Direito Comparado

Alimentos modificados e informação dos consumidores

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

12 de setembro de 2012, 7h31

A modificação genética de seres dos reinos vegetal e animal é tão antiga quanto o próprio homem. São exemplos da ação humana nesse campo o emprego da levedura na produção de bebidas alcoólicas e o desenvolvimento de vegetais híbridos. No final do século XX, contudo, transformou-se em realidade algo que só se imaginava em livros e películas de ficção científica: a criação de seres vivos em laboratório, como bactérias, e a manipulação genética de vegetais, com o objetivo de aumentar-lhes a resistência contra pragas ou mesmo torná-los mais ricos em determinados nutrientes.[1]

Surge para o Direito a tarefa de regular um novo universo de situações jurídicas ligadas à alteração dos padrões genéticos. Em cada país, teve-se de tomar uma decisão político-jurídica fundamental: permitir ou não as pesquisas genéticas. Fatores diversos puseram-se em conflito, mas, na maior parte do mundo, prevaleceu a tese de que seria lícita a manipulação genética, especialmente a voltada para a melhoria da produção de alimentos. Ultrapassada essa primeira etapa, hoje se tem de enfrentar dois problemas: a) os limites à intervenção humana nesse campo; b) o nível de informação dos consumidores de organismos geneticamente modificados (OGM), assim considerados aqueles que tenham seu ADN (ácido desoxirribonucleico)/ARN (ácido ribonucleico) “modificado por qualquer técnica de engenharia genética” (artigo 3o, inciso V, Lei 11.105/2005).

Aqui fazemos o exame das tensões entre o direito à informação dos consumidores e a adequada rotulagem dos alimentos geneticamente modificados — ou AGM’s.

Ao entrar em um supermercado, nós somos apresentados a uma imensa variedade de produtos que podem conter os OGM’s em sua composição. Há uma nítida relação entre esses alimentos e a vida quotidiana. Os defensores de seu emprego em larga escala baseiam-se em argumentos como a redução da fome, pois haverá mais alimentos e mais resistência das espécies às pragas naturais; a inexistência de riscos evidentes em seu consumo; os ganhos nutricionais, pois os “defeitos” de alguns alimentos seriam eliminados por processos laboratoriais benéficos.

Há também um forte debate ideológico nessa questão. As grandes multinacionais da indústria alimentícia são hoje as principais defensoras dos AGM’s. A concorrência é um dos fatores preponderantes nessa tomada de posição. Não utilizar os AGM’s equivaleria a se tornar, em pouco tempo, uma empresa fora do mercado. Com isso, há a convergência dos inimigos do capitalismo pós-moderno com os ambientalistas. Por essa visão, os pequenos produtores seriam esmagados pelos latifúndios que utilizam os AGM’s. As patentes dos novos produtos, resultado de anos de pesados investimentos em pesquisa, incrementam os custos das sementes e, com isso, limitariam seu acesso a poucos detentores.

Com o tempo, surge outro efeito colateral dos AGM’s: a impossibilidade de identificação da origem da matéria-prima, o que poderá determinar, a longo prazo, o desaparecimento de espécies naturais, substituídas pelas geneticamente modificadas.

A despeito de muitas restrições de ambientalistas e de organizações não governamentais, que possuem como improváveis representantes desde Charles, o príncipe de Gales, até o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, o fato é que a produção de AGM’s é hoje uma realidade e a controvérsia está em como dotar os consumidores de informações suficientes para que saibam o que estão adquirindo.

O dever de informação, que se consubstancia de modo não exclusivo nos rótulos dos alimentos, tem seu marco, no Direito europeu, no Regulamento 1.830, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de setembro de 2003.[2]

A norma europeia baseia-se nos seguintes pontos:

1. Os consumidores têm direito à informação completa e confiável sobre os (a) produtos que contenham ou sejam constituídos por OGM’s; (b) os gêneros alimentícios produzidos a partir de OGM’s; (c) os alimentos para animais produzidos a partir do uso de OGM’s.

2. É necessário que os OGM’s sejam rastreáveis, o que implica a possibilidade de se identificar sua presença ao longo das cadeias de produção e de distribuição. Assim, surge a obrigação de uma rede segura em torno dos OGM’s.

3. É possível que haja vestígios de OGM’s nos produtos, de modo acidental ou mesmo por ser algo tecnicamente inevitável. Nesse caso, é necessária a informação consumidor, desde que esses não ultrapassem o limite de 0,9%.

4. Os rótulos dos produtos que contenham ou sejam constituídos por OGM’s devem ser redigidos levando-se em consideração as seguintes pautas:

a) Tratando-se de produtos pré-embalados que contenham ou sejam constituídos por OGM, seja incluída no rótulo a menção “este produto contém organismos geneticamente modificados” ou “este produto contém [nome do(s) organismo(s)] geneticamente modificados”;

b) Tratando-se de produtos não pré-embalados oferecidos ao consumidor final, figure no expositor, ou ligada ao expositor do produto, a menção “este produto contém organismos geneticamente modificados” ou “este produto contém [nome do(s) organismo(s)] geneticamente modificados”.

5. O controle e a fiscalização devem ocorrer por meio de ações como “colheitas de amostras e análises (qualitativas e quantitativas)” ou mesmo a apreensão dos produtos em desconformidade com a norma.

Em 13 de julho de 2009, o Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram o Regulamento 767, “relativo à colocação no mercado e à utilização de alimentos para animais, que altera o Regulamento (CE) 1.831/2003”, estatuindo novas regras de rotulagem para os alimentos destinados aos animais. Essa é uma preocupação bastante acentuada na legislação europeia, que, de um modo geral, não mais coloca os animais como meros objetos ou coisas, conquanto não os tenha elevado à categoria humana. Em alguns estudos recentes, diz-se que os animais são detentores de direitos na qualidade de não-humanos.

A regulamentação europeia é fortemente apoiada pela população. Os índices de rejeição aos alimentos geneticamente modificados ultrapassam 70% na Alemanha, sendo que os produtos com o selo “Ohne Gentechnik” são extremamente valorizados, embora haja um segmento sensível da União Europeia que é amplamente favorável aos AGM’s, como é o caso do Reino Unido, Suécia, Espanha e Portugal.

As divisões internas na Europa, ainda que se apresentem em termos de Estados-membros e não em face de números populacionais absolutos, devem determinar, para breve, uma ampla revisão dos marcos regulatórios de produção e rotulagem dos alimentos geneticamente modificados. Essas alterações podem atingir inclusive o próprio conceito de OGM, como ressaltou o presidente do Comitê Econômico e Social Europeu Staffan Nilsson, em relatório publicado no Jornal Oficial da União Europeia: “Com o passar dos anos, porém, foram desenvolvidas muitas técnicas novas de melhoramento de plantas que ainda ão estavam previstas no estabelecimento do atual quadro legislativo. Trata-se, por exemplo, de técnicas como a cisgenética, que implicam a transplantação de genes para um organismo da mesma espécie com recurso a ADN recombinante. Este tipo de técnica nova levanta entretanto a dúvida sobre até que ponto é abrangida pela atual definição de modificação genética e, simultaneamente, se os organismos obtidos através destas técnicas são regidos pelo atual quadro legislativo para os OGM”.[3]

O cenário europeu, de significativo contraste com o modelo de ampla liberação dos OGM’s, deve interessar (e muito) ao Brasil, dada a maior similaridade com nosso marco regulatório nesse campo.

Na próxima Coluna, será feita a comparação do modelo europeu com o brasileiro, que atualmente experimenta um intenso conflito judicial sobre os limites de tolerância na rotulagem de alimentos geneticamente modificados.


[1] SILVA, Jorge Alberto Quadros Carvalho. Alimentos transgênicos: aspectos ideológicos, ambientais, econômicos, políticos e jurídicos. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.). Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001. p. 328-329

[2] Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2003:268:0024:0028:PT:PDF. Houve modificações em seu texto pelo Regulamento (CE) n. 1137/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008.

[3] Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2012:068:0056:0064:PT:PDF

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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