Poder aos juízes

A juristocracia do novo Código de Processo Civil

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18 de setembro de 2012, 15h46

Consta que dia 19 de setembro ocorrerá a apresentação do relatório do projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados. Isto me fez lembrar de uma notícia que saiu na Folha de S.Paulo do dia 12 de setembro de 2012, em que dois professores, Antonio Claudio da Costa Machado e Ives Gandra Martins, fizeram ácidas críticas ao referido projeto. Em resumo, os juristas apontavam um fortalecimento dos poderes do juiz, que poderia proferir decisões antecipatórias (com base em mero “fumus”), sendo que suas decisões possuiriam executividade imediata (com a retirada da aplicação em regra do efeito suspensivo), determinar ex officio provas e técnicas executivas, além de proferir decisões embasadas em conceitos indeterminados e “valores”.

De pronto, cabe dizer que coaduno parcialmente com a preocupação dos professores. Não que eles estejam plenamente corretos, do ponto de vista dogmático, pois em alguns pontos, o tom alarmista não é plenamente correto. Também não dá para concordar com a assertiva de que não necessitamos de um novo CPC.

Avanços apenas “potencialmente consistentes”
É claro que o CPC projetado traz alguns avanços consistentes. Na verdade, “potencialmente” consistentes. Porque de nada adiantará ver o novo com os olhos do velho. Lembrem sempre do que o Superior Tribunal de Justiça fez com o artigo 212 do CPP (ou seja, mesmo que o legislador tenha dito que o juiz somente poderá fazer perguntas complementares, nem juízes, nem STJ e nem o STF deram “bola” para a alteração!). Assim, de que adiantará exigir do juiz que enfrente todos os argumentos deduzidos no processo (o artigo 500 do projeto coloca essa exigência, corretamente, aliás, como requisito essencial da sentença) se ele tiver a liberdade de invocar a “jurisprudência do Supremo” (sic) de que o juiz não está obrigado a enfrentar todas as questões arguidas pelas partes?

Quero dizer: adianta somente mudar a lei? De que adianta tudo isso, se o juiz possui livre convencimento? Aliás, sobre o solipsismo stricto sensu, corolário do paradigma epistemológico da filosofia da consciência,[1] basta ler o artigo 379: “O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”

Sendo mais claro, o fato é que não avançaremos enquanto não nos termos conta da necessidade de seguirmos/construirmos uma teoria abrangente do processo para guiar a nossa interpretação dos dispositivos legais (novos ou velhos: veja-se que boa parte deles não precisariam sequer estar explicitados no CPC, como o artigo no qual se veda as “decisões de surpresa”: bastaria aplicar, correta e diretamente, a velha cláusula do contraditório). Sim, precisamos de uma teoria para aplicar o Direito — que é alográfico, e não autográfico, na acertada observação de Eros Grau. E uma teoria que se dedique a refundar o processo, a partir da Constituição (a comissão de notáveis responsável pela redação do anteprojeto de CPC falava na necessidade de se conseguir “sintonia fina” entre o texto infraconstitucional e a Constituição), deve começar respondendo exatamente isso: o que é um processo jurisdicional democrático? Não me parece que o projeto responde a essa pergunta.

É a partir dessa pergunta e da resposta que se dê a ela que saberemos em que pé estamos, em termos de avanços ou retrocessos democráticos. Parece correto dizer, por exemplo, com Dworkin (e aqui indico o livro Levando o Direito a Sério, de Francisco Motta, Livraria do Advogado, 2012), que uma Constituição como a nossa adota uma “teoria moral” específica: a de que o cidadão tem direitos “contra” o Estado. E que, nesse sentido, as cláusulas constitucionais deveriam ser compreendidas não como formulações específicas, mas como restrições, limitações ao Poder Público, sempre favorecendo a preservação dos direitos dos cidadãos. Sendo assim, a nossa pergunta pelo processo jurisdicional democrático começa a ser respondida da seguinte forma: o processo deve ser pautado por direitos e suas disposições têm o sentido de limite, de controle.

O processo (falo aqui do processo jurisdicional, mas essa observação serve também ao processo legislativo) deve servir como mecanismo de controle da produção das decisões judiciais. E por quê? Por pelo menos duas razões: a uma, porque, como cidadão, eu tenho direitos, e, se eu os tenho, eles me devem ser garantidos pelo tribunal, por meio de um processo; a duas, porque, sendo o processo uma questão de democracia, eu devo com ele poder participar da construção das decisões que me atingirão diretamente (de novo: isso serve tanto para o âmbito político como para o jurídico). Somente assim é que farei frente a uma dupla exigência da legitimidade, a mediação entre as autonomias pública e privada. Sou autor e destinatário de um provimento. Por isso é que tenho direito de participar efetivamente do processo. É com essa mirada que deve ser feita uma “olhatura” no projeto que ora a Câmara dos Deputados apresenta à sociedade.

Há de se perceber que o projeto no seu artigo 10 adota desde sua redação original a garantia do contraditório como garantia de influência e não surpresa, que deveria nortear todo o debate processual, o que já é defendido por parcela doutrina pátria há bons anos, em especial por Dierle Nunes (in: O recurso como possibilidade jurídica discursiva do contraditório e ampla defesa. Puc-Minas, 2003, dissertação de mestrado; também O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004; Nelson Nery Junior defende essa questão mesmo antes da reforma legislativa, em seu Princípios do Processo na Constituição Federal, 10.ª ed., SP: RT, 2010, n. 24, p. 207 et seq). Caso a leitura do princípio imposta expressamente informasse todo o texto do projeto na sequência dos seus preceitos projetados, boa parte dos ranços autocráticos e sociais (no sentido negativo) teriam sido mitigados.

Ainda se percebe a adoção confessada, na redação da Câmara, de um perfil comparticipativo de processo (e refiro novamente as posições inteligentes de Dierle Nunes (Processo Jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008), tese essa defendida também pela Escola Mineira de Direito Processual — chamado pelo projeto de processo cooperativo. Esta assunção propagada por muitos poderia promover, caso se fizesse uma análise superficial do projeto, a discordância integral com o pensamento dos referidos juristas, pois estaríamos assumindo verdadeiramente bases democratizantes do modelo processual projetado.

No entanto, ao se fazer uma análise mais detida do CPC projetado, cuja atual redação da Câmara conta com 1.088 artigos, vislumbra-se que as bases fundantes do projeto e muitas de suas técnicas partem do serôdio e desgastado modelo social protagonista, que impõe o evidente receio de mantença da matriz autoritária de processo social, capitaneado pelas correntes instrumentalistas, que acreditam, de modo romântico, nas virtudes soberanas do decisor e em sua capacidade de antever o impacto decisório (político, econômico e social). Esse é o maior equívoco do projeto. Assume uma postura participativa, só que aposta no protagonismo (solipsista). Aliás, é um equívoco que corrói a raiz do projeto. Incrível como os fantasmas de Oskar Von Büllow, Menger, Klein e outros continuam a atazanar os processualistas brasileiros. Os instrumentalistas — mormente eles— continuam a acreditar que a solução do processo está no “protagonismo judicial”.

Aliás, nesse ponto as críticas de Machado e Gandra procedem. Nesses termos, teleologicamente as críticas expendidas pelos juristas vão no alvo. Só que o caminho até elas é que merece uma discussão maior. Ao que li e ouvi das críticas e propostas de Costa Machado, ele propõe uma reforma do atual Código, considerado por ele como “o melhor do mundo”. Preocupa-me não somente essa ode ao velho CPC, mas também a ausência de uma crítica filosófica ao aludido projeto. Aliás, são poucas as críticas — da comunidade jurídica em geral — no que toca ao fundamento filosófico do projeto. E isso é grave (não a crítica de Costa Machado e Gandra Martins; refiro-me a ausência de uma crítica de cariz filosófico da comunidade jurídica em geral).

A juristocracia em marcha
O que está por detrás dessa verdadeira juristocracia proposta no projeto do novo CPC? Vários juristas brasileiros — processualistas com formação filosófica — vêm fazendo pertinentes críticas a alguns pressupostos do projeto desde sua redação original. Mas, registre-se: não apenas ao projeto, mas a uma tradição instrumentalista (socializadora, no sentido negativo) que já consta no atual CPC (e disso Costa Machado, crítico do novo projeto, não se dá conta). Nesse sentido, cito Dierle Nunes, Marcelo Cattoni, Adalberto Hommerding, Francisco Motta, Rafael Tomaz de Oliveira, Georges Abboud, José Miguel Garcia Medina, entre outros).

Se existisse a busca por um verdadeiro novo CPC, haveria de se assumir, em toda a estrutura do projeto, as bases do processualismo constitucional democrático, saindo de uma mera discussão técnica e buscando uma visão panorâmica do sistema e das bases de fundamentação, compreendendo-se o papel de garantia que o processo brasileiro assume na implementação dos direitos fundamentais.

A estrutura do projeto deveria ser estruturada levando-se em conta o grande aumento da complexidade das litigiosidades no Brasil, pós 1988, que deixaram de ser bipolares (litígios individuais) e se tornaram coletivas, repetitivas e de interesse público (Public interest litigation).

Poderia se alegar que o projeto faz isso, quando, por exemplo, tenta resolver o problema da litigiosidade repetitiva, com o reforço do modelo de padronização decisória, que faz crer que os litígios devam ser exterminados, após o proferimento de uma decisão modelar proferida por tribunais, sem que se perceba a completa ausência de uma teoria apta para a interpretação/aplicação dessa “padronização”.

Só que, nesse ponto, o projeto peca hermeneuticamente. Faltou uma virada hermenêutica no projeto. Nele, há uma “falácia semântica” ou uma “crença na plenipotenciariedade dos conceitos”, como se fosse possível a uma lei, a uma súmula ou a uma ementa jurisprudencial prever todas as hipóteses de aplicação de forma antecipada.[2] O projeto, nesse aspecto, peca por apostar em uma espécie de commonlização do Direito de terrae brasilis, circunstância que está denunciada no livro O Que é Isto Os Precedentes e as Súmulas Vinculantes (Lenio Streck e Georges Abboud; Livraria do Advogado, 2012). Assim, o projeto faz a façanha de acumular dois positivismos: o velho exegetismo, porque aposta em uma espécie de conceptualização, e no positivismo pós-exegético de perfil normativista, porque aposta no poder discricionário dos juízes (eis aí o protagonismo judicial). Ou seja, sob pretexto de se livrarem das velhas posturas positivistas, os autores do projeto reafirmam tanto o velho como o “novo” (sic) positivismo. E durma-se com um barulho desses…

Ademais, partindo-se desta diversidade de litigiosidades, um verdadeiro Novo CPC deveria romper em definitivo com o “modelo protagonista” (para quem não se deu conta, ainda, esse é o ovo da serpente do ativismo, para dizer o mínimo), com a percepção da importância do debate e do papel técnico e constitucional de todos os sujeitos processuais, e de sua evidente interdependência.

Apesar da melhoria dogmática do texto na Câmara (com a criação de uma fase preparatória na cognição, tentativa de melhoria do modelo padronizador do incidente de resolução de demandas repetitivas, de criação de bases para formação e aplicação de precedentes, criação de possibilidade de um acordo de procedimento pelas partes etc.), percebe-se, ainda na infraestrutura do projeto, a ultrapassada credulidade intrínseca no modelo protagônico. Incrível como isso está arraigado no imaginário dos juristas. Parece que os processualistas não conseguem trabalhar a ideia de um processo que não dependa do solipsismo judicial. Ou seja, é o fantasma de Büllow. É o fantasma do socialismo processual tardio…

No âmago, o discurso da grande maioria dos processualistas se cinge a defesa do aumento da produtividade e celeridade processual, esquecendo-se que o processo civil brasileiro não serve somente para resolução de conflitos privados e patrimoniais, mas também viabiliza o auferimento de direitos fundamentais básicos. Elementar isso. Nestes termos, há de se perceber que ainda não se promoveu a mudança paradigmática necessária. Continuam replicando e defendendo as bases do modelo social, difundido a partir do Projeto Florença de acesso à Justiça da década de 1970 (73-78) como se de lá para cá não tivessem ocorrido monumentais mudanças das bases da leitura e compreensão da sociedade e do direito.

O leviatã neoprocessual
Qual é o preço que estamos dispostos a pagar? Por exemplo, o que justifica — a não ser a crença no velho protagonismo — que o projeto reforce as técnicas liminares que permitem ao juiz solitariamente (eis ai o solus ipse) proferir decisões antecipatórias ou mesmo julgar as causas repetitivas com base em padrões decisórios (dos tribunais) ou quando a causa for “manifestamente improcedente” (o que seria isso?!)? Por que o processo deve ficar refém do solipsismo de um “presidente” do processo? Já não basta termos esse problema no Processo Penal? Falo aqui do artigo 314 do projeto, escandalosamente anti-hermenêutico. “Todo poder aos juízes.” Esse é o lema do projeto. As ruas do Brasil, no dia da aprovação do projeto — se aprovado com esse teor — será esse.

Perceba-se que não se promove um ataque generalizado ao trabalho dos juristas que participaram das Comissões, especialmente agora na Câmara, uma vez que o trabalho dogmático promoveu uma boa melhora técnica do projeto. Impossível não reconhecer isso. O que se critica é a ausência de uma mudança paradigmática, que fará manter e, talvez, fortalecer a análise do sistema processual sob a ótica principal e única do juiz e da jurisdição, tal qual já ocorre na atualidade. O projeto, assim, nada mais faz do que “mais do mesmo”. Recupera pressupostos da dogmática jurídica, mas sacrifica os pressupostos filosóficos, que são a condição de possibilidade de o projeto se tornar compatível com o paradigma do constitucionalismo contemporâneo e não com posturas teóricas que, a pretexto de superar velhas fórmulas como “o juiz boca da lei”, nada mais fazem do que apostar em um “juiz protagonista”. Nada mais velho do que isso. Escopos processuais, instrumentalismo, agora com novos nomes. Não é “cisma” minha… Basta ler o projeto.

Numa palavra: O projeto é pródigo em tratar de efetividades quantitativas; esqueceu-se, entretanto, de cuidar das efetividades qualitativas. O processo deve ser célere… Afinal, a pós-modernidade (sem que saiba bem o que isso quer dizer) exige que tenhamos pressa. A questão é saber se isso basta. Quero saber se estamos dispostos a sacrificar a qualidade das decisões em prol da quantidade (não que, hoje, tenhamos isso). Talvez o projeto esteja fazendo um novo pacto, algo do tipo proposto por Thomas Hobbes na aurora da modernidade. Entre “civilização” e “barbárie”… Com base naquilo que Hobbes tinha como motor das condutas humanas: o medo. O medo do caos processual. Em Hobbes, o homem é o lobo do homem (hominis lupus hominis). No processo brasileiro, o número de processos, a litigiosidade, as cautelares, etc. são o lobo da efetividade. Esse medo leva os utentes a abrir mão de “causas” para ficar com “teses”. Metaforicamente, o projeto propõe que os utentes escolhem entre isso que está ai (a barbárie) ou a civilização, em que os rios fornecerão leite e as árvores favos de mel. Assim, os utentes de terrae brasilis fazem, primeiro, um pacto de associação e, depois, um pacto de submissão… Delegando todo poder ao soberano, representando pelo protagonismo judicial. Uma espécie de “leviatã neoprocessual”. Bom, o Estado Moderno começou assim… Só que… Bem, o resto da história todos conhecemos…!


[1] Permito-me insistir na “questão da filosofia”, embora setores importantes do direito desconsiderem o fato de a filosofia ser condição de possibilidade do próprio direito. De todo modo, faço a seguinte observação: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. Em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no “paradigma epistemológico da filosofia da consciência”. Advirto, porém, que é evidente que o modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o “solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Aponto essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja.

[2] Não devemos esquecer que a Constituição estabelece que os juízes e Tribunais julgarão causas…. Nâo está escrito em lugar nenhum que juízes e tribunais julgarão teses ou enunciados assertóricos. Ao que se pode perceber, o Projeto do novo CPC aposta muito mais na construção de teses (súmulas, enunciados, ementários resultantes de incidentes de unificação jurisprudencial) do que na resolução de causas. Essa denúncia já é feita, de há muito, por autores como Alexandre Bahia, conforme explicitei aqui no ConJur.

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