Observatório Constitucional

O problema das excessivas citações doutrinárias no STF

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

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15 de setembro de 2012, 8h00

Spacca
Há um aspecto da argumentação jurídica que particularmente me interessa, instiga e intriga deveras: trata-se da citação de fontes doutrinárias. Outro dia, eu relia a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso das células-tronco (ADI 3.510/DF, Rel. Min. Carlos Britto, j. 29/05/2008), e chamou-me a atenção a imensa quantidade referida de autores e obras doutrinárias, ao longo de todos os votos que compuseram o acórdão. Claro, dirão alguns, isso mostra que nossos ministros estão herculeamente preparados para enfrentar qualquer julgamento, qualquer matéria, independentemente de sua complexidade inerente. Não discordaria, de todo, de uma tal afirmação, embora saiba que mesmo os juízes têm lá suas limitações.

Contudo, penso que essa prática judicial, esse modus operandi de elaborar votos e decisões tão repleto de referências doutrinárias, possa ter uma outra faceta, pouco ou quase nada explorada até então, que mereça um estudo mais aprofundado, que neste curto espaço apenas terei a possibilidade de expô-la. É que, ao contrário do que à primeira vista aparente, votos impregnados de referências doutrinárias podem acarretar certa fragilidade para o sistema constitucional, quando examinado em um horizonte mais estendido, minando sua “integridade” (Dworkin).

Falo de integridade no Direito, porque, não obstante as diversas teorias da interpretação e da hermenêutica constitucional, não somos autorizados a apontar uma única sequer em torno da qual haja algum consenso teórico. Toda decisão judicial exige uma prévia interpretação, que, por sua vez, pressupõe uma teoria jurídica de base. Para toda linguagem interpretativa, há uma metalinguagem que põe em xeque a legitimidade de quaisquer critérios de interpretação. Não há método interpretativo último para validar uma única interpretação possível. Logo, não seria uma heresia, de minha parte, falar que para todo argumento existe uma teoria ou interpretação que lhe dê suporte, estando naturalmente excluídos os casos extremos ou exemplos ad terrorem (v.g.: a linguagem da Constituição do Brasil, de 1988, não se permite a nenhuma interpretação razoável que pretenda justificar a pena de morte, salvo em caso de guerra).

A noção de integridade no Direito não responde cabalmente a essa angústia do jurista ou à insuficiência teórica, mas ainda é a que melhor avança sobre o crucial problema da aplicação do Direito e, sobretudo, da Constituição. Seu diferencial, até onde posso vislumbrar, consiste em não procurar fixar regras ou critérios externos que devam ser seguidos pelos juristas ou pelos operadores do direito, como se fossem uma “cartilha jurídica” a ditar os verdadeiros princípios e regras da interpretação; muito pelo contrário, a partir de uma perspectiva interna (dos participantes), a integridade exige que as decisões e as interpretações tenham coerência com todo o conjunto de decisões até então tomadas sobre a matéria, isto é com a história institucional, e com os standards da moralidade política e da justiça.

Compara-se, assim, o Direito a um “romance em cadeia” e o jurista a um romancista, a quem cabe dar continuidade ao romance jurídico, ou seja, construir uma história coerente. O passado institucional exerce, assim, uma forte constrição sobre o jurista do presente, ao julgar e interpretar os novos casos. Evidentemente, não se trata de uma vinculação pura e simples, que pudesse gerar um automatismo decisório, mas de restrição que impõe uma produtiva e inerente tensão ao intérprete: de um lado, preservar as mesmas interpretações sempre que possível e, de outro, identificar as contingências da vida e optar por outras soluções que melhor reflitam as concepções de moralidade e justiça.

A integridade, portanto, ao trazer para dentro do processo de interpretação a história institucional de determinada comunidade jurídica, atribui limites semânticos sobre as diversas possibilidades interpretativas das normas, obrigando o intérprete, em cada novo caso, a decidir com base no que já foi anteriormente decidido. E não se diga que, desse modo, correríamos o risco de engessar a jurisprudência, pois esse ônus, na realidade, revela o exercício contínuo da prática interpretativa: reinterpretar-se sempre, seja para manter posicionamentos consolidados nos tribunais, seja para modificá-los se assim o exigirem os princípios da moralidade e da justiça, desde que devidamente fundamentadas as decisões.

Nesse contexto de integridade, é que devemos compreender as dúvidas suscitadas quanto às consequências do número excessivo de citações doutrinárias. Explico. A meu ver, excessivas ou não, as citações doutrinárias, em si, não carregam consigo indícios de uma decisão argumentativamente frágil, inconsistente ou incoerente. No entanto, quando analiso votos repletos de referências e notas de rodapé doutrinárias e, nesses mesmos votos, verifico que os ministros mal discutem suas próprias decisões proferidas em casos similares, penso que haja um motivo sério para uma investigação dos motivos que estão por detrás desse entranho silêncio ou omissão.

Um caso que me chamou muito a atenção, já referido acima, foi o da ADI 3.510/DF, em que o STF julgou a constitucionalidade da Lei de Biossegurança na parte em que cuida da produção e comercialização de organismos geneticamente modificados e a pesquisa com células-tronco embrionárias. O argumento central, que se extrai de todos os votos dos ministros, gravitou em torno dos direitos à vida e à saúde e do princípio da dignidade da pessoa humana. O processo teve grande impacto para a sociedade e, em especial, para o próprio STF, que, pela primeira vez, valeu-se da prerrogativa de convocar audiências públicas, ouviu vários especialistas e admitiu um número considerável de entidades representativas, a título de amicus curiae. Alguns ministros, na oportunidade, a exemplo dos ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Ellen Gracie, ressaltaram a relevância da questão e o marco que representava o julgamento para a história do STF, que entraria para o rol dos mais memoráveis e importantes processos jamais julgados, além da excelência e da profundidade com que os votos enfrentaram a questão.

O julgamento ocorreu em maio de 2008 e constitui, conforme reconhecido pelos próprios ministros, um dos mais importantes precedentes da Corte, em matéria sobre os direitos à vida e à saúde e sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. Diante da noção da integridade, na qual o Direito é visto como um romance em cadeia, era de esperar-se que esse julgamento configurasse um ponto de partida elementar para a apreciação de outro processo correlato e igualmente simbólico e relevante, que há mais tempo tramita no STF, a ADPF 54/DF (Rel. Min. Marco Aurélio), enfim julgado em abril de 2012. Nessa arguição de descumprimento de preceito fundamental, o STF deparou-se com outra não menos importante questão, referente ao assim denominado “aborto do anencéfalo”. Mais uma vez, o centro dos debates girava em torno do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana. E o que aconteceu? Dos três únicos votos até então disponibilizados no site do STF, elaborados pelos ministros Marco Aurélio, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, a rediscussão do julgamento da ADI 3.510/DF, que, na minha visão, representa o mais importante precedente para a matéria, porque discutira com extrema profundidade e amplitude os limites do direito à vida, na prática, inexistiu.

Sei que a amostragem de apenas três votos é pequena e que, em outros votos, o julgamento sobre a pesquisa das células-tronco, no qual a extensão do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana foi examinada, foi melhor discutido e reinterpretado, a exemplo do ministro Cezar Peluso, que, votando a ADI 3.510/DF procedente com ressalvas, manifestou-se pela improcedência da ADPF 54. No entanto, o caráter simbólico do caso, e sua não infrequente repetição em outros temas julgados pelo STF, dão-me a certeza que as observações seguem inteiramente válidas e pertinentes.

Primeiro a votar, o relator, ministro Marco Aurélio, foi o único dos três ministros, aqui mencionados, a citar o julgamento na ADI 3.510/DF, em duas oportunidades. Na primeira oportunidade, com intuito de apenas destacar a laicidade do Estado, a referência, diante da significação do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, foi secundária para o exame da questão. Na segunda, contudo, o ministro Marco Aurélio resgatou o conceito de vida, que se sagrou vencedor na ADI 3.510/DF, para fundamentar seu voto.

O ministro Luiz Fux, recém-chegado ao STF, por sua vez, não se preocupou com o precedente. Entre autores e obras doutrinárias, ele citou, pelo menos, 40 referências distintas, que iam desde Aristóteles (Ética a Nicômaco) até autores atuais da Filosofia, do Direito ou da Medicina. Relativamente ao STF, falou de três Habeas Corpus: o primeiro, HC 84.025, até tratava do mesmo, isto é, aborto do anencéfalo, porém foi julgado prejudicado diante do nascimento do feto; o segundo, HC 834, tinha por objeto crime de responsabilidade; o terceiro, HC 90.049, referia-se à progressão do regime na hipótese de crimes hediondos. Em suma, a ADI 3.510/DF foi completamente ignorada pelo ministro Luiz Fux.

O terceiro deles, o ministro Ricardo Lewandowski, foi quem mais me surpreendeu; não fez menos de 15 referências doutrinárias (o que, diga-se, é bem razoável), citando desde o cético grego, Xenófanes (“A verdade certa, homem nenhum conheceu, nem conhecerá”), o que, aliás, deu todo o tom do seu voto, passando pelo código de Napoleão, para terminar com autores mais atuais do Direito brasileiro, a exemplo do prestigiado professor Paulo Bonavides. Porém, o ministro Lewandowski não citou um único precedente judicial, tampouco o seu próprio voto, de 75 páginas e com mais de cem referencias bibliográficas, proferido no julgamento da ADI 3.510/DF, no qual ele acolhera a tese do “embrião inviável”, assumindo inevitavelmente uma importante premissa sobre o conceito jurídico do direito à vida. O seu voto, porém, revela um silêncio estranhamente ensurdecedor…

Já encerrando o presente texto, pergunto-me o que podemos extrair de concreto dessas observações, especialmente a partir do voto do ministro Ricardo Lewandowski? Ao constatar votos excessivamente apoiados em referências doutrinárias ou de Direito comparado e pobremente fundamentados em decisões do próprio STF, assumo a seguinte hipótese de trabalho, para posterior investigação: existe um ato de discricionariedade por parte do julgador, que, pretendendo livrar-se das amarras da história institucional, elemento essencial para a integridade do direito, e, por consequência, de uma maior legitimidade da interpretação constitucional, quer-se reconhecer livre para adotar a interpretação que melhor lhe convenha.

Então, o recurso às citações doutrinárias, nessa situação, configuraria uma estratégia retórica de argumentação jurídica para legitimar a liberdade conformadora dos ministros, que, de outra forma, não poderia ser sustentada, pois as decisões anteriores do próprio STF limitariam muitas interpretações, a priori, toleráveis pelo texto da Constituição, caso fosse ele inteiramente autônomo e desvinculado da realidade. Com o apoio dos mais variados pensadores, juristas e não juristas, muitas vezes, os ministros performaticamente pretendem legitimar seus próprios votos às custas de uma inatingível superioridade teórica ou de uma quase inatacável supererudição e, ignorando intencionalmente ou não os precedentes ou a história institucional da Corte, põem em risco a integridade de nosso sistema constitucional. E, para nossa infelicidade, eles seriam os primeiros a lançar sementes que perpetuariam a cultura jurídica brasileira de descompromisso com os precedentes da Corte e com a integridade do sistema constitucional.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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