Estratégia de defesa

Prescrição não pode ser usada para alcançar impunidade

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17 de outubro de 2012, 13h35

Prescrever — do latim praescribere — significa literalmente escrever antes, escrever na frente, pôr no título, ditar, ordenar antecipadamente[1]. Na linguagem comum, diz-se que o médico “prescreve um medicamento”, o diretor “prescreve as funções dos professores” etc. Na seara jurídica, a palavra possui significado próprio, qual seja, é a perda de um direito[2] pelo decurso do tempo. No Direito Penal, especificamente, o instituto da prescrição traduz a perda do direito-dever do Estado de punir o agente que cometeu um crime, após o transcurso de determinado lapso temporal.

José Frederico Marques, com arrimo na doutrina estrangeira, esclarece: “A prescrição, com dizem os autores franceses, é ‘l’extinction d’un droit par écoulement de temps’. No Direito Penal, é a extinção do direito de punir do Estado pelo decurso do tempo: ‘Il cessare della potestà punitiva dello Stato col decorso di un periodo di tempo fissato dalla legge’, como ensina Maggiore.[3]

Preleciona José Frederico Marques[4]: “A prescrição penal é perda do direito de punir pelo não uso da pretensão punitiva durante certo espaço de tempo. É da inércia do Estado que surge a prescrição. Atingido ou ameaçado um bem jurídico penalmente tutelado, é a prescrição uma decorrência da falta de reação contra o ato lesivo ou perigoso do delinquente. Desaparece o direito de punir porque o Estado, através de seus órgãos, não conseguiu, em tempo oportuno, exercer sua pretensão punitiva.”

Edgar Magalhães Noronha[5], a propósito, pondera que “O tempo, que tudo apaga, não pode deixar de influir no terreno repressivo. O decurso de dias e anos, sem punição do culpado, gera a convicção da sua desnecessidade, pela conduta reta que ele manteve durante esse tempo. Por outro lado, ainda que se subtraindo à ação da justiça, pode aquilatar-se de sua intranquilidade, dos sobressaltos e terrores por que passou, influindo esse estado psicológico em sua emenda ou regeneração”.

O decurso do tempo, portanto, é fator central que justifica a opção do Estado de não mais punir o agente que comete um crime. Intrinsecamente associada à passagem do tempo está a inércia ou a ineficiência do Estado, quando deixa de promover a punição do criminoso em prazo razoável.

A prescrição, posto que implique a “desistência” do Estado de punir o agente de um crime, encontra guarida no nosso ordenamento jurídico. Apesar de respeitáveis críticas ao instituto da prescrição, uma análise ponderada induz à conclusão de que ele está em consonância com o senso comum de justiça.

A razão de ser do instituto encontra arrimo perfeito na metáfora da "espada de Dâmocles", conhecido conto que faz parte da cultura grega clássica. De fato, não é admissível que sobre a cabeça do investigado, acusado ou condenado pese, indefinidamente, a “espada” da Justiça.

Cumpre anotar, contudo, que o legislador constituinte originário, considerando o alto grau de reprovabilidade de alguns crimes, não admitiu o seu esquecimento. Com efeito, prevê a Constituição Federal crimes imprescritíveis nos incisos XLII e XLIV do artigo 5º, quais sejam, a prática do racismo — previsto na Lei 7.716/1989, com alterações da Lei 9.459/1997 — e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático — previsto na Lei 7.170/1983. Nos demais crimes, a prescrição pode, eventualmente, incidir.

É norma expressa do artigo 107, inciso IV, do Código Penal brasileiro, com a redação que lhe foi dada pela Lei 7.209/1984: “Extingue-se a punibilidade: […] pela prescrição […].”

A prescrição, conforme disciplinada no Código Penal brasileiro, pode incidir antes de transitar em julgado a sentença[6] — prescrição da pretensão punitiva — ou depois de transitar em julgado sentença final condenatória[7] — prescrição da pretensão executória. No primeiro caso, a prescrição extingue o direito-dever do Estado de processar o suposto agente do crime — jus persequendi in juditio; no segundo caso, depois de apurada, em definitivo, a autoria e materialidade do crime, com a fixação individualizada da pena, impede o Estado de aplicar a punição ao agente — jus executionis.

O lapso temporal erigido pelo Legislador para aferição da prescrição obedece, como não poderia deixar de ser, à gravidade da conduta criminosa, revelada na pena cominada em abstrato ou, depois da sentença condenatória, na pena concretizada. Quanto maior a pena, maior o prazo prescricional, ex vi do artigo 109 do Código Penal.

A partir da ocorrência do crime, como regra, começa a fluir o prazo prescricional[8]. A lei penal, no entanto, estabelece marcos que interrompem a contagem desse prazo[9], quais sejam, o recebimento da denúncia ou da queixa; a decisão de pronúncia; a decisão confirmatória da pronúncia; a publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis; o início ou continuação do cumprimento da pena; e a reincidência. Estes dois últimos se referem à prescrição da pretensão executória. Os demais, à prescrição da pretensão punitiva.

Conquanto seja legítima, a priori, a convalidação da impunidade pela prescrição, não se pode admitir a subversão desse instituto, permitindo que vias procrastinatórias de defesa, que contam com a complacência do processo penal, sejam usadas como atalho para se alcançar a impunidade indesejada.

Os operadores do Direito na seara penal, mesmo os incipientes, percebem rapidamente como, em muitos casos, a busca pela prescrição se tornou uma das principais estratégias de defesa, trilhando uma via inescrupulosa para livrar o criminoso da punição neste país.

Se a prescrição encontra fundamento na falta de reação oportuna do Estado contra o ato delituoso, não é legítima — e gera incontornável sensação de impunidade na sociedade — a decretação da extinção da punibilidade pela prescrição, depois de prolatada a sentença penal condenatória — que é a efetiva resposta do Estado —, quando o processo se arrasta por anos, em decorrência de subsequentes recursos da defesa, postergando o trânsito em julgado da condenação.

Mesmo que não se trate de recursos protelatórios — e, em regra, consubstanciam legítimo interesse do réu em recorrer às instâncias superiores —, ainda assim, toda vez que o Estado-Juiz se pronuncia confirmando a condenação deveria, de lege ferenda, constituir marco interruptivo do prazo prescricional. Afinal, mesmo que o encerramento do processo demore, quando essa delonga é resultado de seguidos recursos do réu, dessa situação não se pode inferir desídia tampouco inércia do Estado.

Ora, no procedimento comum, depois da sentença penal condenatória recorrível, se não houver recurso do Ministério Público — o que é comum quando a denúncia é julgada inteiramente procedente —, não há nenhum outro marco interruptivo da prescrição da pretensão punitiva, ex vi do artigo 117 do Código Penal, até a decisão final no processo. A tentativa de interpretar o inciso IV do artigo 117, com a redação que lhe foi dada pela Lei 11.596/2007, no sentido de constituir o acórdão que confirma a condenação como marco interruptivo do prazo prescricional esbarra na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[10].

E da sentença condenatória o réu interpõe apelação. Desta, eventualmente, embargos infringentes e/ou de declaração. Da decisão da Corte Estadual ou Regional cabe recurso especial e recurso extraordinário, respectivamente, para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal. Se estes forem inadmitidos na origem, agravos são manejados. Das decisões nas Cortes Superiores ainda cabe, eventualmente, agravo regimental e embargos de divergência. Em qualquer instância, ilimitados embargos de declaração.

É bom lembrar que a prescrição é contada para cada crime isoladamente[11], não se considerando o acréscimo pelo concurso material, concurso formal ou pela continuidade delitiva. Assim, se alguém é condenado, por exemplo, a 20 anos por uma série de crimes cujas penas, individualmente consideradas, não ultrapassam quatro anos, o prazo prescricional é de apenas oito anos, para todos os crimes.

Concessa venia, parece haver uma letargia do Poder Legislativo, que não se movimenta para alterar as normas que permitem a malversação dos recursos do processo penal, em muitos casos, abusivamente utilizados para postergar a conclusão da ação penal, até a obtenção da declaração de extinção da punibilidade pela prescrição. Para começar, bastaria erigir outros marcos interruptivos da fluência do prazo prescricional depois da sentença condenatória recorrível, como, por exemplo, as decisões que, confirmando a condenação, negam provimento aos recursos da defesa. Só isso, sem precisar sequer alterar os prazos prescricionais hoje existentes, já diminuiria significativamente o número de crimes atingidos pela prescrição.

Não obstante, ao compulsar o anteprojeto do novo Código Penal brasileiro — recém elaborado pela comissão de juristas incumbidos da nobre tarefa —, que ainda será objeto de debate no Congresso Nacional, vê-se que inexiste proposta de alteração do regime da prescrição. Essencialmente foram mantidos os mesmos prazos prescricionais e os mesmos marcos interruptivos. Até a impropriedade relacionada com a fixação do termo inicial da prescrição da pretensão executória foi mantida, isto é, conta-se “do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação”. Todavia, nesse caso, se o réu continua recorrendo, posterga o trânsito em julgado da condenação, mas o prazo prescricional para executar a pena já começa a fluir.

Na esteira da jurisprudência pacífica das Cortes Superiores, prevalece a presunção de inocência do réu até o trânsito em julgado da condenação, pelo que não se pode promover a execução antecipada da pena. Assim, enquanto não sobrevém o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não há pretensão executória do Estado e, portanto, não deveria correr a prescrição de pretensão que ainda não existe.

Qualquer um que se dê o trabalho de pesquisar na jurisprudência das Cortes Superiores constata a existência de milhares de decisões declaratórias da prescrição, algumas de crimes gravíssimos.

Vale ressaltar o comentário obter dictum da eminente ministra Laurita Vaz do Superior Tribunal de Justiça, relatora do Recurso Especial 827.940/SP, processo oriundo da apelidada “operação anaconda”, que condenou juízes federais, delegados federais, advogados, dentre outros, acusados de formação de quadrilha e envolvimento em venda de sentenças: “É frustrante ver a quantidade de horas de trabalho de tantas pessoas, inclusive o meu próprio, ser jogado no lixo, por regras de prescrição tão complacentes, com prazos tão exíguos, a beneficiar réus condenados por crimes extremamente graves.”[12] É digno de nota a quantidade de petições e recursos atravessados apenas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que renderam, só da relatora do recurso especial, 26 despachos, 6 decisões monocráticas e 10 relatórios e votos. Hoje, passados mais de 10 anos dos fatos supostamente criminosos, ainda pende de julgamento Embargos de Divergência naquela Corte Superior — recurso redistribuído para outro relator da 3ª Seção –, afora os recursos extraordinários também já interpostos.

De fato, o sistema persecutório penal brasileiro, nesse particular, deixa muito a desejar, na medida em que permite a utilização indiscriminada de recursos, com prazos prescricionais exíguos e com poucos marcos interruptivos.

Ao réu deve ser garantido o livre exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, observado o devido processo legal, garantias fundamentais consagradas na Constituição Federal. Sem embargo, como todo e qualquer direito, não é absoluto, nem, tampouco, pode servir para, por vias oblíquas, legitimar a impunidade, mormente quando alcançada às custas da incessante interposição de recursos protelatórios.


[1] Dicionário Houaiss

[2] Rectius: pretensão

[3] ROSENGART, Lutz. La Prescription de l’Action Publique en Droit Français et Allemand, 1936, p. 3; MAGGIORE, G. Diritto Penale, 1951, vol. 1, p.763; apud MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, vol. III. ed. rev. e atual. por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Guilherme de Souza Nucci e Sérgio Eduardo Mendonça de Alvarenga. Campinas: Millennium, 2002. p. 471.

[4] Idem, pp. 471-472.

[5] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, vol. 1: introdução e parte geral – 38. ed. rev. e atual. por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 360.

[6] Art. 109.  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).
I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;
III – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;
IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;
V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;
VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. 

[7] Art. 110 – A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.  (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 1o  A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010). 

[8] Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – do dia em que o crime se consumou; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV – nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
V – nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal. (Redação dada pela Lei nº 12.650, de 2012) 

[9] Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – pela pronúncia; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
III – pela decisão confirmatória da pronúncia; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis; (Redação dada pela Lei nº 11.596, de 2007).
V- pelo início ou continuação do cumprimento da pena; (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)
VI – pela reincidência. (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)
§ 1º – Excetuados os casos dos incisos V e VI deste artigo, a interrupção da prescrição produz efeitos relativamente a todos os autores do crime. Nos crimes conexos, que sejam objeto do mesmo processo, estende-se aos demais a interrupção relativa a qualquer deles.  (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
§ 2º – Interrompida a prescrição, salvo a hipótese do inciso V deste artigo, todo o prazo começa a correr, novamente, do dia da interrupção. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[10] “O acórdão que confirma a condenação, ainda que a pena fixada seja modificada, não interrompe a prescrição. Precedentes.” (HC 243.124/AM, QUINTA TURMA, Rel. Ministro JORGE MUSSI, DJe de 20/08/2012). “Este Superior Tribunal de Justiça entende que, mesmo após o advento da nova legislação, o acórdão que confirma a sentença condenatória, diversamente do julgado colegiado que, após sentença absolutória, condena o réu, não tem o condão de interromper o prazo prescricional. Precedentes desta Corte.” (HC 165.546/ES, QUINTA TURMA, Rel. Ministro GILSON DIPP, DJe de 09/04/2012); “O acórdão confirmatório da condenação, ainda que modifique a pena fixada, não é marco interruptivo da prescrição.” (AgRg no REsp 710552/MT, SEXTA TURMA, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 01/02/2010).

[11] “Art. 119 – No caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente.” (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) 

[12] Voto da Relatora no EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl no RECURSO ESPECIAL nº 827.940/SP (2006/0058731-6), publicado do DJe de 05/04/2010, disponível em http://www.stj.jus.br.

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