Lei Maria da Penha

Mulher não precisa fazer BO para obter medida protetiva

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18 de setembro de 2012, 8h00

Antes de fazer uma pequena incursão na Lei Maria da Penha, a respeito da questão da tutela inibitória conferida à mulher vítima de violência doméstica, faço um apelo. É preciso, com a máxima urgência e brevidade, que paixões e animosidades corporativas ou institucionais sejam definitivamente deixadas de lado nesse tema tão importante para a dignidade da pessoa humana pela perspectiva de gênero.

Apenas a integração operacional de todos os protagonistas desse Diploma legal, como juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, delegados de Polícia, Polícia Militar, psicólogos, assistentes sociais, entre outros, pode salvar a Lei Maria da Penha e, assim, as mulheres de todo o Brasil da escalada da violência doméstica, que cresce assustadoramente a cada dia. Toda e qualquer vaidade deve ser abandonada entre as Instituições e seus agentes.

A paixão, a animosidade e a vaidade, a ponto de colocar em rota de embate as instituições e seus agentes embaçam a exegese e o aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha, tornando-a um Diploma sinuoso que não leva a lugar nenhum, frustrando os anseios da mulher vítima de violência de ver-lhe conferida a entrega da melhor e mais adequada prestação jurisdicional.

O instituto mais reluzente e eficiente criado pela Lei Maria da Penha, sem nenhuma dúvida, foram as Medidas Protetivas de Urgência. É através delas que todos os dias dezenas ou milhares de mulheres deixam de ser mortas todos os dias no país.

Malgrado ser instituto vanguardista de Direito de valor inestimável, muitos se apressaram para logo lhe dissecar, confrontando-a com outros velhos institutos já existentes em nosso ordenamento jurídico. Mesmo porque discorrer sobre o já conhecido é mais cômodo do que viajar a estrelas das quais nunca se ouviu sequer falar.

Logo de cara, proclamaram que as Medidas Protetivas de Urgência seriam a mesma coisa que as velhas medidas cautelares. E o pior, com toda a carga de acessoriedade e instrumentalidade próprias das cautelares do Código Buzaid de 1973.

Pronto. Quase acabaram assassinando as próprias Medidas Protetivas de Urgência.

Pelo visto, as próprias Medidas Protetivas de Urgência deverão requerer Medida Protetiva de Urgência de Proibição de Contato, de Aproximação e de Frequentação dos Mesmos Lugares contra essa parte da doutrina e da jurisprudência que as condenaram à palidez e languidez das medidas cautelares.

É sabido que tudo que é novo assusta, confunde. Mas isso não quer dizer que as mulheres vítimas da diária e cotidiana violência doméstica e familiar devam perecer nas mãos de seus carrascos por conta de açodamento doutrinário e jurisprudencial.

E quem solucionou a charada a respeito da natureza jurídica das Medidas Protetivas de Urgência foi a defensora pública Julia Maria Seixas Bechara.

Com grande maestria e ineditismo, pontificou esta culta defensora pública:
“Crítica à cautelaridade
Doutrina e jurisprudência, conforme exposição retro, são uníssonas em cuidar das protetivas como medidas cautelares.
Por definição, medidas cautelares são tutelas de urgência com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito invocado.

Nessa lógica, deveriam as medidas protetivas obedecer aos requisitos mínimos de instrumentalidade, de temporariedade e de não-satisfatividade. Entretanto, por serem tais características incompatíveis com sua finalidade, não há como sustentar-se tal tese.

Com efeito, como cautelar, a protetiva deveria fazer referência a um processo principal, conforme artigo 796 do Código de Processo Civil. Para alguns, é possível que se entenda que o principal é o processo criminal. Todavia, essa vinculação traria os inconvenientes acima apontados, em especial a desproteção da mulher em caso de retratação da representação, ou a manutenção dessa para garantia de vigência da ordem. Ademais, não se pode admitir que medida de natureza cível vincule-se a processo principal de caráter criminal.

Para outros, então, principal seria o processo a ser ajuizado na vara de família, como o de divórcio, o de reconhecimento e dissolução de união estável, o de alimentos. Ainda que tal entendimento seja compatível com a natureza cível da protetiva, é certo que essa não guarda o traço da referibilidade àquelas demandas. A proibição de contato do ofensor com a vítima não seria instrumento de sucesso da ação de alimentos, para se dar um exemplo. No mais, há casos em que vítima e ofensor não têm pendências judiciais a serem resolvidas, como na violência entre irmão e irmã ou entre namorados.

Outro problema diz com o prazo de cessação da eficácia da tutela, nos termos do artigo 808 do referido diploma legal. Assim, uma vez deferida a protetiva, a vítima teria o lapso de trinta dias para ajuizamento do processo principal, sob pena de perda da eficácia da ordem.

Tal consequência, por demais gravosa, vai de encontro à razão de existência das próprias medidas protetivas. Se, de um lado, se constatam dificuldades para o ajuizamento das demandas, como o acesso à célere assistência jurídica, a obtenção de documentos necessários à propositura da ação ou mesmo a instabilidade emocional, de outro lado é possível que sequer exista a necessidade de outro feito, como mencionado anteriormente.

De tal modo, a exigência de futura propositura de ação significaria nova desproteção à vítima, em atendimento a formalismo incompatível com o mecanismo de solicitação da ordem.

Isso posto, conclui-se que a medida protetiva, porque autônoma e satisfativa, não é tutela de natureza cautelar, mas sim tutela inibitória.

Com efeito, ao entregar à vítima o direito material invocado — consistente em sua proteção perante o suposto agressor — dispensa a medida protetiva qualquer outro procedimento, produzindo efeitos enquanto existir a situação de perigo que embasou a ordem (rebus sic stantibus).

A circunstância de a demanda ser fundada em perigo e baseada em cognição sumária — na fase de antecipação de tutela da protetiva — não implica, necessariamente, a caracterização da medida como cautelar.

Cuidando de tal diferenciação, esclarece Luiz Guilherme Marinoni que ‘a mais importante das tutelas jurisdicionais a serviço da integridade do direito material é a tutela inibitória, destinada a proteger o direito contra a possibilidade de sua violação. Para ser mais preciso, a tutela inibitória é voltada a impedir a prática de ato contrário ao direito, assim como a sua repetição, ou ainda, continuação. Se a cautelar serve para assegurar a tutela do direito, pra prevenir a violação do direito não é necessária uma tutela de segurança, mas apenas a tutela devida ao direito ameaçado de violação, ou seja, a tutela inibitória’.

Portanto, uma vez deferida a ordem, porque demonstrada a probabilidade de violação do direito, para sua vigência é suficiente que permaneça a situação de perigo que a lastreou, não havendo que se falar em ajuizamento de processo principal.”

A tutela inibitória em nosso ordenamento positivo possui status constitucional:
“CF/88
Art. 5º …
XXXV — A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
Quando se confere proteção judicial à ameaça a direito, em última análise, está se entregando ao jurisdicionado provimento de natureza inibitória.

A própria Lei Maria da Penha diz em seu artigo 1º:
“Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher …”

Quem previne não é a tutela declaratória, condenatória ou constitutiva, nem mandamental. Quem previne ofensa à pessoa é a tutela inibitória.

Daí porque o artigo 10 da LMP diz que na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência poderá requerer Medidas Protetivas de Urgência, sem se cogitar da prática de infração penal propriamente dita. Iminente é o que está quase a acontecer, mas não aconteceu!

Da mesma forma que o delegado de Polícia, o promotor de Justiça e o defensor público poderão, ou melhor, deverão formular pedido de Medidas Protetivas de Urgência, “na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Em vários de seus dispositivos a Lei Maria da Penha ao tratar dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher faz uso da expressão “com competência cível e criminal”.

Querem dizer alguns que mencionada competência cível estaria adstrita apenas às Medidas Protetivas de Urgência, sob o prisma de sua acessoriedade e instrumentalidade (cautelaridade) ao processo criminal.

Nada disso! Medida cautelar nunca foi e nunca será critério para fixação de competência. O acessório segue o principal. É a ação principal que determinará a competência do juízo.

Quer dizer, então, a Lei Maria da Penha que as Medidas Protetivas de Urgência por serem espécie de tutela inibitória — e não cautelar — podem, sim, pelo seu próprio conteúdo e pleito condicionar a competência do juízo. O que jamais poderia acontecer acaso servissem à utilidade e efetividade de outro processo maior. Tutela inibitória traz consigo em sua causa de pedir o mérito da ação, qual seja, proteção à ameaça a direito. Tutela cautelar, por sua vez, não tem mérito, não possui um fim em si mesma.

As Medidas Protetivas de Urgência podem ser ajuizadas em foro distinto do da ação penal, porque aquela não é cautelar desta, é ação autônoma e independente.

Confira-se:
“Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:
I — do seu domicílio ou de sua residência;
II — do lugar do fato em que se baseou a demanda;
III — do domicílio do agressor”
O artigo 15 da Lei Maria da Penha, transcrito acima, elimina qualquer dúvida a respeito da natureza de tutela inibitória das Medidas Protetivas de Urgência. Se fosse espécie de tutela cautelar obrigatoriamente deveriam ser ajuizadas no foro da ação penal (principal).

Se as Medidas Protetivas de Urgência tivessem natureza cautelar para sua existência seria obrigatório a existência de Inquérito Policial ou Ação Penal. O que criaria verdadeiro paradoxo, pois transformar-se-ia todas as ações penais em públicas incondicionadas. Sem o que a mulher ficaria sem proteção judicial. O que, claro, não é aceitável. Toda vítima possui a discricionariedade de representar ou não contra seu agressor.

Por ter a natureza de tutela inibitória, é indiferente para o deferimento de Medidas Protetivas de Urgência que a ofendida tenha lavrado boletim de ocorrência em sede policial ou representado criminalmente. Tanto que o artigo 12, I e III, da Lei Maria da Penha determina que a autoridade policial colha a representação apenas se for apresentada, sem prejuízo de “remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência”.

A Lei Maria da Penha preconiza que às Medidas Protetivas de Urgência aplica-se o disposto no caput e nos parágrafos 5º e 6º do artigo 461 do Código de Processo Civil (§4º, do Art. 22). Rezam esses dispositivos:
“Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
(…)
§5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
§6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva”
Toda a organicidade e complexidade da tutela das obrigações de fazer e não fazer são por comando legal expresso aplicáveis às Medidas Protetivas de Urgência. O que seria totalmente incompatível com a natureza frugal do provimento cautelar.

Em nenhuma linha sequer a Lei Maria da Penha consigna que as Medidas Protetivas de Urgência seriam ação cautelar e, ainda, que para o seu ajuizamento seria necessário a representação criminal. Essa exegese que mutila a Lei Maria da Penha deve ser refutada. Em prestígio da consagração da tutela inibitória em nosso ordenamento pátrio.

Por derradeiro, observe-se fenômeno curioso. Se as Medidas Protetivas de Urgência forem deferidas paralelamente à uma Ação Penal ou abertura de Inquérito Policial, seu descumprimento é causa de decretação da prisão preventiva do agressor, com fundamento no artigo 313, III, do CPP, para garantia da ordem pública. E se inexistir Ação Penal ou Inquérito Policial o descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência devem importar na prisão em flagrante do réu por crime de desobediência, agora com fulcro no artigo 330 do CP.

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