apresentadas pelo produto, na peça publicitária, não eram fieis à realidade e por essa razão se configuraria a ofensa ao Código de Defesa do Consumidor. Além da condenação em dano moral, a empresa foi submetida à obrigação de patrocinar peças de contrapropaganda, de molde a informar adequadamente o público de que fora levado a aparente erro com a propaganda exibida, objeto da ação.

Esse acórdão é ilustrativo de um dos pontos mais salientes do conflito que ora se verifica no tratamento jurídico da comercialização de organismos geneticamente modificados (OGM): a definição de espaços entre o marco legal do CDC e das normas de biossegurança.

Retomando-se a questão apresentada na coluna anterior, dedicada ao cenário europeu, passa-se a examinar a realidade brasileira, especificamente em relação à rotulagem de produtos transgênicos ou que os possuam em sua composição. A informação adequada e suficiente é um dever do fornecedor e um direito dos consumidores (artigo 6o, inciso III c/c artigo 31). Essa é uma diretriz geral do CDC, que se irradia para todos os meios de divulgação de produtos e serviços (o que se opera no plano da oferta, em suas múltiplas modalidades, inclusive por meio de propaganda) e também para o modo como aqueles são expostos ao consumidor.

A legislação específica de biossegurança recebe o dever de informar direito à informação, oriundo do marco jurídico das relações de consumo, e o converte para seu âmbito normativo no artigo 40 da Lei 11.105, de 24 de março de 2005. O dispositivo diz: “Os alimentos e ingredientes alimentares deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento”.

Entendeu-se que caberia ao regulamento o poder de definir o conteúdo informacional sobre os alimentos constituídos ou que sejam OGMs. O artigo 91 do Decreto 5.591, de 22 de novembro de 2005, define que “os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM e seus derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma de decreto específico.” E, de modo específico, o artigo 2o do Decreto 4.680/2003 fixa a obrigatoriedade do dever de informação aos consumidores, sobre a presença de OGMs no alimento ou nos ingredientes alimentares, até o limite de 1% do produto.

Nesse verdadeiro carrefour de dois marcos normativos, surgem duas ordens de problemas: 1) esse limite pode ser alterado por legislações locais? 2) deve prevalecer a informação sobre a transgenia, independentemente do limite de 1%?

O problema tem sua razão de ser em decorrência de que algumas unidades federadas legislaram sobre o tema de biossegurança e não observaram a regra do artigo 2o do Decreto 4.680/2003. Muitos criaram a obrigação pura e simples de informar sobre a presença de OGMs, independentemente de limites mínimos.

Esse foi o caso da Lei do Estado do Paraná 14.861/2005, que estabeleceu o dever de informar sobre transgenia, mas não seguiu o modelo federal do Decreto 4.680/2003. A matéria foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, na ADI 3.645-9, de relatoria da ministra Ellen Gracie, julgada no dia 31 de maio de 2006.

Decidiu-se pela inconstitucionalidade da lei estadual, por ter havido afronta à competência da União em matéria de saúde e de relações de consumo. Nos termos do voto-condutor, há limite mínimo para se obrigar a rotulagem de alimentos com vestígios, componentes ou ingredientes transgênicos, o qual não pode ser ignorado ou desconstituído por regras locais. Nos debates, ficou-se evidente a aceitação de que o piso de 1%, fixado no Decreto 4.680/2003, estava em conformidade com a previsão da Lei de Biossegurança (Lei 11.105, de 2005), cuja constitucionalidade não se discutia naquela ação direta.

Quanto ao problema 2, na sessão de julgamento da ADI 3.645-9, o ministro Ayres Britto destacou que a lei havia transferido ao decreto a competência para fixar os limites mínimos para balizar o dever de informação. E que o percentual fixado era acorde aos padrões internacionais, sendo que a delegação se pautou pelo interesse em torna mais ágil o exame (e eventual alteração) dos patamares mínimos e máximos, conforme evoluíssem os estudos sobre o tema.

Embora se trate de conteúdo não vinculante do acórdão, esse debate entre o ministro Ayres Britto e a ministra Ellen Gracie é indicativo da aceitação da prevalência do marco da biossegurança sobre o das relações de consumo, no que se refere à prerrogativa de dizer a última palavra sobre o que é passível de ser obrigatoriamente informado aos consumidores.

No entanto, o Tribunal Regional Federal da 1a Região, ao decidir a Apelação Cível 2001.34.00.022280-DF, julgada no dia 13 de agosto deste ano, a relatora, desembargadora Selene Almeida, considerou que não se deve observar o índice de 1%, que é conhecido na Europa como fator de trivialidade. Nos termos do voto condutor, na rotulagem dos alimentos deve prevalecer o “princípio da plena informação ao consumidor”, que deve possuir condições de decidir sobre o que adquirir, com base em “informação clara e adequada sobre o produto e sobre os riscos que apresenta”.[2]

Esse acórdão do TRF-1 reabre o debate sobre a persistência do índice de trivialidade em face da interpretação dos dispositivos do CDC. É necessário, porém, destacar que o problema 2 (manutenção do índice de trivialidade) é bem mais complexo do que a mera opção por conservar ou extirpar o piso de 1% de transgenia, como fator que exime a assinalação da presença de OGM no alimento.

A mera detectabilidade do OGM no produto final, por meio do exame da reação em cadeia da polimerase, é susceptível de falhas, em razão do possível (ou eventual) “mascaramento” da presença de transgênicos no alimento, por conta de processos químicos em sua elaboração, ao exemplo do refinamento.

Por sua vez, se for adotado o princípio da informação total, pode-se chegar ao extremo de condenar os fornecedores por se rastrear a presença de OGM nos alimentos, mesmo quando isso se dê por causas inevitáveis ou em frações insignificantes, cuja identificação se tornará economicamente inviável. Daí ter sido essa uma exceção que a Europa admitiu em suas rigorosas normas sobre rotulagem de alimentos transgênicos.

A única certeza está na necessidade de uma melhor definição desses critérios pelo legislador ou mesmo pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio), que, desde 2005, em razão de nota da Advocacia-Geral da União, é o órgão competente (com poder vinculante em relação aos demais) para definir essas questões.[3]

 


[1] TRF-4. Apelação Cível nº 5002685-22.2010.404.7104/RS. Relator Des. Jorge Antonio Maurique. Julgado aos 14-8-2012.

[2] A questão distribuição dos riscos pelo uso de transgênicos, apresenta visões diferenciadas na doutrina. Um exemplo é este excerto, que apresenta a questão sob uma óptica que se afasta de explicações mais simplistas: “Já na questão da soja transgênica, se no futuro seu consumo revelar-se danoso à saúde ou à segurança das pessoas, não vejo como possa ser alegada a favor do fornecedor real, que a desenvolveu em laboratório, a eximente do risco do desenvolvimento. Ainda que na técnica científica, no atual estágio, não consiga demonstrar cabalmente a potencialidade danosa deste produto, não se percebe aqui a essencialidade dos mesmos para a coletividade dos consumidores de forma a justificar a eximente do risco do desenvolvimento. É que neste caso os consumidores têm como satisfazer suas necessidades através da soja tradicional. Tanto que a própria MP223/2004, que autorizou o plantio da soja transgênica, no seu artigo 6º, impõe aos fornecedores reais a responsabilidade objetiva por quaisquer ‘danos ao meio ambiente a a terceiros…’” (KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do Consumidor. 5 ed. Atlas. 2012. p. 191). E é precisamente a delimitação de como o consumidor terá condições de realmente escolher e optar pelo alimento não transgênico que se põe em causa.

[3] NOTA AGU/0LRJ-8/2005, elaborada pelo advogado da União Otavio Luiz Rodrigues Junior, aprovada pelo Consultor-Geral da União Manoel Lauro Volkmer de Castilho e pelo Advogado-geral da União Álvaro Augusto Ribeiro Costa.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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