Diário de Classe

A metedologia que corrói a pesquisa no Direito

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8 de setembro de 2012, 8h00

Spacca
Durante quatro anos, de 2008 a 2012, lecionei em Franca, no interior de São Paulo, um curso complementar ao currículo da graduação cujo eixo temático girava em torno da Hermenêutica Jurídica. A cada semestre, discutia com os alunos conteúdos que envolviam a concretização do direito e as propostas criadas pela ciência jurídica para a solução dos diversos problemas que emanam da solução judicial dos casos jurídicos.

Em meio a essas discussões, um grupo de alunos, envolvidos com trabalhos de Iniciação Científica, propuseram a mim questões instigantes — algumas vezes capciosas até — que possuíam relação com a perplexidade gerada pelo exercício da pesquisa jurídica. De todas, a questão do método, ou da metodologia científica, era, certamente, aquela que aparecia mais frequentemente na alça de mira dos debates.

"Professor, como faço para escrever o tópico sobre metodologia do meu projeto de pesquisa?" Ou ainda, "do que se trata essa tal de ‘ciência de método’ que o senhor vem trabalhando em sala de aula?". Perguntas de difíceis respostas. Na verdade, não é preciso muito esforço para constatar que a grande maioria das monografias produzidas pela graduação em Direito desconhecem complemente qualquer tipo de metodologia.

Há casos curiosos: o acadêmico indica uma opção por determinada abordagem metodológica na introdução do trabalho e, no decorrer do texto, somos surpreendidos por outro tipo de abordagem, às vezes antitética com relação àquela proposta incialmente.

Evidentemente, esse não é um problema de responsabilidade exclusiva do discente. O que ocorre, de fato, é uma espécie de círculo vicioso: o professor que coordena a pesquisa na condição de orientador, no mais das vezes, não possui esse tipo de saber e, consequentemente, não alerta seu orientando dos problemas de método que, eventualmente, o trabalho pode ter. Ademais, a literatura disponível possui problemas sérios.

Na coluna anterior (leia aqui), procurei apresentar um recorte inicial do modo como o problema do método e da assim chamada metodologia se coloca no campo do Direito. Quero continuar aqui a explorar algumas questões em torno dessa problemática, na perspectiva de responder melhor algumas dessas perplexidades que são geradas pela pesquisa jurídica.

O primeiro ponto que devemos marcar, já de saída, diz respeito às peculiaridades que cercam a assim chamada "ciência jurídica". Nesse aspecto, lembro que podemos encarar o problema do método do Direito em duas perspectivas distintas: a primeira ligada à construção de uma Teoria do Direito; a segunda que responde aos problemas da solução judicial dos casos jurídicos, também chamada de ciência dogmática do Direito.

Quando se menciona o conceito de Ciência Jurídica, a estrutura de significados que primeiro vem à presença é aquela que aponta para a construção de um conhecimento rigoroso para o Direito. Melhor dizendo: o conceito de Ciência Jurídica indica a elaboração de uma série de elementos — ferramentas — que permitam acessar, de um modo rigoroso, o conhecimento das chamadas formas jurídicas.

Certamente, o modelo de "rigor" que fez mais sucesso no ambiente da ciência jurídica dos dois últimos séculos foi aquele praticado a partir de uma analogia com o método das ciências da natureza, em especial da matemática, que gestou e gerou a construção dos grandes modelos sistemáticos de conhecimento do Direito, cujo apogeu pôde ser sentido no século XVIII.

A ideia da construção racional de um sistema jurídico — perfeitamente formulado em termos lógico-objetivos — foi uma manifestação cultural, inaugurada com o humanismo renascentista, no interior do qual se buscava afirmar, num espaço discursivo situado dentro do universo humano-racional, um modelo de pensamento que conseguisse captar as formas jurídicas naturais que a Razão (grafada dessa maneira, com o R maiúsculo mesmo) poderia demonstrar a partir da lógica.

Demonstração a partir da lógica significava: um desprendimento do conhecimento jurídico das estruturas teológicas que sempre o seguiram muito proximamente.

Na verdade, muitos elementos que compõem o universo do Direito foram gestados em meio a um ambiente teológico. Os conceitos de Poder Constituinte, Sistema e Soberania são exemplos comuns dessa situação peculiar que se manifesta no conhecimento do Direito. Todos eles possuem algum grau de parentesco com a teologia. Além desses exemplos ilustrativos, podemos citar a conhecida tese do professor Nelson Saldanha de que a metodologia jurídica se manifesta como teologia jurídica. O próprio conceito de sistema, que é tão caro para o Direito moderno, foi pensado inicialmente por eruditos teólogos.

De todo modo, é possível anotar, com Harold Berman, a existência de um processo dialético entre secularização e teologização do saber jurídico. Esse processo de secularização do Direito e da afirmação de uma autonomia relativa deste com relação às questões teológicas teve seu marco inicial não com a modernidade jurídica, mas, com os movimentos que se seguiram à revolução papal (também chamada revolução gregoriana) na segunda metade do século XI. A partir desses movimentos, as linhas definidoras dos espaços de regulamentação eclesiásticos e dos espaços de regulamentação seculares ficaram mais nítidas.

Antes dessa revolução, o chamado Direito Germânico estava completamente inserido na vida religiosa. Mesmo o lugar do Direito Canônico não se encontrava devidamente determinado, pois ele estava fundido com a teologia e, salvo por coleções de cânones e livros monásticos de penas aplicáveis aos pecados, não havia uma literatura que pudesse ser caracterizada como sendo de Direito Canônico. Do mesmo modo, uma ciência jurídica — entendida como um discurso por meio do qual o Direito possa ser analisado e avaliado — não havia se constituído antes do século XI.

Portanto, Harold Berman afirma serem os séculos XI e XII os séculos decisivos para a formação da tradição jurídica ocidental, pois todos os traços que singularizam o Direito contemporâneo foram forjados ali. Entre essas características podemos ressaltar: 1) a afirmação de uma autonomia, ainda que relativa, do Direito para com a teologia, a política e a moral; 2) a formação de uma ciência jurídica constituída no seio de universidades; 3) a capacitação e treinamento de profissionais capazes de lidar com o todo informe de regras e disposições normativas que constituem o universo jurídico.[1]

Portanto, a construção da ciência jurídica racionalista se apresenta como mais um capítulo dessa (tentativa de) secularização do conhecimento jurídico: o modelo teológico anterior cede em face dos postulados das modernas ciências da natureza.

Nesse âmbito de análise, portanto, o que aparece como conhecimento rigoroso e racional do Direito é aquele que pode ser recomposto de um modo lógico-sistemático. Assim, há rigor e há razão (no Direito) onde houver sistema.

Já na segunda metade do século XIX, esse modelo matemático-sistemático de Ciência Jurídica passa a sofrer, paulatinamente, dura contraposição por parte de alguns importantes teóricos. De uma maneira geral, o ataque se dá a partir da alegação de que essa excessiva preocupação com o rigor sistemático do conhecimento levava à analise dos problemas jurídicos a um nível de abstração completamente desconectado da realidade social, do tecido básico que dá origem aos problemas do Direito.

Para esses autores, era preciso atrelar o estudo do Direito à sua origem social – vale dizer: era necessário saber perceber qual é a “finalidade do Direito”, como dizia Rudolf von Ihering, na segunda fase de seu pensamento –, suscitando as bases genéticas dos interesses que constituem os conflitos que o Direito pretende resolver.

Esse modelo — de certo modo, antissistemático, embora não abandone completamente o ideal de sistematização — terá um crescimento avassalador no século XX. Na verdade, já no final do século XIX, autores de grande prestígio no âmbito da universidade alemã passaram a postular as teses ventiladas por essas propostas antissistemáticas de se fazer Ciência Jurídica.

Talvez o caso mais significativo seja o do romanista Oskar Von Bülow[2], que, formado no seio da pandectística, deixara de lado o rigor lógico-sistemático que compunha o programa da Jurisprudência dos Conceitos para impor uma "recepção do Direito Romano" através da magistratura (porque, para ele, aquela efetuada pela universidade não representava a "verdade" do Direito Romano "vivo"), algo que o atira aos braços do Movimento do Direito Livre em sua configuração mais extremada, para a qual a preocupação sistemática deixa de existir completamente.

Em termos concretos, esses movimentos de retração do modelo epistemológico sistemático tiveram lugar em virtude da "disputa hermenêutica" — poderíamos chamar assim — em torno do problema das lacunas. De fato, o modo lógico rigoroso a partir do qual a pandectística — sistematicamente — organizava seus conceitos não comportava a compreensão de que, mesmo depois de todo esse esforço de abstração, sobrasse dimensões da “realidade social” não cobertas pela estrutura desse sistema.

Por outro lado, os modelos antissistemáticos apontavam, incansavelmente, para a dimensão concreta dos interesses em conflito, de modo a demonstrar como que a obra mais preciosa da pandectística — o Código Civil alemão (BGB) de 1900 — não conseguia regular plenamente o tecido social.

Era preciso suprir as insuficiências do pensamento lógico dedutivo puro, com elementos intuitivos que o jurista perceberia na realidade social concreta. Portanto, apenas um estudo sociológico da gênese dos interesses que levaram o legislador a criar a lei é que poderia preencher os espaços lacunosos dessa mesma lei. O método para compor os interesses em conflito era dado por uma ponderação (Abwägung), que deveria apontar para o interesse que deveria prevalecer. De se ressaltar que essa fórmula continua extremamente atual para determinados setores do pensamento jurídico que apenas substituem a fórmula baseada em interesses por outra baseada em valores.

Note-se que essa discussão toda teve lugar entre o fim do século XIX e o início do século XX. Nos anos subsequentes, os debates foram ainda mais acirrados em face da chamada "revolução copernicana do Direito Público" e dos trabalhos que passaram a questionar a pertinência da aplicação de métodos constituídos no ambiente do Direito Privado para as questões policêntricas e complexas que eram objeto do Direito Público. Daí que me parece espantoso continuarmos a falar em pesquisa jurídica a partir do eixo dedutivismo-indutivismo. A grande maioria dos manuais de pesquisa jurídica tratam a questão dessa maneira. No máximo estabelecem a possibilidade de uma aproximação dialética do conhecimento jurídico.

Ora, a própria ideia de metodologia — como discurso ou teoria sobre o método — já traz consigo a pressuposta concepção de algo que, com algumas ressalvas, podemos chamar de relativismo metodológico. Ou seja, existe uma plêiade de métodos possíveis de serem empregados para solução dos casos jurídicos e dos problemas teóricos do Direito (algo que pode ser comprovado pela curta exposição realizada linhas acima, que aborda a polêmica no modo como se apresentou nos anos vinte e trinta do século XX, sendo que há muito mais nesse contexto). Quero dizer, as diversas propostas teóricas disputam entre si o estatuto metodológico da Ciência Jurídica.

Certa vez, em um dos seminários do doutorado, uma das minhas colegas — professora de Metodologia da Pesquisa — indagou-me sobre a pertinência do método fenomenológico-hermenêutico. Tentei justificar para ela os traços gerais do método, os autores que escreveram sobre ele e aqueles que procuraram guiar suas pesquisas através de suas ferramentas. Não obstante o meu esforço, ao final de todo o desfile de ideias e conceitos, minha interlocutora saiu da conversa demonstrando certa perplexidade, dizendo que os manuais de metodologia da pesquisa não anotavam a fenomenologia-hermenêutica como um método de pesquisa.

Talvez aqui resida o erro: continuar imaginando que a pesquisa jurídica se faz a partir da aplicação dos mesmos métodos que são aplicados em outros campos do conhecimento. A Ciência Jurídica, que deita raízes nos estudos desenvolvidos pelos romanistas dos séculos XI e XII, possui singularidades específicas com relação ao método, traço este que dá à metodologia da Ciência do Direito um caráter autônomo com relação às demais ciências. Inclusive em relação às ciências sociais.

Na próxima coluna, procurarei retratar, mais amiúde, essa questão da metodologia da pesquisa jurídica trazendo à colação dados instigantes retirados dos tradicionais manuais. Tentarei, também, gizar alguns elementos desse "método" fenomenológico-hermenêutico, que parece causar tanta perplexidade nos experts em metodologia da pesquisa.

Em suma, quem quiser encontrar soluções para os impasses metodológicos da ciência jurídica precisará, necessariamente, imergir na sua história, compreender sua linguagem e seu modo de proceder. Num momento em que metodólogos e pedagogos pregam aos quatro cantos uma imprecisa interdisciplinaridade (para os mais afoitos uma transdisciplinaridade), eu tendo a manter uma introspectiva relutância.

Às vezes, sou tomado por uma incômoda sensação de que, de tanto se postular uma postura de "olhar exterior" (tentar retratar o Direito pela lenta da Sociologia, da Antropologia, da Filosofia etc.), a autocompreensão do Direito e de seus problemas capitais se diluiu. Permanece presente a inquietude derivada da impressão de que, meio a todo esse discurso, alguma coisa se perdeu. Por isso que, talvez, a grande inovação metodológica da atualidade seja tentar olhar o Direito através do próprio Direito; deixar o fenômeno se manifestar por ele mesmo.


[1] (Cf. Berman, Harold. Law and Revolution. The formation of the Western legal tradition. Massachusetts: Harvard University Press, 1983). Diante do que foi dito acima, é possível perceber que as transformações ocorridas na segunda metade do século XI e início do século XII foram decisivas para a formação daquilo que entendemos por Direito hoje. Esse reconhecimento é afirmado, não apenas por Berman, mas também por um dos maiores historiadores do direito inglês, Frederic. W. Maitland, que dizia ser o século XI um século decisivo para o Direito (Cf. Maitland, F. W. The Collected Papers. Vol. I. Cornell: Cornell University Library, 2010). Na verdade, o próprio Berman parte de Maitland para afirmar sua tese, modificando, porém, a assertiva feita pelo historiador inglês: ao invés de dizer que o século XI foi um século decisivo para o Direito, Berman afirma que o século XI foi o século do Direito.

[2] Mario Losano, no segundo volume de seu Sistema e Estrutura do Direito, indica a vinculação de Bülow a esses movimentos antissistemáticos que polularam no final do século XIX e início do século XX. Losano aponta, inclusive, para uma possível inspiração de Bülow pela leitura do opúsculo de Hermann Kantorowicz (Der Kampf um die Rechtswissenschaft ), publicado, na verdade, sob o pseudônimo Gnaeus Flavius, que inaugurou o chamado “Movimento do Direito Livre”. Interessante é que Losano traz à colação um depoimento de Gustav Radbruch – à época também vinculado ao Direito Livre –, no qual se afirma que a opção pelo pseudônimo é que levou ao relativo sucesso do manifesto, pois conferiu ao texto de um jovem pesquisador a aparência de um escritor experiente, com “autoridade” para tratar dos temas ali abordados. Nos termos do depoimento de Radbruch, foi esse fator, provavelmente, que possibilitou a leitura e aderência de juristas de renomado prestígio como é o caso de Franz Klein e do próprio Bülow (Cf. Losano, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 153/154).

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