Fatura da energia

Jurisprudência do ICMS obriga a dupla restituição

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31 de outubro de 2012, 6h00

Ao pronunciar-se sobre a controvérsia inaugurada nas instâncias ordinárias acerca da admissibilidade da inclusão na base de cálculo do ICMS do valor cobrado na fatura de energia elétrica a título de demanda contratada, o Superior Tribunal de Justiça deixou assentado que não há hipótese de incidência do ICMS sobre o valor do contrato referente à garantia de demanda reservada de potência, pelo que o imposto somente pode incidir sobre a energia consumida (REsp 222.810/MG).

Entretanto, para chegar a tal conclusão, não logrou a Corte superar a dificuldade com que se deparou para identificar a real natureza jurídica da denominada demanda contratada, que, como se sabe, corresponde à intensidade do fluxo da energia elétrica estimada suficiente para suprir a soma das cargas dos equipamentos elétricos instalados na unidade do grande consumidor, tais como indústrias, shopping centers e alguns edifícios comerciais, cujo intenso consumo de energia exige da concessionária, por exigência da prestação de serviço adequado, a construção de uma rede de alta potência, com linhas de transmissão que operam em alta tensão e condutores com grandes bitolas.

Para remunerar os investimentos feitos pela concessionária, para atender à especificidade de um determinado segmento do setor elétrico, foi instituído um específico componente da tarifa de energia elétrica, distinto daquele destinado a suportar os custos de sua geração (Walter T. Álvares, “Instituições de Direito de Eletricidade”, Ed. Bernardo Álvares, 1962, p. 449), por isso se diz que a tarifa é binômia.

Assim, à falta de melhor compreensão dos aspectos técnicos próprios da estrutura tarifária do setor elétrico, observa o Prof. Igor Mauler Santiago, que “numa primeira fase, que durou de 2000 a 2009, definiu-se erroneamente a demanda contratada como uma quantidade de energia que os grandes consumidores —sujeitos à tarifa binomial de energia elétrica, composta de energia consumida e demanda contratada — adquiriam antecipadamente, e que poderiam ou não vir a utilizar, a depender de suas necessidades. Diante de tal enquadramento, consolidou-se a orientação primitiva do STJ no sentido de que tal parcela da tarifa binomial não deve ser onerada pelo ICMS” (Consultor Jurídico — CONJUR, edição de 9 de maio de 2012).

Entretanto, com o julgamento do REsp nº 960.476/SC, aquele entendimento, pelo menos em parte, foi revisto, para admitir a inclusão do componente tarifário correspondente à demanda de potência contratada, efetivamente utilizada e apurada por meio de medição, na base de cálculo do ICMS, não obstante se trate de uma tarifa mínima, à semelhança de uma tarifa de assinatura básica cobrada pela concessionária de serviços públicos de telefonia e de fornecimento de água.

A partir de então, passou também o Tribunal a conferir legitimidade ativa ao consumidor final para discutir em juízo a legalidade da tributação do componente tarifário e repetir o indébito.

Para tanto, fiou-se o Tribunal no acerto da premissa segundo a qual a distribuidora não pratica qualquer operação mercantil, uma vez que, limitando-se a interligar a fonte produtora ao consumidor final, paga tributo a título alheio, por conta do consumidor final, real contribuinte do ICMS, que, então, assumiria a dupla condição de contribuinte de direito (porque integra o polo passivo da obrigação tributária correspondente) e de contribuinte de fato (porque suporta a carga econômica do tributo).

Para não poucos chamou atenção a unanimidade que se formou em torno dessa inusitada orientação jurisprudencial, estampada, entre outros, no AgRg no REsp 1.001.537, Relator Min. Humberto Martins;  REsp 989.565, Relatora Min. Eliana Calmon; AgRg no Ag 970.758, Relator Min. Herman Benjamin; REsp 952.834, Relatora Min. Denise Arruda; REsp nº 949.327, Relator Min. José Delgado; REsp 897.521, Relator Min. Mauro Campbell Marques; REsp 857.543, Relator Min. Francisco Falcão; REsp 838.542, Relator Min. Castro Meira; Ag 834.538, Relator Min. João Otávio de Noronha; REsp 829.490, Relator Min. Teori Albino Zavascki; REsp 806.467, Relator Min. Luiz Fux; EREsp 279.491, Relator Min. Francisco Peçanha Martins.

Posteriormente, entretanto, ao julgar o REsp nº 903.394, em acórdão tomado sob o regime do artigo 543-C do CPC, o  Tribunal teve oportunidade de rever sua jurisprudência, quando então concluiu que o contribuinte de fato, no caso, uma distribuidora de bebidas, não teria legitimidade ativa para repetir o IPI pago por valor supostamente superior ao devido, somente assegurada ao fabricante, eleito pelo legislador como a pessoa obrigada ao pagamento do imposto, assegurou-se.

Embora a hipótese dissesse respeito à restituição de um imposto de competência de entidade política diversa e incidente sobre a saída de produtos industrializados, importa considerar que a tese posta em discussão mostrar-se-ia também aplicável quando o imposto pago a maior ou indevidamente é o ICMS, uma vez que, no Sistema Tributário Nacional, os dois impostos constituem tributos que apresentam pontos de inegável semelhança, valendo destacar que ambos são impostos não cumulativos e plurifásicos, que comportam, por natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, na dicção do artigo 166 do CTN.

Tal foi, aliás, a conclusão a que chegou o Ministro Herman Benjamin, Relator do REsp nº 928.875, oportunidade em que, adotando a nova orientação do STJ, fixada no julgamento do REsp 903.394/AL, sob o regime dos repetitivos e em decisão envolvendo agora, especificamente, a legitimidade ativa do consumidor final de energia elétrica, ocasião em que se reafirmou o anterior entendimento, segundo o qual a repetição somente pode dizer respeito ao contribuinte do imposto, tal como definido pelo art. 4º, da Lei Complementar nº 87/1996, único que importa à obrigação tributária e que o legislador reconhece.

Colhe-se, com efeito, assentou-se no decisum que somente o contribuinte de direito tem legitimidade ativa ad causam para a demanda relativa ao tributo indireto, visto que o “Contribuinte de direito é o sujeito passivo que tem relação pessoal e direta com o fato gerador, nos termos do art. 121, parágrafo único, I, do CTN. Indicado na lei para ocupar o pólo passivo da obrigação tributária, é também quem deve, em última análise, recolher o tributo ao Fisco”.

Assim, contribuinte de direito é, por definição, aquele e somente aquele determinado pela lei. Contribuinte de fato é quem suporta o ônus econômico do tributo, ou seja, a quem a carga do tributo indireto é repassada, normalmente o consumidor final.

No caso do ICMS sobre energia elétrica, a Constituição Federal e a LC 87/1996 não deixam dúvidas quanto ao contribuinte de direito: a) nas operações internas, contribuinte é quem fornece a energia, nos termos do artigo 4º, caput, da LC 87/1996; e b) nas operações interestaduais, há imunidade nos termos do artigo 155, parágrafo 2º, X, da CF.

Nas operações internas, não há como afirmar que o consumidor possa ser contribuinte de direito do ICMS. Inexiste lei que o inclua no polo passivo da relação tributária. A ele não compete recolher o imposto ao Fisco estadual. Em sentido inverso, a Fazenda não cogita promover Execuções Fiscais contra o consumidor nessa hipótese, o que certamente seria rejeitado pelo Judiciário”.

Essa orientação chegou a ser observada em sucessivas e reiteradas decisões proferidas pelos demais integrantes de ambas as Turmas de Direito Público do Tribunal.

Não obstante, o que, a princípio, parecia ser uma duradoura mudança do entendimento até então predominante, surpreendentemente, decidiu o Tribunal —a quem a Constituição confiou a uniforme interpretação do direito federal— alterar mais uma vez sua postura frente à matéria, para assentar que, em se tratando de imposto devido por concessionárias de serviço público, o consumidor final é portador de legitimidade ativa ad causam para a ação declaratória visando a repetir o indébito, ao julgar, em 8 de agosto de 2012, já agora sob o regime dos recursos repetitivos, o REsp nº 1.299.303. Desperta atenção, mais uma vez, a unanimidade que se formou em relação à matéria.

Para concluir no sentido exposto, aludiu o relator à circunstância —que lhe pareceu decisiva para a solução da controvérsia— que, estando em posição de quase total submissão ao poder concedente, a concessionária sempre evitará embates desgastantes e que gerem prejuízos aos serviços ou aos interesses públicos, pelo que, encontrando-se lado a lado e em situação absolutamente cômoda e sem desavenças, inviável se apresentaria a instauração de qualquer litígio, em casos como o examinado, resultando dessa inércia prejuízo para o consumidor final, que acaba arcando definitivamente com o ônus do imposto, ainda que indevido, por efeito de sua inclusão na fatura de energia elétrica.


Diante desse quadro adverso para o consumidor, reportou-se o acórdão ao artigo 7º, inciso II, da Lei 8.987/1995 —que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos—, no que garante ao usuário do serviço público o direito de defender os seus interesses diante do Estado-concedente e da concessionária, assegurando-lhe a garantia da ampla defesa e do acesso ao Poder Judiciário, sugerindo com isso que o dispositivo de lei a ele teria então conferido legitimidade ativa para a causa.

A tudo isso, aliou o argumento no sentido de que, ao contrário do que ocorre com os consumidores livres, que podem adquirir a energia de qualquer gerador, o pequeno consumidor, sendo dela cativo, sem a opção assegurada ao consumidor livre de adquiri-la de terceiros, só pode adquirir a energia elétrica da distribuidora local, o que agrava a situação, uma vez limita a sua opção por um fornecedor que operasse com preços mais competitivos.

Se não bastasse, mostraram-se os integrantes da Seção de Direito Público sensíveis à alegação, externada em reforço a demais premissas assentadas, de que as tarifas sujeitam-se a revisões periódicas, bem assim quando ocorrente a criação de quaisquer tributos ou encargos legais que possam romper o equilíbrio econômico-financeiro do contrato (artigo 4º da Lei n. 9.074/1995), exacerbando com isso o encargo tributário repercutido.

Por resultado da apontada “relação paradisíaca”, estabelecida entre o concedente e a concessionária, ainda segundo o acórdão, o consumidor ficaria abandonado e totalmente desprotegido, quadro esse revelador de que a concessionária assume o papel de contribuinte de direito apenas "formalmente", assim como o consumidor também assume a posição de contribuinte de fato em caráter meramente "formal", assentando-se, conclusivamente, que, então, “não há como reconhecer a ilegitimidade ativa do consumidor do serviço de energia elétrica, lembrando que, em Direito Tributário, o que vale é a verdadeira natureza das coisas e das suas relações”.

As premissas que presidiram a formulação do capítulo dispositivo do acórdão, que representa uma clara ruptura de paradigmas, revelam-se de duvidosa procedência e esvaziam o principal escopo do recurso especial, que é, segundo o princípio que presidiu sua instituição, o de proporcionar ao Tribunal de sobreposição a fixação de uma correta, duradoura e uniforme interpretação do direito federal.

Além do mais, a constante oscilação da orientação jurisprudencial, sabidamente, gera perniciosa instabilidade jurídica, exprimindo resultados indesejáveis pelo sistema, além de romper mais uma vez que toda dogmática jurídica construída em torno do tema e com a jurisprudência de há muito consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em face da qual, consideradas as razões do que decidido, “não é possível opor a realidade econômica à forma jurídica para excluir uma obrigação fiscal precisamente definida em lei. O contribuinte de fato é estranho à relação tributária e não pode alegar, em seu favor, a imunidade recíproca” (RE 71.300, Relator Min. Bilac Pinto).

Nesse sentido, no que respeita à incidência do ICMS sobre serviços de energia elétrica e telefonia, é firme também a jurisprudência da Suprema Corte formada a propósito do alcance do disposto na alínea “a” do inciso VI, do artigo 150, da CF, que, consoante assentado, a imunidade ali prevista não beneficia a entidade pública em relação ao ICMS incidente sobre aquisições de bens, visto que não é contribuinte de direito do ICMS incidente, dado tratar-se de um contribuinte de fato (AI 844.401-AgR/MG, Rel. Min. Ayres Britto; AI 671.412-AgR, Rel. Min. Eros Grau; AI 664.610, Rel. Min. Celso de Mello; AI 652.207, Rel. Min. Cármen Lúcia; AI 805.295-AgR/MG; ARE 663.552-AgR/MG, AI 634.050-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; AI 629.785-AgR e AI 550.300, Rel. Min. Gilmar Mendes; AI 574.042-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie; AI 488.132, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 344.729, Rel. Min. Joaquim Barbosa).

Em momento anterior, já recusara a Suprema Corte a legitimidade do consumidor final para insurgir-se contra a revogação da isenção prevista para a saída das maquinas e equipamentos adquiridos para projeto de obra de interesse público, ainda em execução, assegurada pelo Convenio 9/1975, visto que “quem tem direito a isenção em causa não é o ‘contribuinte de fato’, ou seja, o comprador das maquinas e equipamentos nacionais destinados a implementação de projetos que consultem aos interesses do país, mas, sim, o ‘contribuinte de direito’, que é o fabricante deles” (RE 113.149, Rel. Min. Moreira Alves, RE 161.384, Rel. Min. Sepúlveda Pertence e RE 118.008, Rel. Min. Maurício Corrêa, inter plures). Tais precedentes são inteiramente aplicáveis ao caso.

Sensibilizado, não obstante, com a situação do consumidor final e do usuário do serviço concedido, desamparados, pelo que deixa entender o acórdão, pelo ordenamento jurídico, que não lhes proporciona meios para reaver o valor do imposto embutido no preço da mercadoria e do serviço, tido por ilegítimo, optou o Tribunal por restaurar sua anterior jurisprudência, em relação à qual já havia sérias restrições doutrinárias, quando fixada, embora sugestão no sentido da decisão ofertada já tivesse sido formulada por Gilberto de Ulhôa Canto, ao preconizar que se permitisse ao terceiro, que houvesse suportado o ônus do tributo, a sub-rogação no direito à restituição. Tal sugestão, entretanto, como se sabe, veio a ser rejeitada pela Comissão que elaborou o Anteprojeto que se converteu na Lei nº 5.172/1966, que contém o Código Tributário Nacional e que, se acolhida, ofereceria aos supostos prejudicados meios para reaver o imposto repercutido.

No caso, não é difícil constatar que o entendimento adotado repousa em considerações meramente extrajurídicas, cujas premissas, de resto, não encontram ressonância no domínio dos fatos e deixa sem igual solução as demais pretensões, de igual natureza, formuladas por “contribuintes de fato”, resultantes de operações ou prestações realizadas no âmbito de atividades não abrigadas no regime de concessão.

Ademais de tudo isso, a precariedade dos motivos determinantes da decisão, consoante já teve oportunidade de observar Brandão Machado (“Repetição do Indébito no Direito Tributário”. In Direito Tributário: Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. SP, Saraiva, 1994), leva a classificar o contribuinte ora como sujeito passivo, ora como mero coletor do imposto, que o arrecada e transfere para o Estado por conta e à custa do terceiro: se o tributo é legítimo, o contribuinte assume a posição de sujeito passivo, que responde perante o Estado, ainda que não logre repassar ao consumidor o respectivo ônus financeiro; se o tributo é ilegítimo, o contribuinte se transforma então conceitualmente em arrecadador de imposto, hipótese em que a obrigação tributária teria de subsistir sem sujeito passivo, uma vez que o Estado, não reconhecendo o consumidor como devedor, dele não pode cobrar o tributo.

A propósito do tema, observa ainda o insigne jurista, que, “ao pagar o preço contratado, o terceiro nunca faz um pagamento indevido de tributo, pois não paga dívida inexistente. Para caracterizar o enriquecimento injustificado, necessário seria que o tributo constituísse obrigação do terceiro e que, não sendo devido, lhe fosse indevidamente exigido pelo ‘solvens’. Como, porém, o tributo é de responsabilidade de quem satisfaz o pressuposto da incidência, o seu único devedor, e não do terceiro, não há possibilidade lógica de ocorrer a hipótese de o terceiro pagar o indevido”. Por conseguinte, o elemento tributo que se insere na relação entre o vendedor e o comprador é de conteúdo econômico, não jurídico: tributo é apenas o nome de uma parcela dentre outras tantas, que compõem o preço, mas que não é paga pelo terceiro a título de tributo, uma vez que o terceiro nada deve a esse título, conclui.

De resto, diferentemente do que ocorre com os demais segmentos do mercado, a revisão tarifária é periodicamente procedida, a cada quatro anos, salvo casos excepcionais, em razão de alterações significativas nos custos da companhia de distribuição, expondo-se o seu valor ser alterado para mais ou para menos, dependendo das mudanças ocorridas nos custos e no mercado da distribuidora, mas, em qualquer circunstância, não pode a revisão ocorrer unilateralmente, uma vez que o valor dela resultante é determinado pelo próprio Poder Público.


Natural, então, que ocorra a revisão da tarifa, nas hipóteses previstas em lei, visto que o “acréscimo de encargos ou mutação de condições de funcionamento do serviço que se reflitam sobre a equação patrimonial hão de corresponder as compensações pecuniárias restauradoras do equilíbrio inicial”, segundo ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (“Curso de Direito Administrativo”, 21ª Ed., p. 702).

Às limitações temporais impostas à revisão da tarifa, observe-se, não se sujeitam os demais agentes do mercado, basta ver que, como a formação do preço da mercadoria, numa economia de mercado, constitui assunto de economia interna da empresa, o contribuinte goza de ampla liberdade para computar todos os custos incorridos, inclusive fiscais, para efeito de estipular, a qualquer tempo e unilateralmente, o preço de seus produtos e serviços e calcular a margem de lucro, anota Brandão Machado.

Lembre-se, a propósito do tema, que, para o Direito, só importam aqueles aspectos que tenham sido incorporados à norma jurídica. As considerações de ordem econômica, a despeito de versarem aspectos da realidade do imposto, não são contempladas nas normas jurídicas, que a nenhum deles dizem respeito.

O consumidor, que acaba arcando com o ônus do ICMS é, assim, um dado irrelevante para o direito, uma vez que as normas jurídicas que versam sobre o imposto a ele não dispensam relevância alguma. Por conseguinte, o fato do valor desse tributo ser repassado pelo vendedor e pago pelo comprador é algo que escapa à consideração jurídica, valendo acrescentar, por fim, que o contribuinte de fato, na expressão de Ives Gandra da Silva Martins, é uma figura inexistente no direito brasileiro, que o artigo 121 do CTN não reconhece.

Não obstante, a contaminação dos conceitos do direito tributário com os princípios que informam as ciências das finanças, compromete, como no caso, a correta prestação jurisdicional, e, além do mais, a nova orientação jurisprudencial não parece conformar-se com expressa e específica disposição legal, inscrita no artigo 4º da Lei Complementar 87/1996, editada que foi para conferir especificidade à generalidade do enunciado do artigo 121, do Código Tributário Nacional, visto que a definição do contribuinte do ICMS, por ele ofertada, constitui mesmo matéria sob reserva de lei constitucionalmente qualificada (CF, artigo 146, III, ”a” e artigo 155, parágrafo 2º, XII, “a”), tarefa de que ambos se desincumbiram.

Nesse contexto, a noção de legitimidade ad causam para suscitar a ilegalidade de uma exigência fiscal está vinculada à natureza e estrutura da relação jurídica posta em causa, revelada pelo texto de lei, pelo que a solução da controvérsia acerca da legitimidade para agir na ação de repetição de indébito passa necessariamente pela definição legal de quem figure como sujeito passivo da obrigação tributária.

Não ostentando, então, o consumidor a condição de contribuinte —status jurídico esse que lhe negou o direito material, visto que reservada à concessionária do serviço, não exibe condições para atuar como legitimado por substituição, por inexistente previsão legal, e afastada que seja, não obstante, a exigência do ICMS, a concessionária, conquanto contribuinte do imposto devido pelo fornecimento da energia elétrica e obrigada a seu recolhimento— mas terceiro em relação à lide — passaria a usufruir o direito postulado por outrem, forrando-se, por arrastamento, do pagamento do tributo, embora diga o artigo 472, do CPC, que a sentença não pode beneficiar ou prejudicar quem quer que não tenha sido parte no processo.

Tratando-se de matéria sob reserva de lei, não seria dado ao juiz, substituindo-o ao legislador, instituir um concurso de legitimados para a ação, iniciativa judicial essa que encontra limitação absoluta no dogma constitucional da separação dos Poderes, uma vez que, desvestido o órgão jurisdicional da função legislativa, o Judiciário não exibe a competência que a própria Constituição negou-se a outorgar-lhe.

Com efeito, a legitimidade do contribuinte para atuar como autor da ação em que se controverte sobre a incidência do imposto é exclusiva, não comportando a atuação isolada de outrem, visto que compete exclusivamente ao legislador, e não ao juiz, a determinação do vínculo jurídico, de natureza tributária, que faz irromper a obrigação de pagamento do imposto e dos casos em que se pode conceder a terceiros, a ele estranho, a legitimidade conjunta, substitutiva ou sucessiva para instaurar a ação que lhe proporcione um título para repetir o indébito.

Por outro lado, o exercício de interpretação não pode contrariar o texto legal aplicável, pois, tratando-se, no caso, de controvérsia estabelecida em torno da aplicação do artigo 4º, da LC 87/1996 CPC e dos artigos 3º e 6º, do CPC, não pode o juiz, à guisa de emprestar-lhe a interpretação que lhe conviria, servir-se de elementos metajurídicos para substituir-se ao legislador, omitindo-se em sua aplicação, a pretexto de que, se assim não fosse, restaria prejudicado o terceiro, caso a este não fosse assegurada a mesma prerrogativa que exibe a pessoa obrigada ao pagamento do imposto.

Em hipótese tal, invocando as lições de Dinamarco, deve-se ter presente que o conceito de parte na relação jurídica corresponde a uma situação de direito material, na medida em que de direito material é a pretensão que constitui objeto do processo. Disso decorre que, dada à conexidade existente entre os conceitos de parte legítima e parte de direito material, somente têm legitimidade para a causa aquelas mesmas pessoas que sejam partes titulares da relação jurídica substancial posta como objeto do juízo (CPC, artigo 3º)

É que o direito processual civil apresenta sensível vocação para a tutela de direitos e situações jurídicas individuais, tendência essa que se evidencia pela tradicional exigência de que o interesse de agir seja pessoal e direto em relação a “ei qui agit” e, bem assim, que a legitimação para a causa derive da coincidência entre a titularidade da pretensão de direito material e a pessoa que a pretende fazer valer, através do exercício do direito de ação.

Seque-se então que essa exigência legal subordina e condiciona a determinação da parte da relação jurídica, que, como se sabe, segundo a dogmática processual, corresponde a uma situação de direito material, na medida em que de direito material é a pretensão que constitui objeto do processo.

Por conseguinte, há que ser vista com reserva, mais uma vez, a orientação jurisprudencial emanada do Superior Tribunal de Justiça, que, reformulando sua jurisprudência, voltou a conferir ao consumidor final legitimidade ativa para repetir o imposto incidente sobre mercadorias e serviços de que a concessionária é o único contribuinte —sob fundamento meramente extrajurídico, de natureza econômica, insista-se— o que conflita diretamente com o que dispõe o artigo 146, III, ”a”, que prevê disciplina homogênea, em âmbito nacional, da matéria a que se refere, cujo enunciado, no particular, é reproduzido, com redobrada ênfase, no artigo 155, parágrafo 2º, XII, “a”, ambos da CF.

Ao que foi exposto, não seria mesmo lícito ao aplicador da lei proceder à imposição de seus próprios critérios para, com isso, introduzir alterações no elenco das pessoas legitimadas para a ação, pois, “se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional”, não se permitindo ao intérprete e ao aplicador da lei inserir na regra de direito o próprio juízo sobre a finalidade que “conviria” fosse por ela perseguida, uma vez que é tão ilegítimo se retirar algo que está escrito na lei quanto é adicionar algo que lá não se encontra e que desejaríamos que lá estivesse, já se afirmou alhures.

Mesmo que admitida a razoabilidade das razões que conduziram à formação do acórdão, o adquirente da mercadoria e o usuário do serviço tributado, seja qual for o regime de exploração da atividade, somente poderiam se sub-rogar no direito à repetição do imposto pago por outrem se autorizado, por obra de lege ferenda, a exemplo da previsão constante do artigo 3º, da Lei 12.016/2009, ao teor do qual “O titular de direito líquido e certo decorrente de direito, em condições idênticas, de terceiro poderá impetrar mandado de segurança a favor do direito originário, se o seu titular não o fizer, no prazo de 30 (trinta) dias, quando notificado judicialmente”, pois, somente assim, observa o Prof. Igor Mauler Santiago, evitar-se-ia eventual duplicidade de ações, propostas pelo contribuinte de direito e pelo contribuinte de fato, vendo-se o Estado, afinal, obrigado a restituir duas vezes o mesmo valor, se for o caso, a perdurar o entendimento jurisprudencial recentemente fixado.

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